Proponho aos leitores e, com todo respeito, às leitoras, decifrar o seguinte enigma. Os jornais noticiaram que três políticos da base aliada, que comem na mesma panela, querem ser governador do Amazonas. Os três saíram em busca de apoio. Amazonino Mendes (PTB – vixe, vixe!), prefeito de Manaus, procurou o Lula, na maior cara de pau. Omar Aziz (PMN– viiiiiixe!), vice-governador, se agarrou ao seu chefe Eduardo Braga (PMDB–huuugo, rauuul!). Diante desse quadro imprevisível, o ministro Alfredo Nascimento (PR–puts!) convidou o ex-prefeito Serafim Correa (PSB) a ser seu vice.
As respostas dadas aos três concorrentes foram misteriosas. Lula fez um gesto com os quatro dedos de sua mão e, depois de alguns “veja bem”, respondeu assim, na lata:
- Rhesó-rhesó, Amazonino.
O governador Eduardo Braga olhou se havia crianças e damas no recinto (não havia), passou um pouco de vaselina e foi sincero com Omar:
- Chukui indearã.
Já o Serafim, que não come nessa panela, mediu o Cabo Pereira de cima a baixo e, correndo o risco de parecer pornográfico, sinalizou:
- Maã mɨnẽ ató niĩ.
O que cada um deles quis dizer? Por que falaram assim? O que essas respostas têm em comum? Enquanto isso não for esclarecido, ninguém entenderá o quadro político eleitoral do Amazonas. É como a passagem bíblica do Nabucodonosor e do rei Baltazar: precisa de um profeta, que nem Daniel, para decifrar as palavras misteriosas ‘Mane, Tecel, Fares’ escritas na parede. Não sou profeta, mas prometo explicar tudo. Peço apenas um pouco de paciência, porque vou contar, antes, como é que matei a charada. Mas só contarei depois de abrir um parêntese.
(Perdido no beco)
(Meu amigo, o poeta Thiago de Mello, diz que sou disperso, dou muitas voltas para contar uma história, caminho por estradas secundárias, me perco por becos e vielas e demoro a entrar na avenida central. Ele confessa, no entanto, fazer o mesmo, embora em menor grau. Diz que Pablo Neruda o censurava carinhosamente por abandonar o tronco da árvore e desviar pelos galhos: “Hermano, tu te pierdes por las ramas”).
Fecho esse parêntese. Mas abro um segundo (Desço por outro galho para dizer que nessa quinta-feira, fui ao lançamento do livro ‘Melhores Poemas’ de Thiago de Mello, na Saraiva Megastore, no Manauara Shopping. Só não digo que, na ocasião, houve também o lançamento do CD ‘Canta Amazônia’ para não me desviar por um terceiro galho). Fecho e, agora sim, conto que estive em Manaus, durante uma semana, o que me permitiu decifrar as respostas dos três políticos.
Os raros leitores incautos que por acaso frequentam esse espaço dominical talvez saibam que sou consultor do MEC para a questão de educação indígena. Foi por isso que sugeriram meu nome para ministrar aulas de História da Amazônia num projeto pioneiro que a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) está desenvolvendo. Trata-se do Curso de Licenciatura Intercultural em Pedagogia, bancado pela reitora Marilene Correa e coordenado pela professora Graça Barreto. Sua primeira etapa aconteceu em agosto de 2009.
A segunda etapa do Curso começou no dia 11 de janeiro, com vários módulos, entre os quais o de História da Amazônia, organizado e planejado pela professora Dorinethe Bentes, com a contribuição desse locutor que vos fala. Durante uma semana, demos aula para 2615 alunos - 745 deles são indígenas - através do Programa de Vídeo Conferência, atingindo mais de 400 localidades em 52 municípios do Amazonas.
Vai cheirar teu pé
A tecnologia não precisa ser muito sofisticada para que eu fique deslumbrado. Mas é maravilhosa essa possibilidade de um professor dar aulas para milhares de alunos, ao mesmo tempo, a partir de uma Plataforma Tecnológica IP-TV (não me pergunta que diabo é isso, porque não sei responder), levando informações de qualidade para dezenas de salas de aula, com ajuda de imagens, filmes, documentários, clipes, ilustrações, animações e textos, além de acesso ao banco mundial de informações (internet).
A coisa funciona assim. Cada sala está equipada com vários hardwares, através dos quais os alunos acompanham as aulas e realizam as atividades. Você, como professor titular, está palestrando em Manaus. Os alunos estão espalhados em salas de 52 municípios, que contam com a presença de dois professores assistentes, com formação específica, totalizando 104 professores assistentes. Eles acompanham os alunos e articulam o conteúdo com a temática local, orientando a execução dos trabalhos.
Enquanto a gente dava aula, um telão ia registrando em tempo real a reação dos alunos, que redigiam textos com perguntas, observações, dúvidas. No meio da aula, por exemplo, um telão na minha frente registrava: "O pessoal de Barcelos não entendeu bem sua explicação sobre a "guerra justa" contra os índios". Dessa forma eu podia ir adequando meu discurso. Para o professor equivale a poder trocar o pneu do carro em movimento.
No final da nossa explanação, aparecia no telão as imagens de uma sala em um município. O pessoal vibrava como torcida de futebol e fazia perguntas muito inteligentes, ao vivo, que a gente respondia. Depois outra sala em outro município. E assim por diante. Há muita interação entre os diversos sujeitos do processo.
Enigma decifrado
Oxalá a reitora Marilene Correa consiga ampliar esse projeto que muda o conceito do que é ‘presencial’ e coloca na mesma sala alunos indígenas e não-indígenas, com a valorização de todos os saberes e com uma perspectiva intercultural que favorece a troca de conhecimentos entre culturas diferentes. Dias depois, fui ministrar aulas presenciais em outro curso em Barcelos destinado apenas a índios, os alunos da Plataforma foram me buscar no aeroporto e me levaram para a sala deles, onde assisti a aula de um colega que estava lá na plataforma em Manaus. Os alunos não indígenas aprendem muito na convivência com os alunos indígenas.
O curso permite também ampliar os espaços do uso social das línguas indígenas. Quando dei aula lá na Plataforma, sentados a meu lado, quatro ou cinco índios resumiam o conteúdo em suas respectivas línguas para melhor compreensão dos alunos indígenas em sala de aula. Os não indígenas tomam contato com outras línguas.
No Intervalo de minhas aulas, na hora da merenda, descobri finalmente o significado das palavras ditas por Lula, Dudu Braga e Serafim aos que lhes pediram apoio. O sateré-mawé Selumiel Michilles Alencar, coordenador da escola indígena, disse o que significava Rhesó-rhesó em sua língua. Os dois Baniwa - Maria do Rosário Martins e Edilson, esse último doutorando em Lingüística pela UnB - esclareceram o que era Chukui indearã, em nheengatu. E João Batista Melo, tariana, traduziu da língua tukano a expressão Maã mɨnẽ ató niĩ.
Todas essas expressões indígenas são a tradução daquilo que os tikuna dizem em sua língua: ye’a’ma na Ũmare ou daquilo que manifestamos em português quando dizemos: - ‘vai te catar’, ‘vai catar coquinho’, ‘vai cheirar teu pé’, ‘vai chupar fiofó de passarinho’. Enfim, os índios citados traduziram para suas línguas aquilo que o amazonense resume em uma expressão: - “taqui pra ti”. Foi isso que os três candidatos a candidatos ouviram quando pediram apoio. Falta apenas o eleitor dar pra eles um sonoro taquiprati em língua guarani, dizendo: “vai lavar teu tcherembó’.