.“Minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá. Gonçalves Dias. 1847
De onde surgiu o povo brasileiro? Havia o português colonizador, de um lado, e os indígenas, do outro. Então, aqueles índios que carregavam o pau-brasil por demanda do colonizador foram designados como “brasileiros”, num processo em que muitas índias foram violentadas. Os seus filhos ficaram sem identidade. “Português não é” – diziam os portugas, alegando que a mãe era índia. “Índio não é” – diziam os Tupinambá, argumentando que o pai era português. “Era um zé ninguém” - diz Darcy Ribeiro. E dessa “ninguendade” nasceu o povo brasileiro.
Ao resenhar a última obra de Darcy Ribeiro, na publicação mensal Parabólicas de julho passado, Carlos Alberto Dória nos mostra que debater a importância desse autor para a antropologia brasileira não é apenas uma questão acadêmica, mas também política. Quanto ao aspecto teórico, diz Dória:
- Livro lido de cabo a rabo, decepciona. Afinal, quem conhece sua obra sabe que já escreveu coisas mais sólidas, bem fundamentadas...”
No entanto, O Povo Brasileiro: a Formação e o Sentido do Brasil (São Paulo, Cia. Das Letras, 1995) é uma obra exultante em que o idealismo de Darcy acredita que pode transformar o mundo através do poder das palavras, como se o Brasil pudesse existir a partir do seu raciocínio de que “o processo de formação dos povos americanos tem especificidades que desafiam a explicação”.
Quando é que no Brasil se pode falar de uma etnia nova operativa? Darcy pergunta e responde: quando milhões de pessoas passam a se ver não mais como oriundos dos índios de certa tribo, nem de africanos tribais ou genéricos, porque de lá já haviam saído, e muito menos como portugueses metropolitanos ou nascidos aqui. “Essas pessoas se sentiram soltas e desafiadas a construir-se, a partir das rejeições que sofriam, com nova identidade étnico-nacional: a de brasileiros”.
Darcy procura o lugar do Brasil na História da humanidade, porque teima em acreditar que o Brasil é um país do futuro. Neste ponto, a postura política do grande mestre fala mais alto e o seu programa educativo acaba se confundindo com o livro. Para ele, somos um povo maravilhoso, com grande criatividade cultural, principalmente artística, só falta chegar ao séc. XXI com o domínio da tecnologia para sermos a potência econômica mestiça e tropical do futuro.
A representação multiétnica do Brasil é antológica. A sociedade brasileira seria “melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da terra”. O discurso da utopia tem muito mais arte que ciência, muito mais sedução que raciocínio, muito mais sabedoria que exatidão.
Concluo, pedindo emprestado uma vez mais as palavras de Carlos Alberto Dória sobre Darcy Ribeiro:
“Este camarada baixinho e falante, este Macunaíma do mundo intelectual, tem uma virtude que todos reconhecem: um amor a seu país que, ainda que fora de moda, é de fazer inveja. Um amor irracional como todo bom sentimento. Não conheço outro que tenha tido tanto amor ao Brasil depois de Capistrano de Abreu. Um amor erudito, que vai conformando as leituras que fez ao longo da vida e encaixando as peça do quebra-cabeças-brasil até parecer lógico. Sua teoria de que estamos gestando uma nova etnia através do cunhadismo, da desindianização, da incorporação compulsória dos negros, dá um sentido novo à violência. Através dela alcançam-se paradoxalmente condições ideais para a transfiguração étnica, pois as matrizes originais se veem condenadas a inventar uma nova etnicidade englobadora de todas elas”.