.O índio tinha um preço em meados do século XIX, quando quase 60% da população recenseada da jovem Província do Amazonas era constituída por índios aldeados, sem contar os milhares de índios isolados que não foram recenseados. A população de escravos negros, embora importante para a formação da cultura local, era reduzidíssima e não ultrapassava o número de 500 o que permitiu que a abolição fosse proclamada no Amazonas quatro anos antes do que no resto do Brasil, num dia como hoje, 10 de julho de 1884. Desta forma, os negociantes ligados especialmente ao extrativismo, mas também à agricultura incipiente, encaravam os povos indígenas como a principal fonte de mão-de-obra. Se o índio não trabalhasse, ninguém comia no Amazonas, as atividades econômicas ficariam totalmente paralisadas. Portanto, seu preço na bolsa de trabalho era alto.
Os deputados da Assembleia Legislativa Provincial, representantes da minoria de 8% que se considerava “branca” e que controlava todo o processo produtivo, se lançaram com descomunal sofreguidão sobre este imenso potencial da força de trabalho. Os nobres parlamentares não esperaram sequer que a Casa Legislativa fosse organizada para colocar as unhas de fora. Na terceira sessão da primeira legislatura da recém-criada Assembleia Legislativa da Província, isto é, no terceiro encontro que tiveram os primeiros deputados da História do Amazonas no dia 9 de setembro de 1852, após os rapapés de praxe e os beija-mão de costume, foi lido o “primeiro” projeto que vamos transcrever na íntegra por se tratar de uma verdadeira “pérola emancipadora”.
Art. 1º. – Fica livre a todo morador poder ir contratar a troca dos indígenas bravios com os principais das nações selvagens.
Art. 2º. – Feita a troca, o indivíduo apresentar-se-á com os indígenas perante o Juiz de Paz mais vizinho para assinar um termo de educação por espaço de dez anos.
Art. 3º. – Concluídos os dez anos de que trata o artigo antecedente, poderá o índio ser aldeano.
Art. 4º. – Impor-se-á a multa de 100 mil reis e 20 dias de prisão a todo solicitador de índios da casa de seus amos; os aliciados serão obrigados por qualquer autoridade judiciária ou militar a voltarem para casa dos referidos amos.
Briga de “branco”
As disposições em contrário eram revogadas. Os índios eram assim considerados legalmente como qualquer produto da selva que podia ser arrancado e extraído para uso e abuso da minoria que se autoidentificava como “branca”. O Governo Provincial apoiava toda a iniciativa privada na exploração da mão de obra indígena sob o pretexto de que o “índio bravio” receberia uma educação “civilizadora” podendo dentro de dez anos – imaginem que magnanimidade – ser considerado um “aldeano”. No entanto, se um “branco” quisesse “educar” um índio colhido no mato por outro “branco”, pagava multa e entrava em cana. Resguardava-se assim o monopólio da “educação” na base do “eu vi primeiro, é meu”.
Mas o projeto não vingou. Não bastava permitir a caça ao índio. Era necessário incentivar os agentes com prêmios. Os nobres deputados voltaram a entrar na História pelas portas dos fundos alguns anos mais tarde. A Lei nº 86, de 22 de outubro de 1858, decretada pela Assembleia Legislativa Provincial e sancionada pelo presidente da Província Francisco José Furtado, além de conceder um prêmio de 200$000 reis a cada mil árvores frutíferas de cacau plantadas em terreno próprio, em seu artigo terceiro concedia ainda “o prêmio de 50$000 reis por indígena isolado e 100$000 reis por chefe de família indígena excedente a duas pessoas maiores de oito anos de idade, ao empresário que colonizar e fizer rezidir no estabelecimento número superior a 15 indígenas”.
No entanto, não podia ser qualquer índio. A lei era bastante clara no seu artigo 4º quando estipulava que “para que haja lugar ao pagamento do prêmio estabelecido é preciso que seja o indígena dos que são reputados propriamente gentios, sem vislumbre de civilização e extraído das mattas”.
O Governo estabelecia no art. 5º uma rigorosa fiscalização para evitar trapaças dos “brancos”. “Branco”com “branco”se entendem, mas o Governo da Província temia que “os empresários amazonenses” empurrassem gato por lebre e trouxessem fraudulentamente índios já em contato, abiscoitando assim indevidamente a grana destinada como prêmio.
Leilão de índios
Mais de um século depois deste “leilão-leilão quem dá mais”, podemos imaginar os deputados que almoçavam e jantavam o fruto do trabalho indígena discutindo a forma mais adequada de explorar avidamente a força de trabalho dos donos efetivos do território amazonense que justamente teriam de ser espoliados de suas terras para se transformarem em mão de obra semiescrava. Tudo isto, além de ser uma forma de “cuspir no mato em que comiam” – o que é um juízo moral – era também uma burrice espetacular, uma estupidez siderúrgica, com consequências idênticas ao extrativismo selvagem, que em nome do lucro imediato destruiu as árvores que proporcionavam a riqueza.
Numa Assembleia de uma província majoritariamente indígena, onde os índios não se achavam representados, os deputados foram responsáveis por uma política que mais tarde o próprio marechal Rondon classificaria como genocida. Fazendo as contas na ponta do lápis podemos concluir que um índio isolado tinha o mesmo valor que 250 árvores de cacau ou de café, mas se era chefe de uma família com pelo menos duas pessoas maiores de oito anos então o seu valor duplicava para 500 árvores.
Isto tudo ocorreu há mais de cem anos. Hoje no Amazonas, os índios não mais constituem demograficamente uma maioria esmagadora como naquela época, devido justamente a esta política que conduziu nações inteiras ao extermínio. Portanto, o valor do índio não é mais o de mão de obra barata, embora os Makuxi e os Wapixana de Roraima – vaqueiros improvisados de um novo tempo – garantam o contrário. Hoje, o preço do índio deve ser medido, sobretudo, pelo valor de suas terras. Parece mais cômodo, porém, ficar limitado ao passado. De qualquer forma, fica a pergunta: quanto vale um índio, hoje, no Amazonas? O leitor, por analogia e com auxílio da inteligência e de uma calculadora eletrônica, que dê uma resposta.
P.S. Publicada no jornal A NOTICIA, de Manaus, em 27 de abril de 1979, pg. 3, 1º Caderno.
COMBIEN VAUT UN INDIEN EN AMAZONIE?
José Ribamar Bessa Freire
Voici un peu plus d´une centaine d´années, alors que près de 60% de la population recensée dans la nouvelle Province de l´Amazonas était constituée d´indiens sédentarisés (sans compter les milliers d´indiens isolés et par conséquent non recensés), l´indien avait un prix. En plus d´un nombre très réduit d´esclaves noirs (leur total n´excédant pas 500 personnes), les populations indigènes constituaient la principale source de main d´oeuvre pour les propriétaires de plantations et pour les commerçants liés à l´extraction minière. Sans le travail de l´indien, personne n´aurait pu se nourrir en Amazonie et les activités économiques auraient été totalement paralysées. Par conséquent, le prix de l´indien sur le marché du travail était élevé.
Les Députés de l´Assemblée Législative de la Province, représentants de la minorité des 8% de blancs vivant sur le territoire et possédant le controle de l´ensemble du processus de production profitèrent avec um avidité sans commune mesure de cet énorme potentiel de force de travail. Ces nobles députés sortirent leurs griffes avant même que l´organisation de la maison ne soit en place. Le 9 septembre 1852, au cours de la troisième session de la première Assemblée Législative réunie dans la Province, c´est-à-dire au cours de la troisième rencontre des premiers deputes à figurer dans l´Histoire de l´Amazonas, fut donné lecture du premier projet que nous transcrivons ici intégralement car il constitue une véritable “perle émancipatrice”:
Art. 1º - Tout habitant sera autorisé à contracter librement l’échange des féroces indigènes avec les chefs des nations sauvages.
Art. 2º - Une fois l’échange négocié, la personne devra comparaître en compagnie des indigènes devant le Juge de Paix du canton le plus proche afin de signer un engagement d’éducation pour une période de dix ans.
Art. 3º - Au terme des dix ans dont ils est fait mention à l´article 2, l´indien pourra être intégré au village.
Art. 4º - Sera redevable d´une amende de 100 000 réis et d´une peine de 20 jours de prision tout demandeur comparaissant pour les indiens appartenant à une maison de maître; les suborneurs seront obligés par toute autorité judiciaire ou militaire à restituer les indiens à la maison desdits maîtres.
Les dispositions contraires furent révoquées. Les indiens étaient légalement considérés comme des produits de la forêt, susceptibles d´être arrachés et extraits, la minorité blanche pouvant en user et en abuser à sa guise. Le Gouvernement de la Province encourageait toutes les initiatives privées d´exploitation de la main d´oeuvre indigène, sous prétexte que « l´indien féroce » recevrait une éducation « civilisatrice » et pourrait, au bout de dix ans (quelle magnanimité !), être considéré comme « membre de la communauté villageoise ». Cependant, si un blanc désirait faire l´éducation » d´un indien cuelli dans la forêt par un autre blanc, il devait payer une amende et purger une peine de prison. Ainsi, le « monopole de l´éducation » était préservé sur la base du postulat : « c´est moi qui l´ai vu le premier, il est à moi. »
Mais le projet fut sans effet. Il ne suffisait pas d´autoriser la chasse à l´indien; il fallait encore l´encourager par des primes. Les nobles députés entrèrent une nouvelle fois dans l´Histoire par les coulisses, quelques années plus tard. Le Loi nº 86 du 22 octobre 1858 fut promulguée par l´Assemblée Législative de la Province et approuvée par le Président de la Province, Francisco José Furtado; en vertu de cette loi, une prime de 200 000 réis était concédée à qui planterait sur son terrain 1 000 pieds de cacao ou de café; en outre, en vertu de l´article 3 de cette même loi, une prime de 50 000 réis pour chaque indigène isolé et de 100 000 réis pour chaque famille indigène comptant plus de deux personnes et des enfants âgés de plus de 8 ans était attribuée à tout entrepreneur qui coloniserait et ferait résider sur ses terres un nombre d´indigènes supérieur à 15.
Cependant, cette mesure n´était pas applicable pour tout indien. L´article 4 de la Loi stipulait de manière claire: « pour bénéficier de la prime à laquelle il est fait référence, l´indigène devra faire partie du groupe d´indigènes connu pour être docile, ne devra pas avoir connu la civilisation et devra effectivement provenir de la forêt ». Le Gouvernement mettait en place dans l´article 5 un contrôle rigoureux destiné à prévenir les fraudes des blancs. Les blancs s´entendent entre eux, mais le Gouvernement de la Province craignait que les « entrepreneurs amazoniens » ne veuillent faire prendre des vessies pour des lanternes et ne fassent venir sur leurs domaines des indiens déjà en contact avec les blancs, détournant ainsi les fonds attribués sous forme de primes.
Plus de 100 années après ces « enchères au plus offrant », nous n´avons pas de peine à nous représenter ces députés consommant au déjeuner et au dîner le fruit du travail indigène en discutant avec avidité de la forme d´exploitation la mieux appropriée de la force de travail des véritables propriétaires du territoire amazonien, ceux-là même qui devaient être chassés de leurs terres pour se transformer en main d´oeuvre semi-esclave. Tout ceci constituait non seulement une façon de « cracher dans sa propre soupe » ( ceci est un jugement moral), mais aussi une preuve éclatante de bêtise dont les conséquences étaient identiques à celles des pratiques d´extraction sauvage qui, au nom du profit immédiat, entraînaient la destruction des arbres producteurs de richesse.
Ces députés d´une Assemblée dans laquelle les indiens ne se jugeaient pas représentés furent les instigateurs d´une politique qualifiée plus tard de génocide par le maréchal Rondon. Si nous faison les comptes, crayon en main, nous découvrons qu´un indien isolé avait la même valeur que 250 pieds de cacao ou de café et qu´un indien chef d´une famille de plus de deux personnes ayant des enfants âgés de plus de 8 ans avait la même valeur que 500 pieds de cacao ou de café.
Tout ceci se passait il y a plus de 100 ans. Les indiens ne constituant plus, dans l´Amazonie d´aujourd´hui, la majorité écrasante qu´ils constituaient à cette époque, en raison justement de cette politique qui a conduit à l ´extermination des nations entières. Cependant, l´indien n´est plus fondamentalement considéré aujourd´hui comme main d´oeuvre bon marché; bien que les Makuxi et les Wapixana du Roraime (vachers improvisés des nouveaux temps), viennent apporter la preuve du contraire. Aujourd´hui le prix de l´indien se calcule avant tout en fonction de la valeur de seus terres. Il est cependant plus prudent et plus commode de nous en tenir au passé. La question n´en reste pas moin posée: Combien vaut unm indien dans l´Amazonie d´aujourd´hui ? Le lecteur pourra procéder par analogie et, calculatrice électronique en main, donner la réponse à cette question.
PS. - SAUVE QUI PEUT L´AMAZONIE (Nº 3 – Septembre 1983) Bulletin du Comité International pour la Défense de l´Amazonie (CIDA), association qui a pour but d´informer et sensibilizer l´opinion française et international sur la situation de l´Amazonie. Ont contribué dans ce numero : N. Vand Der Linden, Marilza Alves de Mello, P. Foucher, M. Althuon, D. Kerbaol, José Ribamar Bessa, O. Garcia, T. Garcia et R. Athias. CIDA – Adresse de correspondance 1, rue Montmartre, 75001 - Paris