"Wa tuminke ry tuman ipei. Amazad Way nau ary. Ipei Amazad, Imii, Atamyn, wyn tuman ipei um uribenau aty. Wa STF tan watywa amazad ipei aunaa kaimanau tuminpei y kabutan tiriez aty. Wayana Bii". (*) Joênia Batista de Carvalho, wapixana, fala no STF;
(*). "Nosso Deus fez todas as coisas. Nossa terra, nossas florestas, nossos rios. Fez tudo para nós e para todos os parentes viverem bem. Que o SupremoTribunal Federal reconheça nossos valores indígenas, nossa cultura, nossa vida. Chega de violência!” (Joênia Carvalho, advogada Wapixana)
A fala de Joênia, em língua wapixana, na sessão do STF em 27 de agosto de 2008, me remeteu a um curso de história em Roraima, cujo comprovante eu havia perdido. No entanto, interessado em saber quais as informações que os órgãos de segurança tinham sobre a minha (até então) modesta pessoa, requeri à Casa Militar da Presidência da República, em fevereiro de 1998, meu ´habeas-data’, dentro da lei. Seis meses depois, a Subsecretaria de Inteligência me enviou uma certidão com resumo dos dados existentes em seus arquivos oficiais. Lá, apareço como “um dos mais importantes esquerdistas da área”. Quanto exagero! Minha (agora) orgulhosa pessoa não é tão merecendente.
São mais de 200 registros de eventos durante 23 anos, desde 15 de setembro de 1966, quando fui preso pela primeira vez pela Polícia Militar do então Estado da Guanabara até 20 de abril de 1989, quando participei – imaginem só! – de um debate estritamente acadêmico realizado no Museu Goeldi, em Belém, para discutir a história da Língua Geral na Amazônia. O que é que tem a ver o cós com as calças?
Os dedo-duros parece que não tinham outra coisa que fazer. Xeretaram tudo: atividades estudantis, políticas, sindicais, jornalísticas, acadêmicas, religiosas, familiares, afetivas, inclusive as realizadas fora do país. Entre tantas subversões, quero destacar com muito orgulho o pequeno registro que diz: “Foi um dos instrutores do Curso de História da Ocupação da Amazônia, promovido pela Diocese de Roraima e coordenado pelo CIMI, no período de 12 a 14 de janeiro de 1985, na Casa João XXIII, em Boa Vista (RR)”.
´Instrutor´ é ótimo! Linguagem de milico! Parece adestrador. O (mau) ‘elemento’ que digita essas linhas era, na época, professor (e não ‘instrutor’) de História da Amazônia na Universidade Federal (UFAM), em Manaus. Havia pesquisado documentos históricos nos arquivos de Portugal, Espanha e França. Nessa qualidade, foi convidado, como docente, a ministrar um curso para professores e lideranças indígenas de Roraima, junto com o saudoso Carlos Moreira Neto, então diretor do Museu do Índio (RJ).
Na verdade, no curso os ‘instrutores’ foram os índios, que nos ensinaram a sua história de luta e de resistência nos últimos três séculos e fizeram a nossa cabeça. De qualquer forma, o registro da ABIN teve uma utilidade, porque permitiu incorporar ao meu Curriculum Lattes o curso ministrado, do qual não possuía qualquer comprovante.
O Direito
Só estou exibindo aqui as minhas – digamos assim – credenciais, porque nessa próxima quarta-feira, dia 27 de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar se os índios da Raposa-Serra do Sol têm direito de continuar vivendo na área contínua que ocupam há muitos séculos e que já foi demarcada e homologada pelo presidente da República. Considerando que os órgãos de segurança reconheceram minha competência como ‘instrutor’, me sinto obrigado a opinar sobre o caso.
A Constituição de 1988, que é a lei maior do país, deu uma boa e uma má notícia aos índios. A boa: “Meus filhos, durante cinco séculos o Estado colonial português e depois o Estado neo-brasileiro permitiram e estimularam invasão de malocas, saqueio, roubo de terras, escravização e massacre das populações indígenas. O que passou, passou. Nada podemos fazer. Manaus, que era terra indígena, e outras cidades jamais poderão ser recuperadas. Vocês perderam definitivamente 87% das terras”.
Mas com essa veio uma boa notícia: “A partir de hoje, 1988, o Estado brasileiro garante que cessou esse processo de espoliação colonial. Vocês, índios, não podem reaver o que perderam, mas em compensação aquelas terras que conservaram não serão mais invadidas ou roubadas. O Brasil quer que vocês façam parte da nossa nação”.
Ocorre, no entanto, que políticos e arrozeiros, depois de recente invasão às terras indígenas de Roraima, passaram a pressionar os poderes constituídos. Criaram o falso município de Uiramutã, sem obedecer as determinações legais do artigo 18 da Constituição e exigiram que a demarcação fosse em área descontínua, abrindo “ilhas” para poderem continuar mantendo suas propriedades ilegais.
Tudo isso foi feito, como escreveu o jurista Dalmo Dallari na Folha de São Paulo, “com a colaboração de autoridades públicas que deveriam ser um padrão de dignidade e honestidade, mas que acobertam e auxiliam os grileiros das terras indígenas, simulando preocupação com o Direito, a Justiça e a soberania nacional, mas na realidade, colaborando para a espoliação do patrimônio público e a consumação de inconstitucionalidades”.
A Lei da Selva
A decisão que o STF deve tomar nessa próxima quarta-feira, se o julgamento não for adiado por algum pedido de vista, vai definir se o Brasil quer continuar o massacre histórico às populações indígenas ou se considera importante para a minha vida e a tua vida, leitor (a), que os índios façam parte do nosso país.
Como assinala Dalmo Dallari no artigo citado, “a decisão que for tomada poderá ter o efeito gravíssimo de anular todas as demarcações de áreas indígenas feitas até hoje com rigor técnico e estrita obediência a regras constitucionais e legais”. Raposa Serra do Sol levou trinta anos para ser demarcada, seguiu todos os rituais, não apresenta qualquer vício, sequer processos com páginas enumeradas de forma equivocada.
O STF, tão preocupado com as algemas em Daniel Dantas e outros colarinhos-brancos acusados de crimes de fraude e suborno, vai definir nessa quarta-feira se é um guardião da Constituição ou se está disposto a instaurar a Lei da Selva, o direito do mais forte, permitindo que a continuação do genocídio contra as populações indígenas.
Segundo informações do Serviço de Inteligência registradas ontem pela Folha de São Paulo, nos últimos dias teriam chegado na região jagunços vindos de Boa Vista e até de outros Estado, que estão circulando em área indígena em cerca de cem motocicletas.
A mesma Folha registra que “segundo acusam a PF e o governo, o responsável por municiar os arrozeiros é o coronel reformado do Exército Gélio Fregapani, que atuou por mais de dez anos na ABIN, foi secretário de segurança pública no Estado, além de um dos fundadores do CIGS (Centro de Instrução de Guerra na Selva)”.
O que vai ser julgado pelo STF na próxima quarta-feira não é só a demarcação da Raposa Serra do Sol, mas o lugar dos índios na sociedade brasileira.