“Adeeeeeus, Manaus / está chegando a hora da parti-ida
adeus, Manaaaaus / o nosso adeus será por toda a vi-ida”.
Pouca gente conhece essa música que Waldick Soriano cantava, nos anos sessenta, quando se despedia de Manaus, aonde vinha com muita frequência. Depois do show em clube familiar, ele terminava a noitada num centro de convivência e lazer, denominado ‘Lá Hoje’, que ficava ali, perto da atual Rodoviária. Lá, já descontraído, no meio das meninas, soluçava, levando a zona inteira ao delírio:
- ‘Adeeeeeus, Manaus / adeus meu paraíso minha vi-ida / adeus Manaus / quem é que não chora na hora da parti-ida’.
Epa! Manaus, um ‘paraíso’? Para ele, era. Naquela época, Waldik, ainda desconhecido no resto do país, mobilizava multidões na capital amazonense, cuja população o idolatrava. Não é exagero afirmar que o sucesso desse cantor baiano radicado em São Paulo começou aqui, na nossa cidade, que soube apreciar aquela ‘voz rascante de corno transtornado’ e seu repertório de boleros românticos cheios de gemidos e queixumes de amor. Grato, ele compôs uma música para a cidade cuja letra, para variar, falava de desencontro e separação: “essa noite eu chorei tanto, ao saber que ia partir agora”.
Logo depois, Waldick foi fazendo sucesso em todo o Brasil, sobretudo entre gente humilde e sofredora. Com pinta de Durango Kid, chapéu preto de vaqueiro, óculos escuros e cabelos com muita brilhantina penteados pra trás, gravou mais de 500 músicas em 84 discos. O fato de ter sido lavrador, garimpeiro, motorista de ônibus e faxineiro, com experiências de trabalho no mundo rural e urbano, talvez tenha ajudado esse baiano de Caetité a entender a alma romântica do povo brasileiro e a figurar no hit parade da vitrola da Leonor.
A vitrola da Leonor
Dizem as más línguas que a vitrola da Leonor havia sido um presente do seu cunhado Petel, que nutria por ela uma paixão secreta, avassaladora, mas não concretizada. Esse amor proibido pelas convenções sociais envolvendo Leonor, Petel e seu irmão João Camilo já era, por si só, letra de música de Waldick. Talvez daí se explique o seu sucesso. Ele cantava o que as pessoas sentiam e viviam no seu cotidiano.
Mas antes, deixa que eu te apresente a dona da vitrola: Leonor, nossa vizinha no bairro de Aparecida, mulher honesta e trabalhadora, dona de uma pequena quitanda de verdura e fruta, casou-se com o taxista João Camilo, já falecido, com quem teve vários filhos. Era tão fofa, que quando eu estava exilado, na França, me mandou uma penca de bananas, que minha mãe levou escondida dentro da mala, e que foi confiscada pela polícia francesa.
Não foram feitos ainda estudos conclusivos, mas é provável que o amor impossível do Petel tenha sido decisivo no repertório da vitrola da Leonor. Ele gostava da cunhada e esnobava a Cecéu, que era apaixonada por ele. Por isso, chorava, quando ouvia o Waldick cantar:
-“Quem eu quero não me quer / Quem me quer mandei embora / E por isso já não sei / o que será de mim agora. / Passo a noite meditando / revivendo meu castigo / no meu quarto de saudade / solidão mora comigo”.
A vitrola tocava a todo volume, dia e noite, noite e dia, e o som da vizinha estrondava dentro da nossa casa:
“Por onde anda quem me quer, quem não me quer onde andará?”.
Esteticamente falando, a vitrola da Leonor foi responsável pela formação do meu gosto musical. Quando a Marluce Saubinha, que morava em frente da Igreja, andou falando mal de mim, quem me salvou foi o Waldick:
- “Quem és tu / para querer manchar meu nome? Quem és tu / Não és ninguém, não és nada/ Quando eu te conheci, vivias pelas ruas / desprezada na calçada”.
Se eu deixasse ligada a vitrola da Leonor, agora, o leitor ouviria as 500 músicas do Waldick, incluindo um dos seus grandes sucessos:
- “Esta noite, eu queria que o mundo acabasse / e para o inferno o Senhor me mandasse / para apagar todos os pecados meus/ Eu fiz sofrer a quem tanto me quis / Fiz de ti meu amor infeliz / Esta noite eu queria morrer”.
Convém, no entanto, ver o que estava acontecendo em outras ruas.
A quermesse de Aparecida
Não era só na casa da Leonor e na nossa rua. Waldick imperava também em todo o bairro e na cidade, através das três emissoras locais de rádio: Baré, Difusora e Rio-Mar. No ‘Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida’, só dava Waldick. De cada dez músicas escolhidas pelos DJs Zeca Pinto e Jefferson de Souza, nove eram cantadas pelo Waldick. A décima era de Bienvenido Granda, o cubano que migrou para o México, conhecido como “o bigode que canta”. Ambos têm um repertório comum, formado por bolerões.
Nesse sentido, Waldick era vanguarda. Muito antes de se falar em integração latinoamericana, ele já tinha feito uma ponte, gravando versões de sucessos do mundo hispanoamericano como Perfume de Gardênia, Graças, Senhora, Angústia, Oração Caribe, Teu preço, Por um capricho, Mil Tragos, Não toques esse disco e tantas outras.
Não havia noite que a Voz Quermesse de Aparecida deixasse de tocar:
- “Perfume de gardênia / Tem em tua boca / Eu vivo embriagado/ Na luz do teu olhar / Teu riso é uma rima / De amor e poesia / Macios teus cabelos / Qual ondas sobre o mar”.
A indústria de dentifricio bobeou, se fabricasse um creme dental com o nome de ‘Perfume de Gardênia’ conquistaria o mercado amazonense.
Conto o milagre, mas não dou nome do santo, porque ele ainda vive. Vamos chamá-lo com o nome bíblico de Putifar, chefe da guarda do faraó, cuja mulher andou dando em cima do José. Pois é, alguém enviou um ‘telegrama no ar’ para o Putifar do bairro de Aparecida, dedicando-lhe essa música:
- “Senhora, te chamam senhora / todos te respeitam, / Quem vê quem tu és / Senhora, és uma senhora / mas és mais perdida / que as que precisam perdidas viver./ Senhora, manchaste o nome / o nome de um homem / que um dia em teus braços feliz tentou seeeer”.
Não conto o rolo que deu, porque não sou fofoqueiro, mas o bairro sabe.
As meninas do ‘La Hoje’ iam ao delírio e choravam, quando o vozeirão do Waldick falava de noites de amor, de triângulos amorosos, de traição, ciúme, angústia:
- “Quero viver junto a ti, volta, meu amor, fica comigo, não me desprezes, a noite é nossa e meu amor pertence a ti. Ou então: “Angústia / De esperar por ti / tormento / de esperar-te, amor / Contigo / se foi a ilusão / angústia / feriu meu coração”.
No final, elas acabavam implorando para que aquela música não fosse tocada, mas até nisso Waldick interpretava os sentimentos de todas:
-“Não toque esse disco, que ele me atormenta, ouvindo esse disco, eu fico a recordar, a história dessa música, relembra meu passado, revive em minha alma as penas que sofri”.
Não sei se Patricia Pillar, no seu documentário “Waldick, sempre no meu coração”, registra a relação especial do cantor com Manaus. Se não o fêz, está incompleto. Vamos encomendar outro filme para Donatela Fontini.
De qualquer forma, se eu não estivesse acamado e com febre, nessa sexta-feira, juro que teria ido ao enterro do cantor Waldick Soriano, no cemitério do Caju, no Rio. Pediria uma procuração dos candidatos a prefeito de Manaus – quatro deles certamente me dariam – e em nome da cidade, deixaria uma coroa de flores com a seguinte mensagem:
“A vitrola da Leonor quebrou, o Petel morreu, não existe mais arraial de Aparecida, mas a gente não esquece tuas músicas. És eterno como a dor de corno, a dor de cotovelo e a breguice que existe dentro de todos nós. Adeus Waldick. Manaus te agradece”.
P.S. – Dedico esse texto a uma colega do Curso Clássico do Colégio Estadual do Amazonas, Thereza Porto Mello, sobrinha do Arlindo Porto, que me ensinou a gostar do Waldick Soriano, sem o preconceito besta de quem quer ser chique.