CRÔNICAS

III. Rio Negro: as malocas e as muralhas

Em: 18 de Fevereiro de 1987 Visualizações: 15203
III. Rio Negro: as malocas e as muralhas
"O rio traz nos dentes / as rédeas / de nossas vidas"
Aldísio Filgueiras (1947-    ), poeta amazonense.
 
O primeiro viajante europeu a passar pela foz do rio Negro foi Orellana, num sábado de junho de 1542, véspera da Santíssima Trindade, quando os espanhóis invadiram uma povoação indígena aí localizada, saquearam-na e se abasteceram de alimentos que existiam em abundância.
A povoação foi descrita como estando situada em uma lomba afastada do rio, fortificada por uma muralha de grossos troncos com uma praça no meio. Ainda próximo à foz, Orellana encontrou outra aldeia de porte médio:
"Havia lá uma praça muito grande e no meio da praça um grande pranchão de 10 pés em quadro, pintado e esculpido em relevo, figurando uma cidade murada com a sua cerca e uma porta".
Cem anos depois, o padre Acuña, ao navegar pela mesma foz, nominou a existência ali de pelo menos 12 nações diferentes: "Os que residem nas águas do rio Negro são grandes Províncias".
A grande quantidade de índios habitantes do rio Negro deixou os soldados portugueses da expedição de Pedro Teixeira excitados pela possibilidade de levá-los como escravos a Belém, no que foram impedidos por interferência do padre jesuíta espanhol.
As nações indígenas

Um dos militares portugueses presente neste episódio, Mauricio de Heriarte, em relato posterior (1662) descreveu a região do rio Negro como "terra mui grande e povoada":
"He este rio povoado de inumerável gentio. Tem um principal na bocca, que fica nas duas Amazonas, que he como o Rei por nome Tabapari. Tem debaixo de seu domínio muitas aldeias de diversas nações e dellas he obedecido com grande respeito".
Esses povos que habitavam a região banhada pelo rio Negro falavam línguas que pertenciam, em sua grande maioria, ao tronco linguístico Aruak. Três deles se destacaram historicamente, enfrentando-se ao conquistador: os Manáo, que emprestaram seu nome à atual capital do Amazonas, os Baré, que continuam resistindo e os Tarumã, considerados extintos.
As primeiras notícias  mais seguras sobre os Manáo são do século XVII. Eles são chamados no relato de Acuña de Managus e Amanagus e trocavam com os vizinhos Ybanomas e Yurimaguas adornos de ouro, obtidos em outras regiões, por ralos de mandioca e redes. Mais tarde (1686), outro jesuíta, o padre Samuel Fritz, confirma a informação e fornece mais detalhes.
Os Manáo constituíam a nação mais importante da área, habitando as duas margens do baixo rio Negro, desde a foz do rio Branco até a ilha Timoni. No momento da invasão colonial pareciam estar em pleno processo de expansão territorial em direção ao oeste, espalhando-se pela região do rio Japurá. Sua população foi estimada, já decrescida após os violentos choques armados com os portugueses no século XVIII, em mais de 10.000 almas.
Os Tarumã, ceramistas refinados, “eram conhecidos como excelentes criadores e treinadores de cães de caça e como fabricantes de ralos de mandioca” – escreveu Loukotka (1895-1966), um pesquisador que dedicou sua vida a buscar nos arquivos documentos sobre línguas indígenas, entre elas a língua Tarumã. Constituíam uma nação pequena assentada nas proximidades da atual zona oeste da cidade de Manaus, nos rios Tarumã e Ajurim, ambos afluentes da margem esquerda do Negro.
Mas aí, aconteceu uma desgraça: “mandakϊna wanicú”, em língua tarumã, ou “os estrangeiros chegaram”, como nos traduz Loukotka. Os primeiros forasteiros - conta Serafim Leite – foram os jesuítas Francisco Veloso e Manoel Pires na primeira entrada histórica do vale do Rio Negro, em  1657, quando plantaram “a cruz na aldeia dos Tarumãs, a primeira do Rio Negro”. Os índios assistiram a missa com curiosidade e respeito e trataram amistosamente os dois padres que “dali voltaram ao Pará alguns meses depois”.
Os Baré dominavam a parte superior do rio Negro e ocupavam ainda uma área vizinha aos Manáo , situando-se mais acima  da atual cidade de Moura, num território extenso "que abarcava grande população". Produziam bebidas fermentadas e em suas festas dançavam com o corpo pintado de jenipapo.
As informações sobre os padrões de povoamento das nações indígenas do rio Negro são muito escassas e estão dispersas na documentação oficial, que não é muito generosa sobre isso.
As habitações do povo Manáo tinham a forma cônica e ali onde a população era mais densa, suas casas tinham paredes de barro, provavelmente misturado com palha, já no período colonial, segundo informações de Alfred Métraux. Seus mortos, enrolados em redes, eram enterrados em fossas cavadas dentro da própria habitação, contendo algumas delas escavadas posteriormente mais de 100 sepulturas.
Os Baré habitavam em grandes malocas construídas com estacas verticais, provavelmente do tipo daquele vista por Heriarte na foz do rio Negro: "casas redondas fortificadas com estacadas como casas fortes". Em volta da aldeia estavam localizadas as roças, sendo cada maloca ocupada por diversas famílias nucleares. Em seu interior, ao longo das paredes, havia jiraus.

As moradias
Temos conhecimento da existência de formas variadas de casas: retangulares, cilíndricas, cônicas, ovaladas, assim como de aldeias em formatos circular, retangular ou linear, compostas por casas alinhadas ao longo do rio, como também de malocas comunais e multifamiliares - grande e única habitação que abrigava uma comunidade inteira.
O tipo de construção variava de acordo com o seu caráter mais ou menos temporário. Como esses povos praticavam a agricultura de coivara, existia uma certa mobilidade dentro do território tribal, obrigando-os a mudar a localização da aldeia com determinada regularidade.
A floresta, habilmente manejada, funcionava como uma usina de produção de material de construção: as árvores forneciam madeira para os esteios, vigas e travessões; as amarrações eram feitas por diferentes tipos de cipó e embira, abundantes na região, com o uso também das técnicas de encaixe com paus escavados para melhor ajustamento, enquanto a cobertura era feita de folhas de variados tipos de palmeira. No entanto, era necessário conhecer, saber selecionar e trabalhar sobre esses elementos.
Dados também fragmentados nos dão indicações aqui e ali sobre a organização do espaço interno dessas habitações. Algumas generalizações talvez possam ser feitas: essas casas eram muito limpas e varridas, com temperatura ambiental agradável, permitindo a circulação de ar e a entrada maior ou menor de luz, de acordo com as necessidades do momento.
Na maioria das habitações, as redes eram armadas em vigas e as cestas penduradas em estacas, contendo objetos de uso pessoal, que também eram guardados enfiados no teto.
A aldeia
Os critérios usados para determinar a localização de uma aldeia eram, entre outros: a existência próxima de matéria-prima para a construção das habitações, o tipo de solo para a agricultura, a proximidade de zonas de caça e pesca e de rios e igarapés que permitissem o uso da canoa - meio de transporte vital para o deslocamento que era feito prioritariamente pela água.
No entanto, alguns relatos dão conta da existência também de caminhos mais ou menos largos e limpos que ligavam as aldeias às roças e de caminhos mais estreitos - pequenas picadas e trilhas - que cortava a parte da floresta circundante em diferentes sentidos, permitindo a ligação das aldeias com os igarapés, com os sítios de caça e pesca e com outras aldeias.
Essas informações, embora dispersas, sugerem algumas ideias sobre a forma como se movimentavam os índios, o modo como se relacionavam entre eles, o uso dado às suas habitações e o significado da aldeia e do território na vida dessas nações.
Uma primeira dedução lógica permite sustentar a afirmação de que, para muitas dessas sociedades, a casa não era o ponto de referência mais importante, não podendo, portanto, ser compreendida em forma isolada do contexto da aldeia e do próprio território com a qual ela estava plenamente integrada.
Muitos povos do rio Negro usavam a casa apenas para comer e descansar, realizando a maioria das atividades fora dela, ampliando assim a própria noção do que era o espaço doméstico. Algumas exceções podem ser constatadas no caso de grandes habitações como aos do já citados Baré, ou  dos Tukano que ainda ocupam o alto Uaupés, em cujo interior se desenvolviam muitas atividades cotidianas, o que levou esses índios a atribuírem uma maior importância à habitação, manifestada através do seu requinte arquitetônico e decorativo, conforme observa Lux Vidal em artigo publicado no livro "Habitações Indígenas".
Em qualquer dos casos, o território indígena aparece sempre como um poderoso elemento de identidade que coesiona o grupo e como um espaço integrado e único, não separando por grandes distâncias o local de moradia da roça, do igarapé e de outras áreas necessárias para o lazer e para as atividades produtivas. Essa concepção de organizar o território será profundamente abalada com a invasão dos portugueses que consideram os índios como ãs muralhas dos sertões". .

(Na próxima semana Manaus, terra dos Barés)..

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2 Comentário(s)

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MARAVILHOSAAAAAA!!!!!!!! comentou:
28/10/2024
Bessa, você é um escritor fantástico! você tem suas cronicas reunidas em livros? gostaria de saber como adquiri-los, se estiverem reunidos em livros
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Riz Neves comentou:
11/01/2015
Foi ótimo relatos que dificilmente são encontrados e publicados dando referencia ao povo Baré.
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