Durante muitos anos persegui um filme musical: ‘Lili’. Até que consegui, enfim, vê-lo pela primeira vez. Mas o que é que ele tem de especial? É simples: esse filme não é um, são quatro, e faltava ver justamente o primeiro, que é americano, e estreou em 1953, com a canção-tema cantada no mundo inteiro
- “A song of love is a sad song, Hi-Lilly, Hi-Lilly, Hi-lo” .
Na época, o ‘mundo inteiro’ era, para mim, Manaus. Para ser mais exato, o bairro de Aparecida. Por isso, creditei seu sucesso não ao Oscar que ganhou, mas à serenata que o Zé Cavalo fez pra minha irmã Dile, improvisando: “Hi-Dile, Hi-Dile, Hi-Lo”.
O filme conta a história de uma adolescente - a atriz Leslie Caron, no papel de Lili - que fica órfã e vai trabalhar no teatro de bonecos de um circo, na França. Lá, ela gosta do mágico, mas o cara já é casado - oh desencontro! - com sua assistente. Aí, quem se apaixona por ela é um aleijadinho, que caxinga numa perna, o ator Mel Ferrer. Ele passa tímidas mensagens de amor a Lili através dos bonecos nos quais injeta vida e alma.
O momento inesquecível é aquele no qual Lili contracena com um fantoche. Ela está na frente do palco, mas de costas para a platéia. Detrás da cortina, escondido, Mel Ferrer, manipula um boneco, que aparece na boca de cena. Lili e o boneco. Os dois cantam e dançam juntos: “A song of love is a song of woe”. O boneco parece gente ou Lili era uma boneca?
Era uma boneca
Numa época em que mães e avós, de noite, contavam histórias, surgiu Lili II, a versão manauara, elaborada por alguém que viu Lili I, em 1954, na tela do Guarany. Dona Elisa, nossa mãe, usava recursos corporais, faciais, gestuais, modulando a voz para narrar um dos poucos filmes que viu na vida. Que luxo de detalhes! Que riqueza de pormenores! Que sensibilidade refinada! Dominava a arte de contar. Não descrevia. Descrevivia. Era uma narradora.
O filósofo alemão Walter Benjamin fala da existência de dois tipos de narradores: o narrador-camponês e o narrador-marinheiro. O primeiro está preso à terra, não se mexe, sua viagem é no tempo, conta casos ocorridos em sua aldeia. O segundo, irrequieto, prefere se deslocar no espaço. Sua fantasia voa mundo afora, em busca de aventuras. Dona Elisa reunia qualidades dramáticas dos dois, dando uma interpretação tão pessoal e fantasiosa, que acabou produzindo um segundo filme de sua autoria.
Quem conta um conto aumenta um ponto? Dona Elisa aumentou centenas, corrigindo os erros dos gringos. Na versão original, em inglês, a música fala que uma canção de amor é triste, saudosa, nostálgica. Quem canta, está deprimido, na fossa. Mas Dona Elilisa mandou a tristeza embora. Canção de amor é alegre, como a versão brasileira tocada na Rádio Baré, que ela cantava: “Eu vivo a vida cantando, ai Lili, ai Lili, ai lou, por isso sempre contente estou, o que passou, passou”.
Se o amor é alegre, o desemprego é trágico. A demissão de Lili do circo, uma cena banal, que dura, apenas, alguns segundos, é prolongada por hooooooras por Dona Elisa, que a politiza, transformando-a num conflito trabalhista com a dimensão épica de uma greve geral. Ah, a reação da Lili. Ah, o choro de Lili! Nem te conto, leitor (a)! O chorinho contido do filme americano se transforma numa pororoca de lágrimas.
No Lili I, a história termina assim: o bonequeiro perneta dá um tabefe na Lili. Ela, então, vai embora, mas descobre que ama o pernetinha, volta correndo e se joga nos braços dele. The End, ao som de “Hi Lilly, Hi Lilly, Hi-lo”. No Lili II, quem pede arrego não é a mulher. É o homem. O pernetinha sai correndo pela estrada, gritando: - “Li-li! Li-li!” (A objeção de que aleijado não pode correr só pode mesmo passar pela mente tacanha e mesquinha de quem nunca amou).
Ah, leitor (a), você precisava ver a respiração ofegante de Mel Ferrer, seu grito rouco e apaixonado: - “Li-li, Li-liiiiiii!”, reproduzido pela garganta da Dona Elisa, que parecia azeitada com óleo de andiroba para soltar grito tão dilacerador que - de acordo com Lili I - o pernetinha nunca deu. Que cena dramática!!! Mancando, coxeando, tropeçando, caxingando, aos tombos, lá vai o nosso herói: - Li-li! Li-liiii!.
Lili e Lulu
Quem ouve um conto também aumenta um ponto? O terceiro filme, aparecidesco, foi aquele que permaneceu na lembrança da gente: uma releitura da leitura da Dona Elisa. Nós produzimos uma versão de um filme que não havíamos visto. Como imaginar um filme que você nunca viu, mas ouviu muitas vezes? Como visualizar caras, rostos, expressões? Só tem uma saída: rechear a narração com as referências do mundo real que te cerca. E qual era o nosso mundo real? Aparecida.
Dessa forma, Lili não era a pálida Leslie Caron, mas a Raimunda Roroca, lá da Praça Bandeira Branca. E o mágico por quem ela se apaixona? Uma das minhas irmãs achava que era o Dílson do SAPS (a COBAL da época), que fazia serenata para a Fátima Buchinho cantando: “Um passarinho me ensinou uma canção feliz”. Mas pra mim, o mágico era o Quinha, centroavante do ‘Independência’, uma fábrica de gols.
O dono do circo que demitiu a Lili-Roroca era o seu Bento, dono da fábrica de cachaça do Beco da Indústria. Quem era o vizinho do padeiro que, no filme, quer faturar a Lili? Não pode ser outro: é o Lulu, que morava atrás do Grupo Escolar Cônego Azevedo e dava em cima de outra Lili, de carne e osso, a Liliane, filha da dona Lavínia, que até ganhou versinhos do Petel, o brechador: “Dona Lalá disse pro Lelé que a Lili deu o loló pro Lulu”.
Finalmente, a dificuldade maior: dar um rosto pro pernetinha. No Lili I, Mel Ferrer era um ex-bailarino, que perdeu a perna na guerra. Agora, leitor, me diz: onde encontrar na fauna de Aparecida um ex-bailarino coxo? Já começa que bailarino era coisa de fiu-fiu. O jeito foi esquecer o balé e procurar um manco. Havia o Padinho, o “Deixa-que-eu-chuto”, que arrastava uma perna esmigalhada por uma seringueira lá no rio Purus. Ficamos, então, combinados: o Padinho é o galã. E Lili III termina com “Ai Lili” em ritmo de carimbó. Mas tem o Lili IV.
Uma canção que diz
O quarto filme é o que permanece do confronto de Lili II e III com Lili I, recriando até detalhes: figurinos, adornos, acessórios. Dona Elisa contava que Lili saía do circo com uma mala. Na versão americana, era do tipo sansonite. No Lili III, era de madeira, forrada com pano forte brim cáqui, com gravuras de santos pregadas na tampa pelo lado de dentro, igualzinha a mala que tia Dedé trouxe do Ceará. Lili IV misturava as malas.
Na realidade, o ouvinte e o leitor são soberanos. O mesmo filme tem significados diferentes de acordo com o freguês. Não existe uma ‘leitura correta’ e ‘fiel’, mas muitas leituras que são o resultado do confronto entre o filme e as reconstruções de cada espectador. Nesse sentido - como querem os alemães que criaram a teoria da recepção - o espectador ou leitor também se transformam em co-autores.
Lili é uma boneca? E a Roroca? Ái, Lili! Ái, leitora! Constrói tua versão, vendo o filme. O mundo gira depressa e nessas voltas eu vou, cantando a canção tão feliz que diz: ai Lili, ai Lili, ai lou.
https://www.youtube.com/watch?v=eLIUzUnoomY