CRÔNICAS

Quatro cruzes nas “obras” públicas do Amazonas

Em: 15 de Julho de 1990 Visualizações: 1247
Quatro cruzes nas “obras” públicas do Amazonas

.Están clavadas dos cruces / En el monte del olvido / Por dos amores que han muerto /

Que son el tuyo y el mío (Milton Nascimento. Dos cruces. 1972).

Se você entende do riscado, responda depressa: por que o cavalo e o cabrito comem capim, mas um descome respeitáveis bolachonas e o outro umas azeitoninhas miudinhas?

Hoje eu e o Raimundinho, que manjamos do assunto, vamos responder esta pergunta, equilibrando-nos entre a sinceridade da opinião e a vulgaridade de certas palavras sempre faladas, mas nunca escritas, num tema que é meio tabu.

Acontece que essa questão escatológica fedorenta, mas séria, está afetando a todos nós, amazonenses e exige o uso de palavras exatas, embora feias, sem concessões à elegância e à delicadeza. Não dá para ficar com nhem-nhem-nhens e não-me-toques. É pão-pão, queijo-queijo.

O Raimundinho e eu pedimos desculpas antecipadas àquelas leitoras pudibundas e bem educadas, como a dona Bebé, nossa vizinha, cujos filhos Rosicler e Rosivaldo Pimbinha, nunca deram uma cagada e nem sequer fizeram um cocozinho. Eles “obravam” e, além disso “vertiam água” e “soltavam ventosidades”. Não mijavam, nem peidavam. Filha de Maria e depois do Apostolado da Oração, quando dava uma topada, em vez de palavrão, dona Bebé rezava uma jaculatória. Morava no “Beco da Obra”, mas já se mudou. Abominava a palavra “bosta”.

As credenciais

Modéstia à parte, o papaizinho aqui e o Raimundinho, somos especialistas em bolachas, azeitonas, cavalos, cabritos e “obras”. Como? Quem é o Raimundinho? Continua a leitura que saberás já-já. Antes peço licença para plagiar aquele poema do Brecht “Nasci na Floresta Negra” reapresentando minhas credenciais.

Com esse nome que nem o Sarney quis usar (Ribamar é dose, leitora), nasci e me criei no Beco da Bosta, no bairro de Aparecida. Aprendi a nadar no igarapé de São Vicente, do outro lado do quartel do GEF, na área conhecida como “Bosteiro”. A mamona, o óleo de rícino e o Tiro Seguro, vermífugos usados por dona Elisa, me salvaram. Portanto, na qualidade de sobrevivente, tenho autoridade para dissertar sobre a questão. Depois de cremado, minhas cinzas serão atiradas naquelas águas, com as palavras rituais da minha irmã Elisa:

- Da merda viestes, para a merda voltarás.

E o Raimundinho? Ah, o Raimundinho é técnico de laboratório de análises clínicas há mais de quinze anos. Trabalha atualmente no IMPAS e no Hospital Tropical. É um profissional competente, com um olho admirável que não erra nunca. É ele quem analisa as fezes amazonenses e diagnostica as pessoas que tem lombrigas, vermes, tuxinas e todo tipo de parasitose intestinal. Ficou conhecido como o “Rei da Obra” (no sentido bebesiano do termo. Na verdade, os colegas usam uma palavra que começa com “m” e não é merenda.

O Rei entra, pois, nessa história com sua reconhecida experiência prática e eu, como teórico do “coisalhão”.

O Penicão

Em recente visita à Manaus, cidade-sorriso, decidi dar uma espiadela no bairro Amazonino Mendes conhecido também como “Mutirão”, entrando pela Cidade Nova. Minha Nossa Mãe do Céu! Minha Santa Eulália! Você já foi lá, leitora? É um caso de polícia e de intervenção da Organização Mundial da Saúde (OMS). São incontáveis cubículos de madeira, louro-bosta, da mesma dimensão do nome oficial que leva. Deitado na rede, a cabeça do morador toca na parede da frente e os pés na parede de trás. Sem exagero. Vá lá e confira.

Pois bem, estou descendo agora uma ladeira empinadinha do Mutirão e, de repente, splish-splash, uma senhora aparece na porta de sua casa e joga na rua o conteúdo de um balde, contendo vários quilos de matéria fecal. Ao lado, as crianças brincam de bola, chutando aquilo que nem o goleiro Taffarel encaixaria, mesmo com o Galvão Bueno se esgoelando: “Vai que é tua, Taffarel”.  É mole ou quer mais?

A simples construção daqueles “apertamentos” constitui por si só uma imoralidade, um pecado social. A ausência de fossa, sequer de um buraco, é um crime que brada aos céus e pede a Deus vingança. Os gatos, pelo menos, enterram sua “obra prima”. O Mutirão, construído por obra e graça do Governo do Estado, devia denominar-se “Penicão” – eu penso.

O meu faro de repórter – faro é o termo apropriado para o caso – me fazer uma visita urgente a um laboratório sério de análises clínicas, para avaliar as consequências sobre a saúde da população. Ia procurar o patologista Alfredo Loureiro, meu amigo, que entende do riscado, mas relações familiares me conduziram ao Laboratório do Impas. A farmacêutica bioquímica, minha irmã, me apresenta:

- Este é o Raimundinho.

Quatro cruzes

Raimundinho, o Rei da M não para de trabalhar. Mãos-à-obra ou mãos na “obra”? Ele pega o frasco com o “material”, dá uma balançadinha, prepara o milk-shake, deixa fermentar, bota o olho clínico e vai encontrando nas fezes todo tipo de helmintos e protozoários, ou seja, lombrigas, vermes e oscambau a quatro. Conta o número de ovos e cistos, marca cruzes e não dá outra: o autor daquela “obra”, talvez póstuma, é uma criança do Mutirão gravemente contaminada.

A cruz é a forma usada pelo laboratorista para quantificar o provável número de ovos. Quanto maior o seu número na lâmina, mais cruzes são assinaladas. Quatro cruzes é o máximo e significa infecção braba. É o dobro das duas cruzes cravadas no monte do esquecimento do bolero espanhol de Carmelo Larrea gravado, em 1972, por Milton Nascimento.

- Antes, só dava quatro cruzes no cocô de gente pobre dos bairros populares ou do interior. Agora essas cruzes aparecem nas fezes dos ricos e dos doutores do Jardim Espanha, Jardim Europa, Manauense, Vieralves – comenta o infatigável Raimundinho, enquanto prepara outro milk-shake.

Ele é um técnico respeitado. Não fala de política. Não responsabiliza ninguém. Apenas está assustado com a situação: o Amazonas inteiro está atolado na maior eme. O interior está pior ainda do que a capital. Os laboratórios públicos e privados atestam um crescimento assustador nos últimos anos de parasitose intestinal. Os resultados dos exames apresentam uma positividade crescente, atingindo a classe média abastada. Estamos todos bichados, minha gente!

Os dados da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (SUCAM) para o ano de 1975 davam a Região Norte como uma área de prevalência média de algumas parasitoses intestinais. Hoje a prevalência é altíssima com algumas dessas doenças atingindo até 90% da população. O Amazonas está crucificado em quatro cruzes no monte do esquecimento. É uma situação de epidemias, que está exigindo um programa de assistência sanitária radical e um tratamento em massa da população.

Obra pública

Alguém pode objetar que um programa dessa natureza exige investimento de muita grana. Podemos informar que os recursos existem, mas estão sendo usados irresponsavelmente em obras eleitoreiras e demagógicas. De que adianta construir a Vila Olímpica e trazer o Zico para inaugurar “o melhor centro de esportes do Norte”, se não vai ter atletas para usá-lo? Vai ficar como o Teatro Amazonas: um palco sem atores e sem público.

Uma população de desdentados, desnutridos e enlombrigados vai praticar que tipo de esporte? Corrida de lombrigas? Jogo de balde à distância? Campeonato de Jeca-Tatu?

Milhões e milhões de cruzeiros estão sendo enterrados na terraplanagem para a construção do Bumbódromo-Sambódromo, enquanto ali em frente o Hospital Tropical está com as obras paralisadas, sem condições de atendimento adequado, pagando aos seus funcionários salários de fome, inferiores ao que paga a Prefeitura de Manaus.

Olha, maninha, a dona Bebé tem razão: a Vila Olímpica e o Sambódromo são verdadeiras “obras” públicas. Os últimos governos estaduais “obraram” muito na moita. É para isso que serve o Bubunzódromo

Os responsáveis por tamanha enganação ainda se consideram os reis da cocada preta, pedindo votos para se reelegerem. Rei para mim só tem um: o Raimundinho. O Amazonas está precisando mesmo é de um médico.

P.S. – O quê? Eu e o Raimundinho não esquecemos não. Estamos analisando as fezes do cavalo e do cabrito para responder a pergunta na próxima crônica.  

Ver também:

1. A morte e as mortes de Mister Z.Y. - https://www.taquiprati.com.br/cronica/633-a-morte-e-as-mortes-de-mister-zy-

2. O "bichitus corruptus" e as bombas sobre Manaus - https://www.taquiprati.com.br/cronica/634-o-bichitus-corruptus--e-as-bombas-sobre-manaus

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