CRÔNICAS

Conversa de mãe: o beco do buraco

Em: 13 de Setembro de 1990 Visualizações: 1444
Conversa de mãe: o beco do buraco

.- (Musiquinha: pan-pan-pan-pan, piun, piun) Esta é uma gravação. Após o sinal, diga o nome e a cidade de onde você está falando, bip-bip.

- Elisa, de Manaus.

- Oi Bambi, tudo bom, mana!

- É tua mãe!

- É a tua!

- Que maluquice é essa, menino? Deixa de ser leso. Quem está falando aqui é a tua mãe.

- Oi, mãe, desculpa, não reconheci a sua voz. Com tanta Elisa na família, se cria a maior confusão. Tudo bem?

- Tudo mal.

- Por que?

- José, meu filho, você não presta. Mas a culpa é minha, que não te dei todas as surras que merecias. NUNCA MAIS escrevo cartas pra você.

- Ah, espere um instantinho que vou apagar o cigarro.

Não existe cigarro algum a ser apagado. Na verdade, fui mesmo ligar o gravador ao lado do telefone aqui no Rio de Janeiro para registrar canalhamente toda a conversa, que será reproduzida para os leitores de A Crítica, sem que dona Elisa desconfie que está sendo gravada.

- Já apaguei o cigarro. Pode falar, mãe.

- Meu filho, você devia ter tido a delicadeza de, pelo menos, me pedir autorização para publicar minhas cartas como fez na sua última coluna O Buraco do Beco.

- A senhora também não me avisou que não era para publicar. Eu mudei até as datas para pensarem que era tudo invenção minha. A senhora ficou zangada?

- Porque publicou? Não. Foi até bom (risadinha de contentamento). Recebi um montão de telefonemas: as “meninas” da catequese e da pastoral da saúde, a Tereza Paixão, a Suely da Maria Amália, a Iris, todo mundo elogiou. A Walternice Cordeiro, irmã das paraibanas nossas amigas, disse pra Bambi que adorou. A Dandãe riu muito e disse que foi a melhor “reportagem”. A Adelaide é que te chamou de mentiroso, porque o Jeferson Coronel não fechou nenhum buraco dela.

- Ué, não estou entendendo.

- O quê?

- Com tanto sucesso, porque a senhora ficou chateada?

- Porque de nada adiantou, o buraco do beco não foi tapado. E porque você não me avisou antes. Se eu soubesse que era para publicar teria caprichado.

- Caprichado em quê?

- Em tudo, até na caligrafia. Meu filho, é bom desligar porque essa chamada a cobrar vai sair muito cara pra você.

- Calma. Não se preocupe. Hoje é domingo e a tarifa é mais barata. Mãe, é verdade que o Amazonino Mendes está caindo nas pesquisas?

- Esse desgraçado, não tem vergonha de roubar a comida do irmão. Tira a mão daí, peste. TIRA A MÃO DAÍ, seu porcaria. Esse safado vive tomando as coisas dos outros. Que mania de se apropriar das coisas dos mais fracos. Não faça isso. A vovó não gosta.

- O quê? Quem?

- É o Geraldinho da Preta que comeu a tapioca dele e agora está tomando a do irmão, o Rodriguinho “Pão Molhado”. A Preta não cria vergonha, continua deixando os meninos aqui em casa e eles não me deixam nem telefonar em paz.

- Ah, bom!

- O quê?

- Pensei que era um gesto político seu, uma avaliação precisa de um candidato e uma opção declarada pela candidatura ao senado da Marlene Pardo ou pelo Jeferson Peres.

- Como? Eu só voto em quem resolver a fedentina desse buraco no esgoto do beco. Meu filho, em vez de escrever sobre “o buraco do beco” você devia escrever outra “reportagem”: “o beco do buraco”, porque agora o buraco está maior do que o beco e o beco é que pertence ao buraco e não o buraco ao beco.

- Interessante. Nunca pensei que se poderia extrair tanta filosofia a partir da bosta. Quem tem reflexões teóricas sobre essa relação entre continente-conteúdo é o Karl Jaspers, aquele filósofo alemão que incursionou pelo campo da psiquiatria.

- Não me aperreia. Vai brincar lá no quintal, vai, que a vovó está telefonando pro Rio.

- O quê?

- Não estou ouvindo nada, meu filho, com a zoeira desses meninos azucrinando os meus ouvidos. A Dile ficou ofendida, porque você não falou no nome dela no teu escrito.

- Se eu fosse mencionar o nome de todos os seus filhos, genros, netas e netos, bisnetas, não teria espaço suficiente nas páginas do jornal. Só os da Glória precisariam de um caderno especial. Mas foi a senhora que não tocou no nome da Dile. Eu só fiz publicar as suas cartas.

- Também, a Dile nem me vista, passa semanas sem me ver e quando vem aqui em casa, só fica falando em LBA pra lá, LBA pra cá, pura fofoca. Meu filho, tu sabes quem é o chefe da Dile? É o Catiôla, filho da comadre Rosa, irmão do Humberto Pi-roka.

- Legal, mãe, mas eu queria saber é sobre as fofocas políticas.

- Prá deputado estadual, a Gina e a Preta disseram que é pra votar no bzvzbzchécio.

- Em quem? Não deu para ouvir direito. No Lupércio? No Ézio?

- Deus me livre, eu lá voto nesses trastes, elas disseram que é para eu votar no Adonay Sabá, A-do-nay, aquele menino do movimento dos professores e da tal da CUT. Parece que ele é lutador. Vou votar nele…

- É sim. E pra senador, quem tem mais votos, a Marlene ou o Jeferson?

- Que desunião é essa! Papai do Céu não gosta de briga entre primos, dona Ana Elisa e seu Geraldinho. Se vocês não se unirem e não forem brincar lá no quintal, o bicho-papão vai comer os dois. Ah, José, estou falando com o filho da Preta e a filha da Céu. Se telefone transmitisse fedor, você teria agorinha que tapar seu nariz. Pelo amor de Deus, escreve outra vez para ver se o prefeito conserta esse esgoto.

- Mãe, já errei escrevendo uma vez. Basta. O espaço no jornal é como um mandato popular: devemos usá-lo com um sentido social, para criticar comportamentos, costumes, ideias: para interpretar, esclarecer, opinar e até fazer gozações, sem ofensas a pessoas, mas sendo implacável com condutas que ferem a dignidade humana. A gente tem de colocar a inteligência a serviço de uma causa coletiva. Co-le-ti-va. É um crime se aproveitar disso para tirar benefícios pessoais.

- Como você fala bonito, José. Quem te ouve, pensa que os problemas vão ser solucionados. O fedor entra na minha casa, invade a minha cozinha, da Leonor, do Aguimar, de toda a vizinhança e você me vem com esse papo de que é um problema meu, individual. Esse pessoal do PT enfeita a fala, mas não resolve as coisas práticas. É por isso que o Boto....

- Tudo bem, mãe. Vou resolver coisas práticas. O Bibi está viajando pra Manaus. Esqueça o buraco, que eu mando de presente pra senhora uma bateria de seis panelas americanas, que estão vendendo numa loja de artigos importados.

- José Ribamarrrrrr. Você está conversando com sua mãe e não escrevendo palhaçadas pra suas negas no jornal. Não brinque comigo! Você não vai me comprar com panela não. Eu só quero que você insista para que o prefeito conserte o esgoto.

- Mãe, são panelas americanas especiais produzidas pela Amway, elas cozinham sem necessidade de água e conservam as vitaminas dos alimentos. Bem que a senhora gostou quando trocou o fogareiro de lenha e carvão pelo fogão Rei, aquele da propaganda da rádio na minha infância que anunciava:

Voz do patrão, quando vê que a comida não está pronta: - Assim eu acabo não comendo mais em casa.

Voz da patroa: - Meu Deus, o que é que eu vou fazer?

O patrão: - Adquira sem demora o fogão Rei, a gás ou a querosene.

Coro feminino: - Ah, Fogão Rei!

Coro masculino: - Ah, Fogão Rei!

Pan-pan-pan-pan-pan-pan. Pan—pan-pan-pan-pan-pan…Rádio Difusora do Amazonas, a crónica do dia na voz de....

- Meu filho, não tem vantagem nenhuma cozinhar sem água. Manda pra mim, se você encontrar, uma panela que cozinhe sem comida. Os preços aqui estão um horror. O tambaqui está Cr$ 8.000,00, um ruelozinho está Cr$ 2.000,00. Ontem a Leonor me vendeu um quilo de tomate por CR$ 200,00 e isso porque sou amiga dela. Um pé de alface custa CR$ 150,00, uma fatia mixuruca de jerimum caboco, eu comprei na Feira da Bandeira Branca por CR$ 80,00. Uma fatia.

- Ah, agora sim a crônica alcança um nível elevado de politização, porque entramos no coração do Plano Collor que deve ser denunciado: arrocho salarial, ato custo de vida...

- Quê crônica? Isso é só uma conversa telefônica.

- Eu sei, eu sei, é mania minha. A senhora acha que os candidatos que apoiam o Collor têm condições de se eleger? Seria uma desgraça para o Amazonas...

- Não. Não vão ganhar nunca. A vovó está avisando. Quem não for pro quintal, não vai ganhar banana frita. Esses diabinhos da Preta, esse calor, a propaganda eleitoral... Manaus virou um inferno. Hoje à tarde, abri a torneira e saiu água tão quente que quase queimou minha mão. E o pior é essa fedentina insuportável do esgoto...

- Olha só, mãe, para lutar por melhores condições de trabalho, só o sindicato, né? Pra mudar a cidade, o Estado, o País, só o partido político. Não fique zangada não, mas pra resolver o problema do esgoto tem que mobilizar os moradores, criar uma comissão e depois transformá-la em associação para pressionar a Prefeitura. Por que a senhora não cria a Comissão dos Moradores do Beco da Bosta (Como- bebo) e depois a Associação dos Amigos do Beco da Bosta (AABB) e aí....

Plim, plam, plum.

Você ouviu, leitor (a)? Ela desligou, zangada. Que pena! E era domingo. E a tarifa era mais barata.

P.S. 1 – Dona Elisa, tenho um nome a zelar. Não me desmoralize. Não insista. Nunca mais eu escrevo uma só linha sobre o buraco do beco ou o beco do buraco. Nós dois já saturamos a paciência dos leitores. Afinal de contas, o que significa um reles buraco de um simples bequinho de bostinha na evolução histórica e política da humanidade?

P.S. 2 – Prezado amigo Orlando Cabral de Holanda, Secretário Municipal de Obras e Saneamento Básico, por favor inclui o Beco da Bosta no Projeto Pro-Beco. Tapa logo esse buraco, meu irmão, porque senão ela vai se queixar ao Papa João Paulo II, que está visitando o Brasil.

Qualquer sugestão para resolver o problema do buraco do beco, escrever para José R. Bessa, Rua Graça Aranha, 174, Grupo 509. CEP – 20.000, Rio de Janeiro (RJ).

P.S. 3 – Depois da morte da dona Elisa, em janeiro de 2001, o Beco da Bosta, já com o buraco fechado,teve um up grade e mudou de nome: Rua Elisa Bessa Freire.

P.S. 4 - Ver também O Buraco é mais embaixo - https://www.taquiprati.com.br/cronica/628-cartas-de-mae-o-buraco-e-mais-embaixo

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