Não se fazem mais generais como antigamente. Quer ver? Compara, então, a voz de generais que já morreram com a fala de outros que, embora decrépitos, estão vivos, vivíssimos. Os primeiros, com sólida formação acadêmica, eram humanistas sensíveis, inteligentes e curiosos, que defendiam valores como generosidade, compaixão, solidariedade e estavam encharcados de brasilidade. Os segundos, intelectualmente limitados, são brucutus truculentos que não hesitam em defender a barbárie, a força bruta e até a tortura, como se verifica nos depoimentos sobre os 50 anos do golpe civil-militar de 1964.
Entre os mortos, cujo pensamento permanece vivo, está o general Couto de Magalhães (1837-1898), um mineiro formado em Direito, que presidiu quatro províncias - Goiás, Pará, Mato Grosso e São Paulo. Queria "entender o pensamento dos índios" e descobriu que "a língua é aquilo que cada povo tem de mais íntimo". Aprendeu o nheengatu e outras línguas como guarani, kayapó e karajá para ouvir as narrativas e fábulas contadas pelos velhos, repletas de saberes. Encantado com “a notável e profunda filosofia e poesia que elas encerram”, revelou porque um personagem dessas histórias - o jabuti - vencia sempre os animais mais fortes:
- Cada vez que reflito na singularidade do poeta indígena de escolher o prudente e tardo jabuti para vencer os mais adiantados animais de nossa fauna, fica-me evidente que o fim dessas lendas era altamente civilizador", porque essas histórias "ensinam a crença na supremacia da inteligência sobre a força física”.
Quem também defendeu a superioridade da inteligência sobre a força bruta foi Rondon (1865-1958), criador do Serviço de Proteção aos Índios, autor da máxima "morrer se for preciso, matar nunca". Outro foi o general Armando Levy Cardoso, membro da Comissão de Limites, que conviveu com os índios do Pará e escreveu Toponímia Brasílica, somando experiência de campo com pesquisas em bibliotecas e arquivos. Estudou línguas indígenas porque descobriu aquilo que um cego - Jorge Luis Borges - viu muitos anos depois: "o diálogo é a mais importante invenção humana". Os generais de antigamente, além de humanistas, eram eruditos, construtores de pontes entre gentes.
Os Brucutus
Faltam erudição e humanismo na fala dos vivos de pensamento morto, entre os quais um "projeto de general", o coronel Paulo Malhães, 76 anos, ex-agente do Centro de Informações do Exército que, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CNV), nesta semana, confessou seu envolvimento em torturas, mortes e ocultação de corpos de presos assassinados e deu detalhes sobre como funcionava a Casa da Morte de Petrópolis (RJ), para onde foram levados, torturados e executados dezenas de presos políticos na época da ditadura.
- Quantas pessoas o senhor matou - perguntou o ex-ministro José Carlos Dias.
- Tantas quanto foram necessárias - respondeu o coronel.
- Quantos torturou?
- Difícil dizer, mas foram muitos.
- Arrepende-se de alguma morte?
- Não.
O cara confessa atos ilegais e bárbaros de extrema covardia cometidos contra presos indefesos sob guarda do Estado. Fez isso com salário pago pelo contribuinte e diz que não se arrepende, que está orgulhoso. Seu discurso assusta, porque ao contrário do jabuti, institui a força bruta como valor supremo. O capitão Jair Bolsonaro, que também justifica o uso da tortura - "o cara tem que ser arrebentado para abrir o bico" - propôs que o Congresso Nacional fechado pela ditadura homenageasse a dita cuja na sessão solene deste 1° de abril. Sem sucesso. De qualquer forma, conquistou o direito de falar 15 minutos. Atenção, pais de família, retirem as crianças da sala durante sua fala.
Qual o compromisso que eles tem com o Brasil e com os valores humanos? Vários generais, ao longo da semana, ocuparam espaço na mídia para justificar a ditadura e a tortura, que não foi algo acidental, mas uma política de estado. O general Armando Luiz Malan de Paiva Chaves, 86 anos, no artigo "Meio século", publicado na Folha de São Paulo (FSP,27/03), agride a nossa inteligência repetindo o chavão de que o golpe veio evitar "submeter a nação ao comunismo de Moscou". Já o general Rômulo Bini Pereira, 74 anos, no artigo "Nova história" (FSP, 24/03) considera as denúncias de tortura como "vingativa campanha contra as Forças Armadas".
Generais civis
Quem reforçou o discurso dos militares foram dois "generais civis": o ex-ministro Antônio Delfim Netto que depôs na terça-feira (25/03) na Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog e o ex-presidente da Câmara no governo do general Geisel, Célio Borja, em entrevista à FSP no mesmo dia: "Regime de 1964 não foi uma ditadura".
Delfim, o gordinho sinistro, 86 anos, embora tenha sido ministro da Fazenda (1967-1974), disse desconhecer a existência de uma ditadura no País, de prisões e de torturas. Negou ter ajudado a obter dinheiro do setor privado para financiar a Operação Bandeirante, que deu origem ao Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), órgão ligado ao 2° Exército sediado em São Paulo. Declarou, com todas as letras - "Não tenho nada do que me arrepender" - ele que assinou o Ato Institucional 5 (AI-5) que extinguiu direitos civis, suprimiu as liberdades democráticas e deu suporte à repressão.
Quem não se arrepende de nada também é o "general" Célio Borja, 85 anos, servidor incondicional da ditadura, que continua com escritório de advocacia em Copacabana."O que havia era um regime de plenos poderes, não era ditadura".
- O sr. sabia das torturas?
- Sabia que havia brutalidades. Sempre houve no Brasil. O pau-de-arara não foi invenção de 64. Ninguém se importava com a miséria do preso comum. Chamou a atenção quando os presos políticos foram submetidos ao mesmo tratamento. O regime estava descambando para a selvageria.
- O que o sr. acha da visão que se tem hoje do regime?
- Absolutamente distorcida. Sempre se diz que a história é escrita pelos vencedores. Aqui, os vencidos estão escrevendo a seu gosto com um objetivo político: desqualificar quem não lutou contra a famosa ditadura, que não foi ditadura coisa nenhuma.
Na mesma linha, um general que é mesmo general, Leônidas Pires Gonçalves afirmou que os militares nunca foram intrusos na história brasileira e que "a revolução de 1964 foi absolutamente democrática. Não tivemos ditador".
Ou seja, Delfim, Borja e Leônidas, três velhos com mais de 85 anos, produzem um discurso cínico e sem-vergonha. Perderam uma boa oportunidade de se retratarem, mas é pedir demais que tenham uma grandeza de um Willy Brandt que, em dezembro de 1979, como chanceler da República Federal Alemã, se ajoelhou diante do monumento em memória da resistência dos judeus no gueto de Varsóvia e pediu perdão pelos crimes cometidos pela Alemanha Nazista. É pedir demais. Mas esse pedido as Forças Armadas ficam devendo ao Brasil.
P.S.
Os povos indígenas e a ditadura militar em debate. No dia primeiro de abril, às sete da noite, o Museu do Índio/RJ será palco de uma mesa-redonda com tema inédito no Rio de Janeiro: "Os povos indígenas e a ditadura militar – a questão indígena de 1964 até hoje". Durante o encontro será analisada a questão da violência cometida contra os índios no período.