CRÔNICAS

Jacaré me convidou pra dançar em Nhamundá

Em: 13 de Agosto de 1991 Visualizações: 16417
Jacaré me convidou pra dançar em Nhamundá

- “Seu filho vê bem? Tem certeza? Verifique já!”

Esta frase apareceu em centenas de cartazes espalhados pela cidade de Manaus. Faz parte da campanha da Secretaria de Saúde do Amazonas (SESAU), cujo objetivo é diagnosticar a saúde dos olhos dos amazonenses. Ela foi lida por todo mundo, inclusive por duas senhoras que levaram seus filhos - Zezinho e Luizinho - ao posto médico, porque eles deram sinais de que estavam meio ceguetas. Lá, o oftalmologista mostrou uma cartela com desenhos de vários jacarés, diminuindo de tamanho. Os dois enxergaram paca-tatu-cotia, mas jacaré não. Foram reprovados no teste.

No dia seguinte, Zezinho e Luizinho, apesar de míopes em alto grau, compareceram, sem óculos, à reunião preparatória para discutir o Relatório Nacional do Brasil à ECO-92, organizada em Manaus por um tal de ISEA – Instituto Superior de Estudos Amazônicos. Zezinho é o José Belfort dos Santos Bastos, secretário do Meio Ambiente. Luizinho é o Luís Carlos Mollion, de uma tal Universidade dos Trópicos Úmidos.

Os dois míopes falaram cobras e lagartos dos jacarés, responsáveis, segundo eles, pela diminuição de peixes nos rios da Amazônia e por ataques aos ribeirinhos. Na falta de argumentos, quase dão porrada no pesquisador Philip Fearnside, coordenador de Ecologia do INPA – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, que discordou deles. Culparam Fearnside de ser gringo e, por isso, de ser incapaz de entender a região. Parece que a platéia ainda os aplaudiu. Que horror! Quanta ignorância.

Indignada, uma leitora inteligente, que não por acaso é minha sobrinha, me telefonou:

-  Pelo amor da dona Elisa, maninho, escreve alguma coisa contra essa burrice.

Do alto das minhas tamancas de doutor em jacarelogia, com diploma da University of Nhamundá, atendi ao apelo. Decidi escrever “O catecismo dos jacarés”, contando tudo o que sei sobre répteis e crocodilos, respondendo a tudo aquilo que você deseja saber, mas tem vergonha de perguntar: gringo pode estudar jacaré ou isso é reserva de mercado dos amazonenses? Qual a metodologia mais adequada? O que se sabe sobre a demografia deles? Homem e jacaré: quem come quem? Matar jacaré aumenta a população dos peixes?

O CATECISMO DOS JACARÉS

P. Estrangeiro que não nasceu na Amazônia e não fala bem o português pode estudar o jacaré?

R. Pode. O Zezinho e o Luizinho não sabem, mas a linguagem da ciência é universal. Desde o século passado até hoje, cientistas de diferentes nacionalidades nos têm ajudado a compreender a Amazônia: os alemães Spix, Martius, Theodor Koch-Grünberg e Curt Nimuendaju; os ingleses Wallace e Bates; o suíço E. Goeldi; o suíço-americano Louis Agassiz, os americanos Daniel Kidder,  Donald Lathrap, Elizabeth Agassiz, Betty Meggers, Anne Roosevelt e William Denevan; o canadense Charles F. Hartt; os italianos  Osculati e  Stradelli; os franceses Henri Coudreau, Paul Le Cointe, Tastevin e tantos outros. Essa tradição vem sendo mantida atualmente pelo INPA, uma instituição sem verbas, mas séria, que acolheu muitos pesquisadores estrangeiros.

P. Mas o governador Mestrinho disse que só amazonense pode entender a Amazônia.

R. – Com todo o respeito, essa postura do governador é uma enorme besteira, provinciana e chauvinista. Pelo que se sabe, o Wallace não chamava o Bates de “maninho”, mas de “little brother” e os dois conheciam mais a Amazônia que o governador. Essa bobagem equivale a dizer que um careca não pode ser barbeiro, porque não tem cabelo. A lógica do barbeiro careca é obtusa, porque o barbeiro vai trabalhar a cabeça dos outros, da mesma forma que o cientista não precisa ser amazonense para escolher a Amazônia como objeto de estudo. O importante é a tesoura e as ferramentas que ele usa e os resultados produzidos. Sou mais um Fearnside comunicando suas pesquisas em um português capenga do que duzentos Zezinhos e Luizinhos afirmando tolices sem sotaque. Por que esse nacionalismo de cabra-macho não é usado contra as multinacionais do Distrito Industrial?

P. É verdade o que disse o prefeito de Nhamundá, Mário Paulain: “Ou o homem come o jacaré ou o jacaré come o homem”?

R. Médio. Médio. Se fosse mesmo verdade, o Paulain já teria sido devorado. Se o Paulain não come jacaré e o jacaré não comeu ainda o Paulain, podemos então deduzir ou que o Paulain não pertence à espécie humana ou que é falso o seu – digamos assim – raciocínio.

P.Mas afinal: quem come quem?

R. Olha, maninha, eu não gosto deste tipo de fofoca, de invadir a privacidade alheia. No entanto, posso te garantir que um come o outro, e o outro come o um. Quem mostra isso com muita clareza é o padre João Daniel, um jesuíta que viveu na Amazônia no século XVIII e escreveu o “Tesouro Descoberto no Rio das Amazonas”. Ele conta que um jacaré atrevido subiu pelo remo de uma canoa e engoliu inteirinho um menino de dez anos. Lá dentro, no ventre do bruto, o menino – o Jonas baré – tirou uma faca da cintura, abriu a barriga do monstro e saiu apenas com um arranhão na perna, que roçou num dos dentes afiados do animal. Depois, todo mundo comeu a carne do jacaré.

P. Quando o jacaré mastiga, as sobras da carne humana não ficam presas nos seus dentes? Como ele faz para limpar? Jacaré usa fio-dental? Jacaré tem cárie nos dentes?

R. Não. Jacaré não usa fio-dental, mas segundo o mesmo padre João Daniel, “o jacaré tem também seu palito para esgaravatar e limpar os dentes. É este palito um passarinho que, metendo-se-lhe na boca quando a tem aberta, com o bico lhes esgaravata e limpa, servindo-lhes estas sobras de sustento”. (Não é invenção minha não! Está lá, no volume I, página 88, do ´Tesouro Descoberto’).

P. A eliminação dos jacarés, comedores de peixe, aumentaria a quantidade de peixes nos rios da Amazônia?

R. Não. É exatamente o contrário. Esta tese do governador Gilberto Mestrinho, retomada por Zezinho e Luizinho, é piranhuda e esdrúxula. Um pesquisador do INPA, Ernst-Josef Fittkau, provou, em 1965, que jacaré come especialmente peixes carnívoros. Jacaré se amarra mesmo é numa piranha. Ora, na cadeia ecológica, quando diminui o número de jacarés, aumenta o número de piranhas e, com isso, diminui o estoque de peixes nos lagos e rios da Amazônia. Portanto, esse ataque ao jacaré faz parte de uma conspiração municipal, de uma campanha regional, em favor das piranhas, financiada pela população noturna da praça da Matriz.

P. Qual o tamanho médio de um jacaré?

R. Depende. O jacaré-açu, aquele pretão com faixa amarela igual a camiseta do Oberon Futebol Clube, pode atingir até cinco metros de comprimento, ou seja, mais do que três zezinhos.O jacaré-curuba, o bexiguento, é bem menor, e chega a medir oito a dez palmos, segundo o padre João Daniel. O jacaré-tiribiri, de papo vermelho, não supera os cinco palmos, mas quando dorme tem um ronco mais assustador do que o da sogra do Luizinho. O jacaré-tinga mede até mais de dois metros e sua carne, dizem os paraenses, é branca e gostosa como a da galinha.

P.   O governador Mestrinho jura que existem hoje mais de 2.000.000 de jacarés. Como é que ele contou?

R. Esta cifra não está correta. Está muito desatualizada. Hoje, na Amazônia brasileira, existem apenas 823.441 jacarés, segundo projeções fidedignas realizadas pelo IBGE, a partir do último censo que levantou o número da população réptil. Façamos as contas. O censo de 1970 mostrava a existência de uma população de 4.660.002 jacarés. No entanto, nas duas últimas décadas, foram exterminados dois milhões, cujas peles foram exportadas para os Estados Unidos e Europa, com isenções fiscais, reduzindo a população para 2.660.002 jacarés. Desses, um milhão acabou morrendo de subnutrição, verminose, ataque do coração e estresse, além da falta de assistência médica. Sobraram, então, 1.660.022, dos quais 830.021 (a metade) decidiram abandonar o Amazonas, viajando para o Rio de Janeiro, desgostosos com a baixaria e a ausência de vida intelectual na Secretaria do Meio Ambiente, no ISEA e na tal da Universidade dos Trópicos Úmidos. Seis mil filhotes de jacarés, conhecidos como jacarés-de-rua, foram exterminados pelo esquadrão da morte. Finalmente, 560 jacarés pediram aposentadoria e viajaram para Miami e Fortaleza, onde se radicaram e dez deles morreram afogados nas piscinas das mansões do Zezinho e Luizinho. Sobraram, portanto, exatamente, 823.441 jacarés, noves-fora, quatro.

P. E a taxa de natalidade? Não nasceram jacarés neste período?

P. Excelente pergunta. Os demógrafos da Escola de Berkeley que estudaram o fenômeno demonstraram que os jacarés machos começaram a usar camisinha e as fêmeas – as jacaroas – desesperadas com o resultado das últimas eleições e com a leseira manauara decidiram abortar. Nenhum jacarezinho nasceu.

P. Existe alguma possibilidade de um jacaré almoçar o Zezinho, jantar o Luizinho e faturar o Paulain e o Mestrinho como sobremesa?

R. Esta resposta só pode ser dada pelos estudiosos do INPA, nacionais ou estrangeiros, que falando ou não o português como língua materna estão nos ajudando a ler a Amazônia e, por isso, merecem todo o nosso carinho, respeito e eterna admiração. O referido é verdade e dou fé.

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1 Comentário(s)

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Malu Alves Ferreira comentou:
27/11/2017
Bessa, maravilha! Não sei de quando é. Adorei ter deparado com essa tua crônica/ entrevista
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