(De Bielefeld, Alemanha) Eis me aqui, outra vez na Alemanha, convidado pela Universidade de Bielefeld para discutir com um grupo de pesquisadores a questão das identidades étnicas, nacionais e transnacionais na América. De mim, desta vez, eles estão perguntando quem é o índio, quem é o caboco, qual é a marca do nosso jeitão de ser amazonense. Escrevi trinta páginas, mostrando que historicamente as identidades na Amazônia estão relacionadas, entre outras coisas, com a língua e com a forma de falar.
Você, leitor (a) ainda se lembra de Bielefeld? No ano passado, vim aqui falar sobre a história do Nheengatu na Amazônia. Daqui enviei a coluna ‘Entre a maloca e o castelo’ (24/06/07), fingindo que havia procurado em arquivos alemães documentos sobre a origem germânica do presidente da Assembléia Legislativa do Amazonas, Belarmino Lins, mais conhecido no Alto Solimões como Belão e nos hotéis de Miami como Big Beautiful. Aqui ele é o Grosse-Schön.
Grosse-Schön
Tudo começou em 2006 com um violento bate-boca no plenário da Assembléia entre Belão e o deputado Francisco Balieiro, o juiz precoce que se aposentou quando ainda usava chupeta. Os dois se xingaram mutuamente com os mais escabrosos palavrões: biltre, canalha, patife, escroque, pulha, filho duma égua, sacripanta... Estava empate, até que Belão ganhou a parada quando fulminou o colega, cuspindo-lhe na cara o mais temível insulto: “Índio!”. A palavra soou como uma bofetada.
– “É a mãe”- respondeu Balieiro em cima da bucha. Para ele, era melhor ser xingado de fdp do que de “índio”.
A resposta enfezada de Belão reivindicou uma pretensa origem teutônica:
- “Me respeita, cabra safado. Índio é você. Eu sou descendente de alemão”. Lá fora, o galo cantou três vezes. Confesso que fiquei injuriado vendo dois parlamentares amazonenses, ambos cabocões, em vez de orgulhosos, se sentirem ofendidos por serem chamados de índios. Na época, protestei, escrevendo ‘Belão e o teste da Bica’ (www.taquiprati.com.br 19/02/06).
Se o Belão, envergonhado de sua caboclitude, pode inventar sangue germânico, por que eu não posso avacalhar, inventando documentos comprobatórios disso? Foi o que fiz. Entre uma reunião e outra, escrevi um artigo tão fantasioso quanto as origens do Belão. Agora, de retorno a Bielefeld, aproveito para retomar o mesmo tema por outro viés. Pergunto: por que dois parlamentares amazonenses procuram sua identidade fora da região, um deles inventando uma inexistente origem germânica?
Caminhando pelas ruas de Bielefeld, até que entendo o Grosse-Schön do Alto Solimões. Ruas limpas, ajardinadas, mais de 60% de sua área urbana – eu disse urbana – é pura floresta. Os carros param nos cruzamentos dando vez ao pedestre. As livrarias – são muitas - estão permanentemente cheias de gente, lendo que lendo. Quem não admira povo tão civilizado e ordeiro como o alemão? Aqui a cerveja é cerveja, o leite é leite, o pão tem gosto de pão e o queijo tem sabor de queijo. É pão pão, queijo queijo.
Brot und Käse
Não te impressiona, leitor (a), com essas palavras. Se a reunião da qual participo ocorresse na língua alemã, eu entraria calado e sairia mudo. Não falo bulhufas de alemão. Pra fazer esse caqueado todo, dando a impressão de uma falsa cultura, tenho que buscar socorro no dicionário. Minha ignorância na língua não me impediu, no entanto, de recorrer a boas traduções para conhecer a filosofia, a literatura, a poesia, a etnografia, enfim, a ciência produzida pelos alemães.
Dois deles, Spix e Martius, percorreram o Brasil em 1819-1820 e recolheram dados sobre mais de cem línguas indigenas. Outro, Curt Unkel, foi re-batizado numa aldeia e adotou nome guarani: Nimuendaju. Viveu quarenta anos entre os índios e morreu em 1945 numa aldeia Ticuna no Alto Solimões, ali onde Belão garimpa seus votos. Há ainda Theodor Koch-Grunberg que coletou histórias de Macunaíma, narradas pelos Makuxi, Wapixana e Taurepang de Roraima.
Eis o que eu queria dizer: se o Belão é mesmo alemão, como diz, tem que mudar de postura, pois os alemães admiram os índios. E para infelicidade do Belão e do Balieiro, um leitor me informa que Pedro Garcia, índio Tariana, e André Baniwa, foram eleitos prefeito e vice-prefeito de São Gabriel da Cachoeira. Também o novo prefeito de Barreirinha é um índio, Messias Sateré. O Evo Morales está fazendo escola no Brasil.
Anunciei aqui a conquista das duas prefeituras do Amazonas pelos índios. Ai, o chileno José Bengoa, autor de vários livros sobre as lutas indígenas, explicou que fatos como esse vem acontecendo em diversos países, com uma dimensão local e regional. Para ele, acabou a primeira fase do ciclo da emergência indígena, que permitiu discutir a questão da etnicidade na América Latina.
“A segunda fase que está começando agora – explica o pesquisador chileno - vive o processo de descolonização interna, com o desafio de construir uma nova forma de cidadania indígena. Os índios não têm porque, quando são maiorias nacionais, regionais ou locais, de deixar o poder do Estado aos colonialistas e isolar-se numa espécie de auto apartheid. Eles tem que buscar controlar e se beneficiar do aparelho de Estado”. Foi o que aconteceu em São Gabriel e em Barreirinha.
Monte Carlo
Sei que o que vou narrar agora nada tem a ver com o que foi dito até aqui. Mas não resisto. Termino a coluna te contando, leitor (a), uma historinha que circula por essas bandas. É o seguinte: Sarkozy, presidente da França, foi a Monte-Carlo encontrar o príncipe Alberto II, primeiro mandatário do Mônaco. Depois da visita, os franceses inventaram uma piada abominável que brinca com as palavras e com a primeira dama da França, a bela cantora Carla Bruni.
O jogo de palavras requer esclarecimento prévio. O verbo francês ‘monter’ significa subir, trepar, com o mesmo duplo sentido que tem em português. A piada começa com a pergunta: Qual é a diferença entre Sarkozy e o príncipe Alberto II? A resposta: ‘Le Prince Du Mônaco est le premier homme à Monte-Carlo. Sarkozy est le dernier homme à monter Carla”.Piadinha infame, machista e abominável.
P.S. - Convidado outra vez pelo Centro Interdisciplinar de Pesquisa (ZIF) da Universidade de Bielefeld, participei do 8 ao 11 de Outubro da Conferencia "E Pluribus Unum? Ethnic identities in Processes of Transational Integration in the Americas" coordenado por Sebastian Thies, Olaf Kaltmeier e Josef Raab. A conferencia proferida versou sobre "Identidad, Memoria y Patrimonio: Desplazamiento Linguístico en la Amazonia del Siglo XIX".
Section IV: Translations of Ethnic Strategies and Discourse in Everyday Life Past and Present (Long Table)
Chair: Leo Chávez (University of California, Irvine)
José Ribamar Bessa Freire (UERJ/UNI, Rio de Janeiro): Identidad, Memoria y Patrimonio: Desplazamiento Lingüístico en la Amazonia del Siglo XIX
Anne Magnussen (Syddansk Universitet, Odense): Conflicts about Public Space and Ethno-Racial Identities: Historical Narratives and Uses of Space in Gonzales, Texas
Cornelia Giebeler (FH Bielefeld): Las mujeres de Juchitán: Construcciones de una identidad étnica por la cultura festiva y su enlace económico, cultural y espiritual