CRÔNICAS

Eu, Facirra Fadel, a flor de meu pai

Em: 17 de Março de 1992 Visualizações: 11240
Eu, Facirra Fadel, a flor de meu pai

O velho Fadel, meu pai, era jardineiro. Num oásis banhado pelo rio Baradá, perto de Damasco, ele cultivava tulipas, jacintos e orquídeas. Mas as flores de meu pai foram esmagadas pelas botas dos soldados franceses que ocuparam a Síria, em 1920. Para não morrer, ele fugiu. Veio pro Brasil e acabou ficando em Manaus, onde virou regatão. Passava meses viajando. Toda vez que o motor atracava na Escadaria dos Remédios, a minha madrinha recitava:

- O vento bateu na porta. Menina, vá ver quem é. Será que é o teu velho pai, chegando de Eirunepé?

Era ele. A primeira coisa que fazia era me beijar, comemorando:

- Cadê a vlorzinha do babai, cadê?

E juntos, íamos regar o nosso jardinzinho, lá no fundo do quintal da rua Mundurucus. Depois, ele me embalava na rede, cantando músicas que tocavam na Rádio Baré:

- Pisa na fulô, pisa na fulô, pisa na fulô, não maltrata o meu amor.

Eu pedia:

- Canta aquela gravada por Inhanha e Cascatinha.

Ai, ele me fazia dormir:

- "Que beijinho doce foi ele quem trouxe de longe pra mim"...

Eu, Facirra Fadel, flor-de-meu-pai, nasci e cresci entre flores e aprendi tudo sobre elas. São como se fossem irmãs minhas. Adoro a sua beleza delicada, suas cores vivas e, de longe, sinto o perfume que elas exalam. Mas um dia, indo ao mato colher flores, a flor que eu tinha, perdi. Engravidei. E aí me casaram. Nasceu um filho, que hoje trabalha na Petrobrás. O pai dele, o homem que colheu a minha flor, fugiu com outra mulher. Humilhada, envergonhada, sem ter com quem compartilhar minha dor, comecei a falar com as flores.

- Ela enloqueceu! - os vizinhos comentavam, dizendo que eu tinha alucinações.

Doida? Eu? Só porque me enterneço com as rosas, acaricio os crisântemos e converso com os cravos? Doido, por dinheiro público, é esse tal de Amazonino, que não é flor que se cheire. Eu, Facirra Fadel, sou doida, mas é por flores. Cheirosas.

Por isso, nessa sexta-feira passada, não resisti. Saí à procura delas. E então vesti a melhor roupa que eu tinha: uma calça comprida, branca como um lírio, uma blusa da cor da violeta, e sandálias amarelas como as tulipas do Mediterrâneo. Coloquei numa sacola uma rede, lençol, toalha e saí para me encontrar com elas.

Empinei meu nariz e deixei que o meu olfato me conduzisse pelos bairros de Manaus. Cruzei a Praça Catorze. Desci pela Emilio Moreira. Entrei na rua Ramos Ferreira. Quando cheguei na frente da casa de número 763, senti meu coração apertado, todo o meu corpo tomado, minha alegria voltar. Olhei para dentro, vi o pátio coberto de flores e plantas e falei para elas:

- Meninas, cheguei! Facirra, a flor-de-meu-pai, veio para cuidar de suas maninhas.

Entrei, armei o punho da minha rede na grade da janela, me deitei e durante horas conversamos. Contei todas as minhas mágoas. Queixei-me que estava murchando, porque meu jardineiro me abandonou, já não me molhava mais com o seu regador. Que todas as vezes que começava a falar com elas, me levavam para o hospício de Flores. Até choque elétrico me davam.

Elas também me contaram muitas fofocas, falaram mal do Egberto Batista e do irmão dele, o Mirandinha, que estão apoiando o candidato do PDC (viche! viche!) à Prefeitura de Manaus. A conversa, animada, foi interrompida por um estranho invasor:

- Quem é a senhora? O que está fazendo aqui dentro da minha Floricultura? Isso é uma propriedade privada...

O invasor, chamado César Seixas, comerciante de flores, ainda que invasor, foi educado, eu reconheço. Mas fiquei danada da vida, porque ele queria tomar as minhas flores. Ele vende flores. Eu amo flores. Protestei. Uns funcionários da Prefeitura, que estavam trepados numa escada, podando umas árvores em frente da casa, gritaram:

- Cuidado! Ela é doida!

Eu fui lá fora e derrubei a escada deles. Joguei uma pedra na vidraça da janela e ameacei quebrar todos os vidros da casa. Armei confusão. Doida? Eu? Facirra Fadel? Doido para se reeleger vereador está o ressarcido Robério Braga (PFL - viche! viche!), que durante o carnaval imprimiu e distribuiu cem mil folhetos de propaganda com as letras dos sambas das escolas. De onde saiu o dinheiro? Dos ressarcimentos médicos?

Mas aí o invasor César Seixas telefonou para o Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. O pessoal de lá já me conhece. Eu ouvi quando ele disse:

- Tem uma senhora que ocupou a minha loja de flores, armou uma rede aqui dentro e está dizendo que é a proprietária. Ela perdeu o juízo.

Eu, Facirra Fadel, flor-de-meu-pai, perdi a razão? Só porque estava conversando com as flores? Quem perdeu a razão foi a Arminda Mourão, que foi conversar com o canhão. Rima e é uma solução. Na semana passada, ela foi à Câmara Municipal e aplaudiu o suplente de vereador Omar Aziz (PDC - viche! viche!), quando ele defendeu uma aliança das esquerdas com o Amazonino Mendes, num plano para matar todas as flores de Manaus. Quem perdeu a razão? Eu, que sei que as rosas falam e exalam? Ou as macacas-de-auditório do Omar Aziz, que querem adubar os cravos da revolução com o esterco da reação?

Três soldados da PM chegaram numa viatura. Calçavam botas matadoras de flores, semelhante a dos soldados franceses. Eu percebi logo que estava diante de um óbice e que minha presença ali não era mais exequível, para falar claramente, como o deputado José Dutra, que gosta de se expressar dessa forma. Recuei. Não sou doida para enfrentar soldado armado. Dei o endereço da minha irmã e eles disseram que iam me levar pra casa dela. Mas desconfio que estão me levando para o hospício Eduardo Ribeiro.

No domingo, dia 15 de março, A CRITICA contou o que aconteceu, mas só ouviu a versão do invasor, não ouviu a minha. Publicou seis fotos: a primeira, eu na rede, conversando com as minhas flores. Na outra, eu estou enfrentando os assassinos de árvores. A última, eu chegando na Cachoeirinha, na casa da minha irmã, conduzida pela PM.

- Se a senhora voltar lá, a gente lhe leva pro hospício.

Perdi a batalha, mas não a guerra. Cem mil flores hão de florescer! Nem que Deus tenha de chorar sobre o rio, conforme o relato de um certo oriente! Pode esperar que eu volto, ouviu César Seixas? Eu volto. Vou armar minha rede outra vez dentro da casa do invasor, e ai ficarei para sempre, falando com as flores, minhas irmãzinhas. Pode a flor vencer o canhão? Pode. Tenho dito. O referido é verdade e eu dou fé. Assinado: Facirra Fadel, flor-de-meu-pai.

P.S. - Publicado na versão impressa com o titulo PARA DIZER QUE EU FALEI DE FLORES e ilustração de Fernando Brum

 

 

 

 

 

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2 Comentário(s)

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Francisco Soares Junior comentou:
12/04/2023
Essa senhora, Facirra Fadel, era minha Tia Avo. Irma de Dona Malcher Fadel, famosa benzedeira na Cachoeirinha. Ambas faleceram no final dos anos 90 e com elas, milhoes de historias. Uma verdadeira saga de mulheres guerreiras, de sangue sirio. Matriarcas, corajosas. As irmas Fadel mereciam nao so um livro, mas uma serie deles, tantas foram as historias. Os desafios. As derrotas e tambem, as vitorias. Sinto falta de todas. Dona Facirra, a louca. Que mesmo em sua insanidade, era sabia, era valente, e era puro amor pelo filho. Leonice, a mansa. Belissima! Que amargurou uma vida de sacrificios, violencia domestica, viuves, ainda muito jovem, cancer e ainda assim, era conformada com o que tinha, com o que a vida lhe deu e lhe levou. Saiu desse mundo deixando seus frutos, mas nao a sua marca e finalmente, Malcher, a matriarca. A mae de todos. A que adotou e amou incontestavelmente, os sobrinhos, os netos, os bisnetos. Aquela que curava com uma folhinha de goiabeira, os filhos dos outros. Aquela que cozinhava diversos pratos para um mesmo almoco, para que cada neto, presente, e nao eram poucos, tivesse na mesa, a sua comida preferida. Essa familia era puro amor. Um pouco barulhenta (Todos so sirios sao), mas nao faltavam exemplos, historias, admiracao e amor.
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Paulo Bezerra comentou:
26/04/2014
Essa crônica, com certeza (separado e com z) é uma das mais belas e emocionantes do teu vasto repertório. Parabéns.
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