.Charapa é o nome que no Peru e no Equador se dá a um tipo de tartaruga que vive nos rios, lagos e florestas da Amazônia. Essa espécie de cágado, de casco negro com manchas amarelas, corresponde ao que no nosso português regional chamamos de tracajá. Nada mais amazônico. Por isso, é com essa palavra que os peruanos denominam todos aqueles que nascem na região da selva.
Nascido em Iquitos, em 1943, o poeta Manuel Morales é um ‘charapa’, um ‘tracajá’ autêntico, da gema, do tipo que nós, na Amazônia brasileira, chamamos de 'caboco suburucu'. Ele ganhou vários prêmios de poesia, entre os quais o primeiro lugar nos Juegos Florales Universitários de 1967, organizado pela Universidade Nacional de Educação, conhecida como La Cantuta.
Nessa época, publicou dois livros: Peicen Bool (1968) e Poemas de entrecasa (1969). Enquanto viveu no Peru, esse caboco suburucu integrou o Movimento Hora Zero, que congregava poetas rebeldes de sua geração. Mas logo depois, nos anos 1970, viajou para o Brasil, vivendo por mais de trinta anos em Porto Alegre (RS), onde morreu em 2 de outubro de 2007, aos 64 anos, longe dos amigos peruanos e de qualquer uma das amazônias, mas cercado pelo afeto de "tocadores de tambor, flauta, violão e cavaquinho".
Continuo intrigado sem saber bem por que nós, da Amazônia brasileira, desconhecemos os nossos vizinhos da Pan-Amazônia, de cujo convívio salutar estamos privados, apesar da proximidade geográfica e cultural. Lendo o poema de Manuel Morales intitulado ‘Si tienes um amigo que toca tambor´, pensei que os brasileiros gostariam de conhecê-lo. Por isso, publiquei há vinte anos uma tradução desse poema, quando seu autor ainda vivia. Agora, depois de sua morte, quero uma vez mais compartilhá-lo com os leitores para tentar, dessa forma, derrubar alguns tijolos do muro que nos separa.
SE TENS UM AMIGO QUE TOCA TAMBOR
Se tens um amigo que toca tambor
Cuida bem dele! É mais que um conselho: cuida bem dele!
Porque hoje em dia ninguém mais toca tambor.
Pior ainda: ninguém mais tem um amigo.
Então, cuida bem dele,
Que esse amigo guardará tua casa.
Mas não o deixes sozinho com tua mulher, lembra-te
Que ela é tua mulher e não de teu amigo.
Se segues este conselho, viverás
Muito tempo. E conservarás a tua mulher
E um amigo que toca tambor.
Uma carta de Manuel Morales enviada do Brasil ao seu amigo (que toca tambor) Túlio Mora, que também é poeta, foi publicada recentemente num periódico de Lima. Nela, declarava-se ainda vinculado, mesmo de longe, ao movimento Hora Zero e definia sua visão de poesia:
“Te digo que escrever é viver. A poesia é, portanto, um estado de reconstrução e nominação dos elementos do mundo. Vocês dirão: Manuel Morales viveu longe e nos esqueceu. Não é verdade. Tenho orgulho de ser um militante de Hora Zero, o movimento que ajudamos a construir para que a poesia não seja uma farsa”.
Outro poema de Manuel Morales, publicado na Antologia da poesia peruana, organizada por Alberto Escobar, se intitula ‘Usos son de la guerra’, algo assim como ‘São os costumes da guerra". A inspiração vem de uma frase atribuída ao Inca Atahualpa, assassinado pelos espanhóis em 1533, que teria declarado em quechua a Pizarro: "Maqanakuypa chayninmi maqay utaq maqachikuy", cuja tradução corresponde a um refrão que circula também na poesia hispânica: "usos son de la guerra vencer o ser vencido". Com seu humor refinado, Morales poetou:
USOS SON DE LA GUERRA
No amor e na cama,
Napoleão foi um fracasso.
Não digo o mesmo
na guerra. Seu êxito
consistia em envolver o inimigo.
E a França o teve
como seu filho mais dileto;
e lhe deu fama
e suas mais formosas mulheres.
Tão grande na estratégia
e com um pênis tão pequeno, na cama
mandavam suas mulheres. (A vitória
se deveu a seus generais).
Outro poema do autor peruano que merece ser aqui apresentado:
NÃO BUSQUEM UMA PÁTRIA
Não busquem uma pátria
Que contenha rosas. Hoje
As rosas não existem mais. Só existe
Uma pátria na palma do peito
E outra no centro do olho.
Continuem buscando rosas. Encontrarão
Um balaço no peito
E outro
No centro do olho.
Tenho alguns leitores que tocam tambor e me escrevem. Quase nunca lhes dou a devida atenção. Hoje, seguindo todos os conselhos do poeta Manuel Morales, vou cuidar bem deles, dedicando-lhe um espaço nesta coluna
Jacob toca tambor
Jacob Felipe A. Jezine, 16 anos, estudante do 1º grau do Colégio Álvaro Botelho Maia, mora na rua Constantino Nery. Ele escreveu a seguinte carta que vai aqui publicada na íntegra:
Sr. Jornalista. O assunto mais debatido no Amazonas, hoje, é a fortuna do senador A. Mendes, conseguida através de falcatruas contra os cofres públicos e um império de comunicações, que ele pretende implantar no Estado do Amazonas. O prefeito atual da cidade de Manaus, Arthur Neto, o chama de "ladrão". Não prova. Eu posso chamar qualquwer uma pessoa de "ladrão" sem provas.Não passará de calúnias e mentiras. Já estamos cheios. Ou o Arthur prova na Justiça suas acusações, que se verdadeiras darão a Amazonino 240 anos de reclusão (U$ 30.000,00 = 8 anos) ou fica nisso que está: acusações de véspera de eleição. Depois das eleições, todo mundo volta a ser amigo e vão brindar no "Iate Amazônia" com líquido escocês. A bandalheira na política eu estou cansado de ver. Nas eleições para governador, o Arthur atacou o Gilberto Mestrinho e hoje estão juntos numa aliança para eleger o prefeito. Se eles querem honrar o povo e a si próprios, que levem isso até o fim e que o único a ser punido não seja o Amazonino, mas todos aqueles que roubam de nosso Estado.Vou terminando essa carta, deixando a dúvida, que martela a cabeça de milhares de amazonenses, que estão cansados de comprar tomates paulistas na Feira da Panair e que exigem ação do prefeito. Já que ele não é uma "cobra criada" e sim um homem público honesto. Lugar de lixo é na lixeira. Assino: Jacob Felipe A. Jezine, 16 anos.
VIVA EIRUNEPÉ
Chega uma carta com carimbo de Carauari sobre o selo do envelope, enviada por Carlos Henrique Barroso de Souza, que colocou seu endereço e o número da Cédula de Identidade.
Sr. José Ribamar, sou eirunepeense com muito orgulho e naquela boa terra existem pessoas de bem. Não é pelo fato do senador Amazonino Mendes (votei na Marlene Pardo) ser um eirunepeense indigno que o sr., em sua conceituada coluna, deva malhar todos os que lá nasceram. Estou falando isso pelo feto do sr. ter feito um comentário sobre o Mário Jorge, se não me falha a memória, que não deu o nome completo e não assinou a carta. Aí, o sr. comentou: "Tu nasceste em Eirunepé, maninho". (A CRÍTICA, 17/03/92).
Eu concordo em gênero, número e grau, quando o sr. se refere ao senador do PDC (vixe, vixe) como um péssimo brasileiro, um horrível amazonense e um eirunepeense indigno.
Obs. Atualmente estou residindo em Carauari. Grato. Carlos Henrique Barroso de Souza.
GABRIEL GENTIL TUKANO
Gabriel dos Santos Gentil, secretário da Fundação de Cultura Indígena /Amazônia, escreve pedindo um exemplar do livro "Amazônia no Período Colonia: 1616-1798", do qual sou coautor com outros professores do Departamento de História da UA. Ele informa que está escrevendo um livro destinado a recuperar a memória e a tradição oral do seu povo Tukano do Alto Rio Negro. Lamenta que a Inspetoria Salesiana esteja enviando o amigos dos índios, o padre Casemiro Beksta, para a Lituânia, sua terra de origem, o que significará uma grande perda para as culturas do Rio Negro.
SILVIO MÁRCIO ALENCAR: SURDEZ
Sílvio Márcio escreve afirmando que gostou da última crônica "Taquiprati" e aproveita para enviar um calendário do Instituto Felippo Smaldone, escola especial para deficientes auditivos de Manaus, acompanhado de duas matérias jornalisticas, de sua autoria, intitulada: "A SURDEZ PODE SER EVITADA"
RESPOSTAS ÀS CARTAS
1. Meu companheirinho Jacob. Você redige muito bem. Meus parabéns extensivos a todas as professoras e professores do Colégio Álvaro Maias que, apesar do salário de miséria, continuam construindo anonimamente o Brasil e contribuindo para a formação de cidadãos como você. Essa questão das alianças políticas merece um artigo, você não acha? A gente constrói uma visão da realidade, discutindo, refletindo e trocando ideias. Você certamente está participando desse processo de construção, colocando seu tijolinho.
2. Povo de Eirunepé, mil perdões! Minha intenção não era ofender, mas sou obrigado a reconhecer que é uma baita humilhação ao município e à cidade denominar A. Mendes como “senador de Eirunepé”. A população sofrida e combativa deste município não merece. O Carlos Henrique tem toda razão. Peço desculpas e me comprometo a nunca mais me referir ao senador do PDC (vixe, vixe) usando a localidade onde ele nasceu. Viva Eirunepé.
3. Gabriel, nós vamos arrumar um exemplar do livro nos próximos dias. Emprestei o único exemplar que eu tinja e nunca me devolveram. Mas ou o Zé Maria, da Livraria Nacional ou um dos coautores do livro entrarão em contato com você no telefone da Fundação da Cultura Indígena (236-9702) aí em Manaus para lhe entregar um exemplar.
4. Sílvio, obrigado pelo calendário. Lendo os teus artigos, aprendi como a deficiência auditiva pode ser evitada. Te pergunto: e aquela outra surdez, a dos vereadores ressarcidos, por exemplo, que não ouvem o clamor popular e não devolvem aos cofres públicos o que de lá surrupiaram? Estou mentindo, Raimundo Furtado? Cadê os CR$ 47.000.000,00, Raimundinho, foram furtadinhos? E não adianta querer culpabilizar as esquerdas pelas doenças que você nunca contraiu.
P.S. – Leitores desta coluna estão convidados para o casamento da Cleísa e do Marcelo Magaldi na próxima segunda-feira, dia 13 de abril. Vai haver a maior comilança regada por cerveja e vinho francês lá na mansão dos pais da noiva Heyrton e Rosilene.
Correspondência para esta coluna: José R. Bessa Freire, Caixa Postal 105094 – CEP 24231. Niterói - RJ
(*) A expressão "caboco suburucu, popa de lancha e bandeira azul" é muito usada no Amazonas para designar um amazonense da gema. Quem gosta dela é o nosso poeta maior, de Barrerinha (AM), Thiago de Mello e sua prima Marilza Foucher. CABOCLO ou CABOCO, como regionalmente se prefere, aparece em vários dicionários, entre os quais o Glossário Paraense(1905), de Vicente Chermont de Miranda e o mais recente Dicionário de Amazonês (2004), de Sérgio Freire de Souza da Universidade Federal do Amazonas. Refere-se ao mestiço, mas é também a uma forma de tratamento carinhosa, de cumplicidade identitária, que corresponde ao cholito peruano ou ao cunhado caribenho. Já o termo SUBURUCU, embora de amplo uso, não está dicionarizado, nem sequer no clássico Vocabulário de Língua Geral Português-Nheengatu, de Stradelli (1929). No entanto, a partir dele, podemos fazer algumas considerações. Em Nheengatu, SU é um marcador de perfectividade que marca uma ação como acabada (ido, andado, conforme Stradelli). URUCU é fruto do urucuzeiro (Bixa Orellana) - planta nativa da América Tropical - cujas pequenas sementes são usadas como condimento e como corante na comida e na pintura corporal indígena. SUBURUCU pode ser, portanto, aquele caboco legítimo, porque pintado de urucu, ainda que simbolicamente, que navega em canoa, cuja popa, em dias de festa, ostenta uma bandeira azul.
EL TAMBOR DEL CABOCO SUBURUCU
Charapa es como se llama en el Perú y en el Ecuador a un tipo de tortuga que vive en los ríos, en los lagos y en la floresta de la Amazonía. Esta especie de casco negro con manchas amarillas, corresponde a lo que se llama en portugués regional tracajá. Nada más amazónico. Por eso, con esa palabra los peruanos denominan todos aquellos que nacen en la región de la selva.
Nacido en Iquitos, en 1943, el poeta Manuel Morales es un ‘charapa’, un ‘tracajá’ auténtico, de esos que nosotros en la Amazonía brasileña llamamos ‘caboco suburucu’ (*). Ganó varios premios de poesía, entre los cuales el primer lugar en los Juegos Florales Universitarios de 1967, organizado por la Universidad Nacional de Educación, conocida como La Cantuta.
En esa época, publicó dos libros: Peicen Bool (1968) y Poemas de entrecasa (1969). Mientras vivió en el Perú, ese caboco suburucu integró el Movimiento Hora Zero que congregaba los poetas rebeldes de su generación. Pero después, en los años 1970 viajó al Brasil, vivió más de treinta años en Porto Alegre (RS), donde murió el 2 de octubre de 2007, a los 64 años, lejos de los amigos peruanos y de cualquier Amazonía, pero rodeado del afecto de ‘tocadores de tambor, flauta, guitarra y cavaquinho’.
Continúo intrigado sin saber bien porque en la Amazonía brasileña, desconocemos nuestros vecinos de la Pan-Amazonía, de cuyo convivio saludable estamos privados, a pesar de la proximidad geográfica y cultural. Al leer el poema de Manuel Morales ‘Si tienes un amigo que toca tambor’, imaginé que a los brasileños les hubiera gustado conocerlo. Por eso hace veinte años, cuando el autor aún vivía, publiqué una traducción de ese poema, que quiero, después de su muerte, compartir una vez más con los lectores para intentar, de esa forma, derribar algunos ladrillos del muro que nos separa.
SI TIENES UN AMIGO QUE TOCA TAMBOR
Si tienes un amigo que toca tambor
Cuídalo, es más que un consejo, cuídalo.
Porque ahora ya nadie toca tambor,
Más aún, ya nadie tiene un amigo.
Cuídalo, entonces,
Que ese amigo guardará tu casa.
Pero no lo dejes con tu mujer, recuerda
Que es tu mujer y no la de tu amigo.
Si sigues este consejo, vivirás
Mucho tiempo. Y tendrás tu mujer
Y un amigo que toca tambor.
Una carta de Manuel Morales enviada de Brasil a su amigo (que toca tambor) Tulio Mora, que también es poeta, fue publicada recientemente en un periódico de Lima. En ella, se declaraba todavía vinculado, aunque de lejos, al movimiento Hora Zero, y definía su visión sobre la poesía:
“Quiero decirles que escribir es vivir y la poesía es, por tanto, un estado de reconstrucción y nominación de los elementos del mundo. Ustedes dirán Manuel Morales vivió lejos y nos olvidó. No es verdad. Tengo orgullo de ser un militante de Hora Zero, el movimiento que ayudamos a erguir para que la poesía no sea una farsa”.
Otro poema de Manuel Morales publicado en la Antología de la poesía peruana organizada por Alberto Escobar se titula ‘Usos son de la guerra’. La inspiración viene de una frase atribuida al Inca Atahualpa, asesinado por los españoles en 1533, que habría declarado a Pizarro en quechua: "Maqanakuypa chayninmi maqay utaq maqachikuy", cuya traducción corresponde a un refrán que circula también en la poesía hispánica: "usos son de la guerra vencer o ser vencido". Con su humor refinado, Morales poetizó:
USOS SON DE LA GUERRA
En el amor y en la cama
Napoleón fue un fracaso.
No digo lo mismo
en la guerra. Su éxito
consistía en envolver al enemigo.
Y Francia lo tuvo
como su hijo predilecto;
y le dio fama
y sus más hermosas mujeres.
Grande en estrategia
y corto en pene, en la cama
mandaban las mujeres. (La victoria
correspondió a sus generales).
NO BUSQUEN UNA PATRIA
No busquen una patria
Que contenga rosas. Hoy