O nosso Sissica foi-se. Na dura gíria dos anos 50, alguém diria que ele “fechou o paletó”. Gíria duplamente imprópria para o caso, porque o Sissica raramente usava paletó: odiava formalidades. Além disso, quem “fechava o paletó” era sempre o morto dos outros, nunca o nosso morto, por nós chorado. E Silvério Tundis é nosso morto, querido por todos que o conhecíamos: gregos, troianos e baianos.
- Como é que é, “crionça”? Vais ou não vais escrever sobre minha morte?
Acordei, suado, com essa exigência do meu amigo Silvério Tundis. No sonho, ainda discuti com ele, recusei a tarefa, argumentando que fujo da morte como o diabo da cruz. Tudo em vão. Ele insistia:
- Escreve, mas escreve uma coisa alegre e sincera. Nada de baixo astral. Odeio tristeza e hipocrisia. Não quero sentimentalismo burro. Diz pra galera que eu não morri. Diz que virei purpurina.
Ele virou purpurina. Conheci o Silvério às 3:00 horas da madrugada de um sábado do mês de abril de 1977, apresentado no meio da rua por uma amiga comum, a professora Nathércia Menezes. O carro no qual eu vinha com a patota do Instituto Christus furou o pneu na avenida Ayrão, próximo ao Canto da Peixada. Não havia macaco. Fazia uns quinze minutos que estava em pé, conversando com a Nathércia, quando ouvimos um grito ecoando na madrugada:
- Olha a Nega do pneu furado!
Era o Sissica, passando em outro carro. Ele, que havia dado aulas no Instituto Christus, tinha acabado de chegar de uma viagem. Parou. Emprestou o macaco. Ajudou a trocar o pneu. Debochou do diabo e do mundo. Brincou. Trouxe uma lufada de alegria na madrugada. E foi-se. Mas voltou.
Daí em diante, nos encontramos em muitas brigas: na luta antimanicomial, no movimento dos professores da APPAM; na ADUA, da qual ele foi presidente; na ANDES – Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior, onde tive a satisfação de passar pra ele a vice-presidência regional, numa solenidade realizada em São Paulo, em julho de 1986. Em muitas frentes, que eram muitas e nós, poucos.
Há um mês e meio nos falamos pela última vez. Estava eu de passagem por Manaus. O Sissica insistia para que assistisse a abertura do Congresso da ANDES, no Teatro Amazonas. Escaldado com episódio anterior, ainda brinquei:
- Não posso. O Peduto não vai me deixar entrar de sandálias no Teatro Amazonas.
Se existe céu, o nosso Sissica deve estar lá, negociando com São Pedro para maneirar com as chuvas, a fim de impedir que as enchentes façam maiores estragos com a população ribeirinha do Amazonas.
Todos nós que com ele convivemos, sabemos de sua grande capacidade de articulação política. Era uma raposa felpuda. Adorava juntar pessoas e costurar alianças, o que era facilitado por sua capacidade de ser aceito pelos grupos mais diversos e antagônicos. Era fiel aos seus princípios, leal ao seu grupo de origem, mas cultivava a difícil arte da convivência inclusive e, sobretudo, com quem pensava diferente dele. Estava longe daquela arrogância militantona de quem se considera o dono da verdade e classifica os demais de “traidores” ou “burros”.
Talvez a própria profissão que escolheu – era competente e respeitado como médico e psiquiatra – o ajudou a conviver com a diferença, com a dor alheia, com os corações partidos e com as cabeças tortas.
Nesta última eleição para reitor da Universidade Federal do Amazonas, pensávamos diferente. No atual momento da universidade brasileira, estou convencido de que é extremamente importante fortalecer o chamado poder acadêmico, que vem sendo internamente minado em detrimento do chamado poder sindical e especialmente do poder administrativo.
Silvério acreditava em outros caminhos. Todas as vezes que vinha ao Rio de Janeiro, para tratamento médico, já com a doença avançada, almoçávamos juntos na minha casa, discutíamos e saíamos cada um mais convencido de sua própria opção, sem qualquer ferida no relacionamento pessoal. Mais por mérito dele (eu não quero ser, mas confesso, humilhado, que sou rancoroso).
Agora, de Manaus, chega a notícia que todos sempre temíamos: o Sissica foi-se. Definitivamente. Era portador do vírus da AIDS. E não era hemofílico. Com muita dignidade, assumiu a sua condição de homossexual perante a família, os amigos e a sociedade manauara, o que – convenhamos – exige muita coragem num ambiente preconceituoso como o nosso.
Com seu comportamento lúcido e corajoso, com suas atitudes e com sua própria vida, Silvério Tundis nos ensinou a ser mais tolerantes e a não considerar o homossexualismo como uma “doença” ou um “desvio”. Contribuiu para combater preconceitos sórdidos com maior eficácia do que muitos movimentos que lutam pelo direito de cada uma manifestar a sua sexualidade da forma que achar mais apropriada.
- Pôxa, esse cara só tem qualidades. Não tem defeitos?
Essa pergunta pode ser feita por qualquer leitor que não o conheceu. É verdade. Quando as pessoas estão vivas, a gente sempre encontra nelas milhões de defeitos. Bastou morrer para virar herói, santo ou mártir. É como se sua ausência servisse para apagar todas as pequenas misérias, sobrando apenas qualidades.
Mas não é por aí não. O Sissica era gente como nós – como você e eu, leitor (a) – com as nossas contradições, os nossos medos, as nossas paixões e as nossas covardias e vacilações cotidianas. Numa coisa, porém, era superior. Não posso falar por ti, leitor (a), mas com certeza ele era superior a mim, na sua capacidade de conviver com a proximidade da morte.
Com uma guilhotina suspensa permanentemente sobre sua cabeça nos últimos dois anos, Sissica se agarrou aos fiapos da vida, trabalhou e batalhou até o último segundo, com uma força e uma coragem inéditas. Votou na eleição para reitor quando já estava cego e debilitado, bem próximo do fim. Confesso que não sou tão macho para enfrentar a morte.
Taí, amigo. Escrevi. Você não morreu. Virou purpurina. Como na propaganda política do Amazonino: até breve.
(Parece que estou vendo seu riso irônico me criticando: - Essa praga tinha que meter o Amazonino no meio do meu velório. Não respeita nem os mortos. Eu, einh).