CRÔNICAS

O vereador que ficou grávido

Em: 22 de Fevereiro de 1994 Visualizações: 10707
O vereador que ficou grávido
O vereador estacionou o seu carro na Praça do Congresso. Olhou o relógio digital. Onze horas do dia 10 de junho de 1991, terça-feira. Fazia um calor abafado. Consultou em A Crítica a cotação da moeda americana. Naquele dia podia comprar US$ 1 dólar com CR$290,80. Em passos apressados, entrou na clínica ginecológica situada ao lado da Agência dos Correios.
- Oi Gina, tudo bem? - disse ele com intimidade para a secretária Regina. Ela entrou com ele no consultório do médico que já o estava esperando.
- Doutor, acho que estou grávido - disse o vereador na maior cara-de-pau, sem se preocupar com a presença da secretária.
Via de regra - via de regra mesmo - só podem engravidar aqueles seres humanos que tem um equipamento similar ao que Lilian Ramos exibiu neste carnaval para o presidente Itamar Franco. Via de regra. Não era o caso do vereador. Por isso, a sua afirmação teria o efeito de uma bomba em qualquer lugar do mundo. Mas Manaus é como Tubiacanga, onde tudo pode acontecer. O médico, na maior tranquilidade, convidou a secretária a se retirar da sala.
- Vá, Gina, vá lá fora, que vou examinar o paciente.
Depois que Regina saiu, o médico perguntou como se fosse a coisa mais normal do mundo:
- Quando aconteceu a sua última menstruação?

O vereador coçou a a cabeça e respondeu:
- Não me lembro.
- Ausência de regras não caracteriza necessariamente um estado de gravidez. Pode ser um distúrbio menstrual, uma simples amenorréia - ponderou o médico.
- Doutor, vou abrir o jogo. É para ressarcimento. Estou precisando de 4 mil dólares.
- Ah, bom! Por que não me disse antes? - retrucou o médico pegando sua máquina de calcular. - Sendo assim, vamos fazer um exame ginecológico completo das mamas, do abdômen, dos órgãos genitais internos: ovários, tubas, útero e vagina, e dos órgãos externos: lábios maiores e menores do pudendo, clitóris, bulbo do vestíbulo e glândulas anexas. Tudo isto dá aproximadamente US$ 1.000,00 dólares.
- Doutor, vou comemorar o aniversário da minha filha. Convidei o Atila Lins, o Ezio, toda a direção do PFL e o pessoal do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Eles comem muito e só bebem uisque importado. O senhor sabe quanto é que o Buffet da Dulcila está cobrando? Preciso, de pelo menos, US$ 4.000,00 dólares.
- Então precisamos fazer exames mais sofisticados. Uma colposcopia está bém?
- Uma o quê?
Col-pos-co-pia. É um exame do colo do útero com um aparelho especial chamado colposcópio. Custa US$ 500,00 dólares.
- Pra lhe falar a verdade, eu nem sabia que útero tinha colo. O único colo que conheço é o regaço da mamãe. Mas aí dá um total de US$ 1,500,00. É pouco, fica faltando ainda US$ 2.500,00.
- Que tal, então, fazermos uma ultra-sonografia no valor de US$ 200,00 dólares e algumas mini-intervenções cirúrgicas? Podemos remover um cisto do ovário, por exemplo. Uma ovariectomia dá mais US$ 500,00 dólares. Ou extirpar um útero. Uma histerectomia vaginal custa uns US$ 800,00 dólares.
- Já chegamos a US$ 3.000,00 dólares - disse o vereador mais animado esfregando a barriga, que efetivamente exibia uma protuberância.
- Façamos uma curetagem e uma citologia oncótica, tratamos de uma vulvite e teremos mais US$ 900,00 dólares.
- Oba! Fica faltando apenas US$ 100,00 dólares para completar a soma total.
- Deixe-me consultar a tabela. Cem dólares... cem dólares...ah, aqui está! Ciinquenta dólares é o preço de um banho tcheco no monte pubiano. Dois banhos - tcheco, tcheco - e temos os US$ 100,00 dólares que faltavam. Acrescentamos mais US$ 211,47 dólares de comissão para a Gina, temos um total de US $ 4.211,47 dólares.
O médico multiplicou esta quantia em dólares americanos por CR$ 290,80 cruzeiros e assinou um recibo no valor de CR$ 1.224.697,22 (Hum milhão, duzentos e vinte quatro mil, seiscentos e noventa e sete cruzeiros e vinte e dois centavos). Com este recibo, o vereador deu entrada no dia 2 de julho  de 1991 com um requerimento ao presidente da Câmara Municipal Cesar Bonfim, pedindo o ressarcimento médico.
Quem quiser pode conferir. O processo, de número 813/91, teve tramitação rápida. A nota de empenho de número 91 1772 foi autenticada pelo Diretor-Geral Fernando Gabriel Demasi dois dias depois, 4 de julho de 1991 e no mesmo dia foi assinada a autorização pelo presidente da Câmara César Roberto Bonfim.
Ainda neste mesmo dia o vereador embolsou indevidamente, de uma só tacada, o equivalente na época a US$ 4,211,47 dólares, o que atualizado pelo dólar comercial de hoje atinge a soma de US$ 2.500.000,00 (dois milhões e meio de cruzeiros).
O leitor que teve paciência de ler até aqui deve estar pensando:
- Puxa! Esse cara tem uma imaginação!!!
Eu? Imaginação? Pobre de mim, leitor. Quando estourou o escândalo dos ressarcimentos médicos escrevi um Taquiprati intitulado "Epidemia na Câmara Municipal" (26/11/91), onde sem documentos comprobatórios imaginei que o ressarcimento do referido vereador era por causa de uma reles dor de dente. Mas a realidade é muito mais rica do que a nossa fantasia, como provam os documentos enviados por um leitor que é funcionário da Câmara Municipal.
Quais são esses documentos? Os que foram aqui citados. Uma nota de empenho assinada por Fernando Demasi, um requerimento do citado vereador, recibos de um médico ginecologista e do SUM - Serviços de Ultra-Sonografia de Manaus, e da Clínica Santa Júlia Ltda. com despesas de internação hospitalar e uma autorização de ressarcimento assinada por Cezar Bonfim.
Ora, a Resolução 20 de 30/10/1984, absolutamente imoral, prevê os ressarcimentos médicos apenas para vereadores de ambos os sexos, mas exclusivamente para vereadores. Pode um vereador do sexo masculino ser tratado por um ginecologista? Passei o carnaval lendo "Lições de Clínica Ginecológica" do doutor N.M.Bastos (São Paulo, 1944) e lá ele afirma que é impossivel, porque a ginecologia trata apenas do sistema reprodutor feminino.
- Vai ver as coisas podem ter mudado de 1944 para cá - eu pensei. O mundo está mesmo tão doido. Aí, um médico amigo meu, o doutor Jerry Souto Power me emprestou uma edição atualizada de Baltimore, de 1993, do livro  "Advances in Obstetrics and Gynecology" de vários autores americanos que juram de pés juntos: ginecologia é só para mulher.
- Portanto, é elementar. Se em algum momento acreditei que ele podia ter ficado grávido, é porque prefiro essa hipótese a ter de admitir que ele mutretou, Mas parece que mutretou mesmo. Além de imoral, o ressarcimento é ilegal.
O funcionário que me enviou os documentos pede que não revele o seu nome para evitar perseguições. Podemos inventar-lhe um pseudônimo. Percorro o listão dos aprovados no vestibular em Manaus e encontro um nome que é a cara do funcionário municipal: Jelder. Continuo a leitura em busca de um sobrenome: Picanço.
O Jelder Picanço, pois, afirma que toda essa papelada se encontra em poder da CPI que está apurando o escândalo dos ressarcimentos. Ele acredita, no entanto, que tudo vai terminar em pizza ou, no caso do Amazonas, em tacacá ou tartarugada.
Olha Jelder Picanço, isso depende de nós, de ti, de jornalistas e de pessoas honestas, de políticos íntegros e corajosos capazes de assumir a denúncia. Vamos pressionar. É  o momento de verificarmos se tem gente honesta nessa CPI. Socoooooorro, padre Humberto Guidotti!
- Se for o caso, posso mandar mais documentos sobre outros vereadores - escreve o Jelder.
É o caso. Manda sim, Jelder. Manda que a gente senta o sarrafo.

Ah, já ia me esquecendo. Qual é o nome do vereador que consultou um ginecologista? Robério dos Santos Pereira Braga (ex-PFL, vixe, vixe, atual PRP, vixe, vixe). E de seu ginecologista? Arlindo Frota Junior, que é um profissional sério. De qualquer forma, muita coisa devem ter para revelar à CPI.

P.S. - DIANTE DA IMPUNIDADE, A SANGRIA CONTINUOU POR MAIS DE DUAS DÉCADAS. MAIS DE 20 ANOS DEPOIS DA PUBLICAÇÃO DESSA CRONICA, APARECE A NOTICIA ABAIXO:

Ministério Público entra com ação civil pública contra Robério Braga por uso de dinheiro público “para fins particulares e lucrativo”

Assuntos: Na Mira Do RadarRobério Braga

24 DE NOVEMBRO DE 2015

A promotora de Justiça Neyde Regina Demosthenes Trindade, da 13ª Promotoria de Justiça Especializada de Proteção ao Patrimônio Público, ingressou com Ação Civil Pública na Vara de Fazenda Pública do Estado, contra o secretário estadual de Cultura Robério Braga – aquele que se perpetua no Governo desde os tempos de Amazonino Mendes – e a empresa Fábrica de eventos sob acusação de que teriam causado danos ao erário público cometendo “ilegalidade no repasse de verbas públicas à sociedade empresária para fins particulares e exclusivamente lucrativo”.

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4 Comentário(s)

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Caio Giulliano Paião (via FB) comentou:
23/12/2014
Que linda história. Esse milagre é tão "Glorioso" quanto a gravidez de Maria. Rendia uma ópera para o Festival ou uma cantata de natal.
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Sarah Araujo (via FB) comentou:
23/12/2014
Ele estava grávido no ano que nasci, 1991
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Joana Telu Sampaio D'Antona (via FB) comentou:
23/12/2014
Euzinha aqui, rindo graciosamente da conversa. Esssa crônica me lembrou um comentário do Onofre, ao dizer q sente saudade dos escandalos do governo Itamar Franco, lógico que ele se referia "a fotografia do casal" onde aparece o *equipamento similar*, rss.
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juarez silva (manaus) comentou:
23/12/2014
Kkkkkkk, muito bom, dava um bom capítulo para Saramandaia o O Bem-amado... ;)
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