De Freiburg, Alemanha (via fax) - Onde estão os nossos doidos, que transitavam livremente pelas ruas de Manaus? Cadê a Carmen, a mais lúcida e atrevida de todos, com o seu eterno saco de arroz, botando a molecada pra correr? Cadê o Bombalá, o mais alegre, desfilando, orgulhoso, nas paradas escolares de Sete de Setembro, à frente do Colégio Estadual do Amazonas? O que aconteceu com o Bonitão, o matemático, sempre taciturno e solitário, que escrevia complicadas equações com um canivete, riscando os benjaminzeiros da Rua Xavier de Mendonça? O que nós fizemos com o Professor - o Guilherme Doido - para ele despedir-se da vida, assim, enforcando-se numa árvore no Plano Inclinado? Quantos dos nossos loucos anônimos apodreceram no hospício de Flores?
Todos eles estavam presentes durante o Colóquio Internacional, aberto nesta terça-feira, pelo cônsul-geral de Berlim, Sérgio Rouanet, no auditório da Universidade de Freibourg, na Alemanha, para onde vim convidado para falar sobre a história dos índios da Amazônia. E isso porque entre outros temas como literatura e história, o colóquio está discutindo também as políticas públicas de saúde, incluindo a saúde mental. Era inevitável que as sombras dos loucos de Manaus emergissem aqui.
Um palestrante informa que a Organização Mundial de Saúde (OMS), sediada em Genebra, criou recentemente um grupo de trabalho internacional para avaliar e propor mudanças na legislação psiquiátrica, com recomendações para o mundo inteiro. A Divisão de Saúde Mental da OMS pinta um quadro trágico sobre a forma, cruel e burra, como a loucura vem sendo tradicionalmente tratada na maioria dos países.
Como regra geral, o louco é excluído da sociedade, segregado e coagido a permanecer enclausurado no manicômio, onde é submetido a diferentes formas de violência institucional. Resultado: ele se distancia ainda mais da realidade, o que é interpretado pela instituição como agravamento dos sintomas da loucura.
Desta forma, o hospital psiquiátrico, em vez de curar a doença, passou a ser uma fábrica de loucos, da mesma maneira que a penitenciária, longe de recuperar os marginais, tornou-se uma escola do crime.
No Brasil existe um projeto já aprovado na Câmara, com votação no Senado prevista para esta semana, que pretende acabar de uma vez por todas com o manicômio. Seu autor é o deputado Paulo Delgado, do PT de Minas Gerais.
O projeto proíbe a construção de novos hospícios públicos, não permitindo também o financiamento, pelo Governo, de novos leitos, naqueles hospitais psiquiátricos já existentes.
A alternativa apresentada é a criação de centros de convivência e de atenção, lares protegidos, hospitais-dia, hospitais-noite e unidades psiquiátricas em hospital geral, para dar ao louco um tratamento digno e eficaz, o que já vem sendo realizado experimentalmente com relativo sucesso.
Todas estas alternativas obedecem a um princípio comum: o tratamento deve ser feito com o apoio dos familiares e da comunidade, mantendo o doente integrado à sociedade. Desta forma, assumindo a responsabilidade coletiva e solidária, talvez comecem a ser derrubados os preconceitos sobre a loucura, alguns deles gerados pelos próprios currículos ultrapassados dos cursos de Medicina.
Essa ideia central do projeto de Paulo Delgado não é nova. Vem sendo defendida há mais de vinte anos, em Manaus, pelos médicos Manuel Dias Galvão e Rogério Casado. A novidade é que agora vai virar lei. Vai ser legal. Carmen Doida, que muitas vezes enganou o seu Urbano, diretor do hospício de Flores, fugindo do manicômio, certamente comemoraria gritando: "Vai roubar galinha, ladrão!".
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