.Na Amazônia, nos últimos 400 anos, um conjunto de narrativas orais vem circulando de boca em boca, em Nheengatu – a Lingua Geral Amazônica – e às vezes em versões bilingües com o português, com maior ou menor vigor, dependendo do momento histórico ou da área geográfica. Parte dessa literatura oral foi coletada por alguns estudiosos e recebeu uma forma escrita. Essas narrativas orais transformadas pela escrita é que estão sendo aqui denominadas de literatura tapuia.
No século XIX, justamente no momento em que o romantismo nativista começava a dar sinais visíveis de esgotamento, podemos destacar pelo menos seis estudiosos que se preocuparam em coletar e transcrever manifestações de literatura oral na Amazônia:
José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), nascido em Diamantina (MG), numa fazenda de gado de seu avô, foi embalado em sua infância – como ele lembra muito bem - por “lendas tocantes e poéticas, metade cristãs, metade indígenas. Depois de procurar “as cores do país” em arquivos e bibliotecas, foi buscá-las nos grotões do Brasil profundo, realizando pelo menos dez grandes viagens, quando aprendeu a Língua Geral. Sua obra mais conhecida - O Selvagem - foi editada em várias línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Reúne um conjunto denominado pelo autor de lendas tupis coletadas durante suas viagens.
Charles Frederick Hartt (1840-1878), geólogo e geógrafo canadense, aluno do naturalista Louis Agassiz, com quem veio ao Brasil pela primeira vez (1865) na missão que veio estudar a fauna ictiológica da bacia amazônica. Voltou várias vezes ao país, quando foi nomeado chefe da Comissão Geológica do Império (1875). Aprendeu o Nheengatu e, em suas viagens, coletou os mitos amazônicos sobre a tartaruga. Morreu no Rio de Janeiro.
João Barbosa Rodrigues (1842-1909), filho de um comerciante português de Minas Gerais. Estudou no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, de onde foi também professor. Viajou para Manaus em 1872, onde residiu e dirigiu o Museu Botânico. Aprendeu o Nheeengatu e coletou narrativas orais, contos e cantigas nessa língua, publicadas no Poranduba Amazonense.
Brandão de Amorim (1865-1926) nasceu em Manaus, filho de um rico comerciante português radicado no Amazonas, criador da companhia que fez a navegação direta de Liverpool a Manaus. Dono de seringal, revisou os relatos orais coletados no alto Rio Negro por Maximiano José Roberto.
Ermano Stradelli (1852-1926). Nasceu na Itália, de família nobre. Veio para o Brasil em meados de 1879. No ano seguinte, viajou pelo rio Purus e depois pelo Rio Negro e muitos outros rios da região. Trabalhou como auxiliar de Barbosa Rodrigues. Existe uma biografia dele, feita por Câmara Cascudo. Depois de sua morte, o IHGB publicou o dicionário de sua autoria Nheengatu-Português e Português-Nheengatu, com uma versão do mito do Jurupari.
Maximiano José Roberto era índio descendente, pelo lado paterno, dos Manaú e, pelo materno, dos Tariana do rio Uaupés. Em 1926 a família de Brandão Amorim publicou na revista do IHGB, sob o nome único de Brandão Amorim, 35 narrativas em edição bilíngue, as quais, segundo Stradelli, haviam sido “recolhidas amoravelmente pelo meu antigo companheiro de jornada na minha última viagem ao Uaupés, Max J. Roberto”.
A importância desses autores na história da literatura brasileira ainda não foi devidamente avaliada, apesar de existirem evidências sobre o papel desempenhado por eles como inspiradores do movimento modernista. Mário de Andrade, com Macunaíma, e Raul Bopp, com Cobra Norato, talvez tenham sido os escritores que mais dívidas contraíram com eles. Bopp dá um depoimento interessante sobre a descoberta que fez dos mitos amazônicos publicados por Brandão Amorim:
“Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio”.
A literatura oral registrada por esses estudiosos revela, de um lado, a permanência vigorosa de narrativas indígenas em Língua Geral, que continuavam circulando oralmente no século XIX em algumas áreas como as bacias dos rios Negro e Solimões.
Dos seis coletores de narrativas indígenas, merece destaque aqui Stradelli que percorreu florestas, rios e igarapés da Amazônia, conviveu com índios e aprendeu a falar o nheengatu, ouvindo as histórias que narravam. Coletou e registrou mitos, apaixonando-se pelas manifestações literárias indígenas.
Cabe ressaltar aqui os procedimentos usados pelo conde Stradelli para conhecer a Amazônia. Quando, em 1880, ele quis saber como se organizava a produção da borracha, foi conviver com os seringueiros do rio Purus onde naufragou, e do Juruá, onde contraiu febre palúdica. No ano seguinte, começou a aprender o nheengatu. Explorou o rio Uaupés, viveu com os índios Tukano e Tariana e observou e registrou suas tradições.
Décadas antes de Malinowski sistematizar suas reflexões sobre a observação participante, Stradelli intuiu que o pesquisador decidido a conhecer uma sociedade que lhe é estranha, devia partir do interior dela, impregnando-se da mentalidade de seus integrantes e esforçando-se para pensar na língua deles.
Stradelli tinha uma forma própria de se relacionar com os índios e de coletar material de pesquisa. Entrava nas aldeias com sua farmácia portátil, equipamentos topográficos, caixas para recolher material ornitológico e entomológico, máquinas fotográficas, microscópios e outros aparelhos que, inicialmente, assustavam os índios. Ele, então, levava cada um deles para ver os instrumentos e verificar como funcionavam. O resultado desse contato intenso e sistemático com os índios foi a publicação de um sem-número de textos dispersos por jornais e revistas especializadas da Itália e do Brasil. De todas essas publicações, três delas merecem destaque: a Leggenda dell’Jurupary, as Leggende del Taria, recolhidas por Stradelli no rio Uaupés e os Vocabulários em nheengatu.
O mito de Jurupari é, geograficamente - segundo Cascudo - o mais disseminado de todos os mitos. Nos séculos XVI e XVII, Jurupari foi representado pelos cronistas como um diabo ameríndio, imagem dominante nos séculos seguintes. Stradelli decidiu conferir e estudou o mito, ouvindo os índios e participando dos rituais e cultos realizados em afluentes do rio Negro. Descobriu que a imagem satanizada era uma construção da catequese católica do século XVI e que Jurupari é, na verdade, um deus legislador e reformador, puro, sóbrio, discursador, exigente no ritual sagrado, criador dos usos, leis e preceitos conservados e transmitidos pela tradição, enfim, o tipo do herói lendário e do legislador divinizado, que está presente em todas as religiões e mitos de origem. Desta forma, na época em que Jurupari é quase unanimemente considerado como um demônio, Stradelli – o primeiro que publicou sua ‘saga’ - contribuiu para retirar sua feição satânica, colocando-o em lugar de respeito.
Câmara Cascudo acredita que isso só foi possível porque quem recolheu o mito traduzido e organizado por Stradelli foi um índio - Maximiniano José Roberto - filho de pai Manau e mãe Tariana, que falava o nheengatu e várias línguas indígenas e passou longo tempo viajando entre as malocas, “registrando, com fidelidade absoluta, as odysséas que nenhum Homero rythmará”. Seu papel não foi de simples informante nativo, mas de compilador e redator, autor de fato do texto em nheengatu, conforme reconhece o próprio Stradelli. Sem Maximiniano, não existiria a versão italiana. Por essa razão, Cascudo dedica a biografia de Stradelli a Maximiniano José Roberto, “príncipe amazônico, recolhedor apaixonado de centenas de lendas, maravilhosas e seguras como documentação etnológica” .
Quando Stradelli, que possuía um coração Tariana, esteve com esses índios no rio Uaupes e recolheu os seus mitos, ao lado dele estava Max J. Roberto, seu companheiro de viagens, ajudando-o a compreender Buopé – o herói dos Taria ou Tariana, chefe imbatível, generoso com os vencidos - de quem ele, Max, era descendente direto. Segundo Cascudo, as lendas dos Tárias são denunciadoras de uma tradição guerreira, militar, social e política, acima de outra qualquer, com um enorme valor etnohistórico e com muitas pistas sobre a ocupação, no passado, do rio Uaupés e seus afluentes. Stradelli deu forma escrita a um conjunto de etnosaberes que circulavam nas narrativas orais indígenas, recuperando um importante patrimônio cultural intangível dos povos do Rio Negro e, com ele, parte da memória regional.
P.S. – Esse texto, reformulado, fez parte da tese de doutorado defendida em 2003 – Rio Babel, a história das línguas na Amazônia e foi apresentado no XXX Congresso Internacional de Americanística, em Perugia (Itália), 7-11 de maio de 2008, organizado pelo Centro Studi Americanistici “Circolo Amerindiano”.