CRÔNICAS

Goethe e Limongi, o Grosse Hintern

Em: 07 de Janeiro de 1997 Visualizações: 11046
Goethe e Limongi, o Grosse Hintern

É um primor. Já foi publicada na seção de cartas do Jornal do Norte, mas faço questão de reproduzi-la integralmente no espaço desta coluna. Trata-se de uma carta de Vicente Limongi Neto, ofendido porque divulguei que ele, na noite de natal, engraxou os sapatos do senador Gilberto Miranda (PFL - viche! viche!), de quem é assessor. 

Limongi não entendeu nada. O engraxate, na realidade, não é ele, pessoa física, privada. Quem lustra botas é sua figura política, pública, criticável porque mantida pelo contribuinte. Engraxate ele é, no sentido figurado de subserviente ao poder. Ser Gilberto Miranda já é algo deplorável, mais ainda ser o ghost-writer dele. Acho que, modéstia à parte, fui até generoso. Reconheci a competência do assessor, informando que os sapatos do senador estavam brilhando. Limongi nada desmente, quando escreve a seguinte "pérola", dirigida ao redator do JN, Alfredo Lopes.

Sr. Redator, 

Goethe dizia que não há nada mais terrível do que uma ignorância ativa. No caso do sr. Ribamar Bessa que assina croniquetas no Jornal do Norte, a ignorância não é inocência, é má-fé, falta de caráter, frustração, recalque, molecagem, pilantragem, vigarice e sordidez.

Nesta linha, repudio insulto do sr. Ribamar Bessa, em recente papelucho no JN, chamado de "Ceia de Natal". Não sou da laia de canalhas do sr. Bessa. Exijo respeito. Basta o calhorda do sr. Ribamar Bessa olhar-se no espelho para constatar que é um verme, um cretino, um palhaço destalentado. Sem moral, profissional ou pessoal, para dirigir-se a mim com chacotas. Cresça e apareça, venal. (ass) Vicente Limongi Netto.

O interlocutor do Limongi é o "sr. redator", a quem ele se dirige. Alfredo Lopes é, pois, o "tu" gramatical do Limongi, a pessoa com quem ele fala. A terceira pessoa, de quem se fala - o "ele" - é o Bessa, ou seja, o papaizinho aqui. Ora, na última frase, sem avisar, Limongi troca as bolas, chama seu "tu" de venal e confunde o leitor. Das duas, uma: ou Limongi é gramaticalmente correto e aí está ofendendo "tu" (Alfredo) de forma gratuita, ou então, pretendendo atacar "ele" (Bessa), se equivocou de pessoa gramatical. Como Limongi nada faz gratuitamente, a segunda hipótese é a mais provável. Neste caso, cometeu aquilo que a universidade corrige na redação de vestibulandos: a incoerência discursiva.

Um cochilo desse compromete um jornalista que vive da pena e não da picareta ou da flanela. Mas o 'primor' fica por conta da primeira frase, quando Goethe é citado inexatamente. O grande poeta e romancista alemão nunca poderia ter dito a referida frase, porque não falava português. O que ele disse, em alemão, tinha outro sentido, de acordo com as pesquisas do especialista Überseeisch Hinlänglich.

Na década de 1820, com mais de setenta anos, Goethe conversava diariamente sobre os mais variados assuntos com o seu secretário particular J. Peter Eckermann, que anotava tudo. Depois da morte do poeta, Eckermann publicou em 1837 as suas "Conversações com Goethe" (Gespräche mit Goethe), contando os papos que tiveram. Foi daí, deste livro, que Limongi retirou a citação? Pode ser. Mas ele descuidou-se de um detalhe: a enorme variedade dialetal - sincrônica e diacrônica - da língua alemã.

Goethe escreveu, é verdade, em alemão moderno: o Neuhochdeutsch. De vez em quando, no entanto, para obter certos efeitos literários, usava expressões próprias do Mittelhochdeutsch, o alemão medieval, falado no século XII. Na frase citada, o que Goethe diz é que não há nada mais schrecklich - essa foi a palavra que ele usou - do que uma ignorância ativa.

O colega Limongi, que deve ter lido a edição alemã de 1837, traduziu por conta própria o termo schrecklich como terrível. Essa seria, efetivamente, a tradução mais correta, se a referência fosse o alemão moderno. Acontece que Goethe recorre aqui ao alemão medieval. Talvez pela pressa, Limongi cometeu esse deslize - muito comum, é verdade - inclusive entre alguns tradutores franceses e ingleses menos avisados.

Quem traduz, não pode esquecer que as palavras têm uma história. Mudam de significado. Em português, por exemplo, assombrado era empregado no século XIV para designar o cavalo que se espantava com a aparição de uma sombra. Depois, passou a qualificar pessoas aterrorizadas com fantasmas e almas penadas. Hoje, pode significar "maravilhado", "surpreso".

Goethe jogava muito com as palavras. Afinal, era sua profissão. Na segunda parte do "Fausto" tem uma cena antológica em que Mefistófeles, o diabo, mostra seu rabo, exibindo uma "grosse-hintern", cuja tradução mais apropriada é "bunda grande". Já em "Os sofrimentos do jovem Werther", Goethe usa o mesmo termo, antes do suicídio do herói, insinuando que ele era um "grosse-hintern". Ora, todo mundo sabe que Werther, como o Fonseca, tinha perna fina e bunda seca. Portanto, é evidente que Goethe não estava se referindo, como no primeiro caso, à anatomia do personagem, mas a seu caráter. O romântico Werther era um "bundão".

Fenômeno similar ocorreu com a palavra schrecklich, que no alemão medieval não quer dizer "lixo escroto". Ao contrário. Significa admirável, extraordinário, formidável, fantástico, enfim, pai-dégua. Tanto é verdade, que mesmo hoje, pelo menos dois dialetos - um falado na Pomerânia e o outro no alto Danúbio - conservam schrecklich como sinônimo de un-gewöhnlich, ou seja, porreta, como Limongi, que é do ramo, sabe muito bem.

Aquilo que Goeth admira, inspira terror ao descuidado tradutor, que desta forma escorrega na maionese. O que o escritor alemão, na verdade, quis dizer foi justamente o contrário, isto é, que não há nada mais admirável do que uma ignorância ativa. Faz sentido. Ignorante ativo é aquele que, consciente de suas limitações, está sempre correndo em busca do saber, querendo superar-se. Já o passivo - coitado! - nem sequer sabe que é burro.

O escritor alemão define ignorância como falta de saber. Limongi entende como truculência. Daí a fileira de adjetivos com os quais me brinda, inspirados na forma de falar dos frequentadores do saudoso "La Hoje", que a imprensa local chamava de lupanar. Nesse sentido, a carta ao JN apela para a ignorância. Começa com literatura alemã, apenas para dar-lhe um verniz erudito. Qual a relação de Goethe com adjetivos chulos que perderam, inclusive, seu poder ofensivo? Limongi não consegue articular uma coisa com outra.

É isso. Se Limongi tropeça com a escrita, como fica evidente em sua carta, podemos deduzir que gagueja com a leitura. Quem sequer digeriu "A Ceia de Natal" desse caboco aqui, como poderá mastigar "Gerspräche mit Goethe"? Será que ele leu mesmo o Goethe? Ou a frase, terceirizada, foi copiada de alguma revista no consultório do dentista? Ontem, Limongi arrotava caviar com Collor. Hoje, finge intimidade com Goethe, cuja obra não leu.

PS: Leitor (a), o que escrevi aqui pode ser coerente, mas é puro exercício de fantasia. Entendo tanto de alemão quanto o "Alferes" Ronaldo Tiradentes de química inorgânica, ou seja: bulhufas. Consultei dicionários e inventei todo esse caqueado, só para questionar esta falsa erudição de Almanaque do Capivarol de quem cita Goethe sem nunca haver lido NADA, nem sequer o Fausto em quadrinhos.  Überseeisch Hinglanglish não existe. É pseudônimo. Significa arriba-mar e à beça".

Ver também:

A CEIA DE NATAL; JUNTANDO AS PANELAS - http://www.taquiprati.com.br/cronica/371-a-ceia-de-natal

Mirandinha vai às compras - http://www.taquiprati.com.br/cronica/497-mirandinha-vai-as-compras

De novo, São Pedro -  http://www.taquiprati.com.br/cronica/494-de-novo-sao-pedro

Carissimo Limongi -  http://www.taquiprati.com.br/cronica/495-carissimo-limongi

 

 

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3 Comentário(s)

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Markim Garcia (via FB) comentou:
08/03/2016
o encontro entre a escolástica e o tropicalismo.
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Erick Felinto (via FB) comentou:
08/03/2016
Só uma nota aqui: schrecklich tem como significado normal em alemão (e não apenas no "alemão medieval") "espantoso", "extraordinário", "aterrador". Veja-se o célebre verso de Rilke: "ein jeder Engel ist schrecklich" (todo anjo é espantoso)...
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Giane Lessa comentou:
20/07/2014
Já rolei de tanto rir.. Sr. José Bessa.. obrigada.. não conhecia essa croniqueta
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