Na madrugada de um domingo, em julho de 1967, uma tropa de 1.500 policiais, apoiada por um helicóptero, cercou espalhafatosamente a Casa do Estudante do Brasil (CEB), no centro do Rio de Janeiro e invadiu o prédio, atirando bombas de gás lacrimogêneo. Os moradores, cerca de 80 estudantes desarmados, depois de levarem muita porrada, foram desalojados e presos no quartel da Frei Caneca. Entre eles, dois amazonenses: Antônio Sanches, estudante de medicina (hoje, professor da Universidade do Amazonas) e este locutor que vos fala.
Nós dois morávamos no mesmo quarto. Cada vez que abríamos o guarda roupa, encontrávamos lá dentro, escondida, uma mulher nua. Protegida por uma cortina transparente, ela chamava um de nós, dobrando o dedo indicador em forma de anzol e fazendo um biquinho com seus lábios carnudos:"Sanches, queridinho, vem cá", era o que ela sempre dizia, na frase escrita em balão desenhado sobre sua cabeça. O poster da Playboy, já amarelecido, havia sido expropriado de uma banca de jornal. De tamanho natural, estava colado na parte interna da porta do guarda-roupa, que foi arrebentada pelo coice de um policial, durante a invasão. A patética imagem da nossa musa de papelão, estatelada no chão, coberta de cacos de espelho, deixou também em estilhaços os nossos sonhos solitários.
A polícia interrogou, fichou, fotografou e tirou a impressão digital de todo mundo. Dois dias depois nos soltou no meio da rua, proibindo-nos de retornar à Casa do Estudante, cujas portas permaneceram lacradas. A expulsão era definitiva. Não voltamos lá, nem para pegar nossos bregueços. Não pudemos sequer dar uma sepultura digna à mulher que tanto tempo manteve ocupada, entre outras coisas, a nossa imaginação.
Da prisão, levei comigo alguns gloriosos hematomas diretamente para a sede da ABI - Associação Brasileira de Imprensa, onde estava se realizando um encontro, com a presença de donos de jornais, editores e chefes de redação. O tema era imprensa e democracia. Na hora do debate, pedi a palavra. O discurso inflamado contou tudo tim-tim por tim-tim, só omitindo, é claro, a viuvez do Sanches. No final, o diretor da Asapress veio conversar. Explicou que a agência entrava numa nova fase e precisava de jornalistas jovens e aguerridos. Ofereceu-me o posto de repórter e um salário de 180 mil cruzeiros, uma fortuna para um estudante desempregado.
- Se quiser, pode começar hoje - ele disse. Eu queria. Como eu queria!
Localizada numa sobreloja da rua Almirante Barroso, a Asapress era uma agência brasileira de notícias que havia acabado de ser arrendada pela CNBB - a Conferência dos Bispos. Era muito diferente de suas congêneres americanas - Associated Press e UPI. Seus equipamentos eram obsoletos: velhas máquinas de escrever, um telex asmático que resfolegava e gemia, um mimeógrafo alcoolizado e um serviço de malotes tão ágil quanto os pombos-correios que em 1840, na França, transportavam notícias para a Agência Havas. Ah! Tinha também um sofá esburacado na sala de redação, que foi o lar do novo repórter, até o pagamento do seu primeiro salário.
Mesmo com tanta precariedade, a Asapress conseguia abastecer com informações sobretudo os pequenos jornais do interior do país. Naqueles dias, por exemplo, a notícia de maior impacto nacional era uma denúncia do ex-governador do Amazonas, Arthur Reis, contra a construção de uma represa em Óbidos, que transformaria o rio Amazonas num imenso lago, inundando florestas e cidades. O projeto, formulado pelo Instituto Hudson, dos Estados Unidos, não tinha qualquer possibilidade de sair do papel. Era o delírio de um gringo sinistro de 140 quilos, o futurólogo chamado Hermann Kahn.[
Os militares brasileiros sabiam disso. No entanto, a gritaria nacionalisteira lhes convinha, porque desviava a atenção da opinião pública de outros problemas como, por exemplo, a falência de muitas empresas nacionais, causada pelas facilidades concedidas pela própria ditadura ao capital estrangeiro.
A Asapress, dando corda total ao discurso histérico verde-amarelo, distribuiu aos jornais a entrevista com Arthur Reis, o pronunciamento do Estado Maior das Forças Armadas e a notícia da criação da Comissão Nacional de Defesa e pelo Desenvolvimento da Amazônia (CNDDA). A pauta que encontrei, na minha estréia como repórter, mantinha a exploração do tema do grande lago, sugerindo entrevistas com diversas personalidades.
O escritor amazonense Walmiki Ramayana e Sousa de Chevalier era uma personalidade. Médico formado na Bahia, parece que nunca receitou uma aspirina. Mas havia publicado alguns livros, entre os quais Circo Sem Teto da Amazônia, um bom livro que lhe deu uma vaga cativa na Academia Amazonense de Letras.
Barroco, com aspirações gongóricas, em um de seus poemas, chamava a vitória-régia de "freira anêmica do convento verde da floresta". Viveu em Manaus muitos anos e depois mudou-se de mala e cuia para o Rio, onde trabalhava como aspone no Ministério do Interior. Vestido com meu único paletó abafa-banana, fui encontrar Ramayana no bar Amarelinho, na Cinelândia. O pai de Scarlett Moon e futuro sogro do cantor Lulu Santos, com 58 anos de idade, era um falastrão. Gostava de frases de efeito. Por elas, costuma-se sacrificar verdades.
Na entrevista, acusou russos e americanos de quererem anexar a Amazônia. Denunciou os padres redentoristas como agentes de uma extensa rede de espionagem. Não poupou nem o rio Amazonas, chamando-o de "impatriótico", porque suas águas cavam e engolem terras, que são carregadas pelo Gulf Stream para a Flórida, nos Estados Unidos:
- O rio e os padres americanos vão levar Manaus de bubuia para Miami .
O correspondente da Asapress no Amazonas, Domingos Sávio Ramos de Lima, distribuiu a entrevista em Manaus. O Jornal, da empresa Archer Pinto, sapecou a frase na manchete.
Quando dona Elisa ligou a Rádio Rio-Mar, como fazia todos os dias, para ouvir A Voz do Pastor, tomou um susto: o arcebispo de Manaus, D. João de Souza Lima, excomungava o filho dela e o Domingos - dois ex-seminaristas - como parceiros do capiroto. O bispo pediu nossa cabeça à CNBB. Quase fomos de bubuia para o olho da rua. Marinheiros de primeira viagem, não sabíamos que a opinião do entrevistado podia ser confundida com a do entrevistador.
Mais de trinta jornais, entre os quaiso Povo, de Fortaleza, A Província do Norte, de Belém, O Jornal do Comércio, de Recife, A Tarde, de Salvador e Zero Hora, de Porto Alegre publicaram a bubuia do Ramayana, bem como dezenas de outras matérias assinadas, durante os anos 1967-68.
Quando faliu, por incapacidade de se renovar tecnologicamente e de enfrentar o conturbado contexto político da época, a Asapress já havia formado muitos jornalistas, sobretudo ensinando-os a trabalhar em condições adversas. Entre eles, o estudante que dois anos antes, corrido da polícia, havia sido acolhido em sua redação.