.Numa partida de futebol, quando um jogador está muito ruim em campo, o estádio todo grita: “Pede pra fazer coco e sai”. Dessa forma, o torcedor demonstra sua insatisfação com o rendimento de um atleta, mas dá a ele a oportunidade de sair de fininho, por iniciativa própria, evitando o constrangimento de ser trocado por decisão do técnico no meio da partida. Aceitando a sugestão, ele pode fingir uma dor de barriga e sair numa boa, não porque é ‘perna-de-pau', mas porque tem de atender a uma urgente necessidade fisiológica. O seu lugar será ocupado por outro melhor que ele e – espera-se – sem diarreia.
O presidente Lula, com muita frequência, compara sua equipe ministerial a um time de futebol. A vantagem desse tipo de metáfora é que ela é didática, todo mundo entende. Por isso, a imagem futebolística pode esclarecer o leitor sobre uma das reivindicações dos índios que ocupam, de forma pacífica, a sede regional da FUNAI em Manaus, desde o dia 3 de janeiro. Eles estão gritando como os torcedores:
- Rangel, pede pra fazer coco e sai.
CAI FORA, RANGEL
Quem é Rangel? Benedito Rangel de Morais é o administrador regional da FUNAI. Contra ele pesam acusações graves feitas pelos índios, que merecem ser investigadas: patrocínio de farras e bebedeiras em Autazes; uso de carros oficiais para atividades particulares; falta de transparência nos gastos; negligência na apuração de casos de assédio sexual nas aldeias; não aproveitamento, como estagiários da FUNAI, de estudantes indígenas qualificados; favorecimento de cargos e de benefícios para parentes e amigos. Ou seja, as cagadas que está fazendo já começam a feder. Pode muito bem sair de fininho do seu cargo, que a torcida penhorada agradece.
É isso o que estão exigindo mais de 120 índios de 17 etnias, que ocupam a sede regional da FUNAI. Porém, eles não querem transformar Rangel em bode expiatório. Por isso, exigem também rápida demarcação das terras dos Mura e urgente definição de uma política indigenista para o país. A FUNAI de Brasília reuniu com os índios na semana passada e deu força para Rangel, que bateu o pé dizendo: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira”. Os índios procuraram, então, o Ministério da Justiça, que ficou de dar uma resposta ontem, segunda-feira. Até o momento em que escrevíamos essas linhas, o impasse continuava.
Chamar a Polícia Federal e ingressar na Justiça com uma ação de reintegração de posse, como fez a FUNAI, é confessar a falência múltipla do órgão, transformando a questão indígena num caso de Polícia. A ação de reintegração de posse que a FUNAI devia estar patrocinando era contra os ocupantes das terras indígenas e não contra os índios. Com eles, é preciso conversar, dialogar, negociar, e não bater, prender, censurar, como vem sendo feito há 500 anos.
Os líderes indígenas têm consciência que a troca de jogador pode até fazer com que o time jogue um pouquinho melhor, mas não será suficiente para mudar o placar. No banco de reserva da FUNAI existem funcionários competentes, comprometidos com a defesa dos direitos indígenas. Existem índios capazes de assumir a administração do órgão. No entanto, se acontecer apenas a troca de jogador, mas o esquema tático de jogo permanecer o mesmo, o time vai continuar perdendo. O que precisa mudar é a própria política indigenista.
GOL CONTRA
Essa é a reivindicação mais importante. Em carta ao ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, os índios pedem a mudança do esquema tático, que não permite que joguem no ataque nem na defesa, embolando o meio de campo. Por isso, ultimamente, só o outro time tem feito gols. A carta, assinada pelos dirigentes da COIAB, confirma: “Numerosas terras indígenas, da área de administração da Regional/Manaus, não foram até agora demarcadas, conforme determina a Constituição Federal” Queixam-se que Lula não cumpriu promessas de campanha, sobretudo aquela de criar “uma nova política indigenista com o objetivo de atender os reais e prioritários interesses do povo indígena”.
Essa é também a opinião do bispo de São Felix do Araguaia (MT), dom Pedro Casaldaliga, que em entrevista ao jornal espanhol “El País”, criticou duramente o tratamento dado aos índios e aos sem-terra:
“Desgraçadamente, a política indigenista, a política rural e a reforma agrária, neste governo Lula, se empurram com a barriga. Tenho que reconhecer que o governo está sendo neoliberal....Todo mundo teve paciência e esperança nos dois primeiros anos, agora muitos se cansaram”.
O Governo Lula despertou muitas esperanças nos índios, que acreditaram na possibilidade de, finalmente, viverem em paz, de terem suas terras demarcadas, suas culturas respeitadas, suas línguas reconhecidas e seus direitos garantidos. Este locutor que vos fala votou, sempre, no Lula, e continua torcendo para que seu governo dê certo. No entanto, entre Lula e os índios, ficamos com os índios. Já se passaram 747 dias de Governo e necas de pitibiribas. Dom Pedro tem razão. Os índios estão de saco cheio.
Felizmente, o movimento liderado pela COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira começa a se alastrar por outras regiões, onde conta com o apoio da APOINME – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas e Espírito Santo, e da recém criada Organização dos Povos Indígenas do Sul do Brasil. Se o Governo Lula não der rapidamente respostas concretas, vai ficar isolado, nessa questão, tanto dentro como fora do país.
A ONU, em sua 59ª Assembléia Geral, realizada recentemente, estabeleceu o 1° de janeiro de 2005 como o início do segundo decênio dos Povos Indígenas. Existe, portanto, uma preocupação da opinião pública internacional pelo destino das minorais étnicas. Lula começa a perder o prestígio lá fora e aqui dentro. Se transformar a questão indígena num caso de polícia, é possível, também, que nas próximas eleições, os eleitores gritem para ele aquilo que a torcida berra na arquibancada. Aí, o problema é que se ele sair, de fininho, quem é que vai entrar, de fininho?
P.S.1 – Os índios de Roraima esperam, há 747 dias, que o Governo Lula homologue a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em áreas contínuas. Esperamos que a quarta edição do Fórum Social Pan-Amazônico, que começa hoje em Manaus, marque claramente sua posição em relação aos direitos indígenas.
P.S.2 - Uma imperícia nossa no envio da crônica, impediu que ela saísse no domingo. Excepcionalmente, está sendo publicada hoje, terça-feira.