.
Era segunda-feira, 17 de fevereiro de 1997. As imagens coloridas do carnaval ainda explodiam na televisão. Num quarto do hospital Sarah, em Brasília, o antropólogo Darcy Ribeiro, gravemente enfermo, se despedia de uma amiga, que o havia visitado, de manhã cedinho, acompanhada de um filho menor.
- Fica mais um pouco - ele rogou.
- Não posso, tenho de levar meu filho à escola.
Darcy segurou a mão do menino:
- Não precisa. Sou professor. Fica aqui, que hoje quem vai dar aula pra ele sou eu.
Com voz fraca, mas audível, proferiu, arfando, o que seria sua última lição:
- Fui um fazedor de universidades. Criei museus, bibliotecas, escolas, centros culturais. Nada disso teria o menor valor, se eu não tivesse criado também o sambódromo. Sei que é perigoso dividir a cultura em erudita e popular, mas às vezes é útil, como agora. Quem tem um olho na universidade, na cultura erudita, tem de ter o outro olho no sambódromo, na cultura popular, porque a cultura é como um pássaro, tem duas asas. Uma não é pior nem melhor que a outra, acontece simplesmente que uma não funciona sem a outra. Se faltar uma delas, o homem não pode voar, não decola.
Naquele mesmo dia, algumas horas depois, Darcy se despedia da vida. Lembrei-me de sua última lição, porque recebi de Manaus a carta de Apolo Ruiz, que se diz doutor em lingüística, espinafrando uma das asas da cultura: “Ninguém me convence que carnaval é cultura. Cultura é algo que me faz pensar. Mas o carnaval, que é só peito e bunda de fora, não me faz pensar. Posso até sambar na avenida, se estiver afim, mas sei que não estou participando de um ato cultural Cultura é teatro, cinema, literatura, artes plásticas, música. Transformar carnaval em cultura é, com todo respeito, coisa de intelectual de esquerda ultrapassado”.
Viva o Zé Pereira
Parece que o leitor Apolo Ruiz está sendo demasiado intolerante, quando afirma, contundente, que ninguém o convence do contrário, ou seja, vai logo declarando, de saída, que não está aberto à discussão, não está disposto a se render diante de um bom argumento. De qualquer forma, vamos lá. Supunhetamos que o carnaval estivesse limitado só a “peito e bunda de fora”. E daí? As obras primas de Miguel Ângelo e Da Vinci também tem peito e bunda de fora, e nem por isso deixam de ser expressão cultural. Confesso que ambos – peito e bunda - me comovem, me fazem não apenas pensar, mas até sonhar.
Data vênia - como diria o saudoso jurista piauiense Orozimbo Nonato – você, meu caro Apolo Ruiz é, sinceramente, demasiado “peitófobo” e “bundófobo” para o meu gosto. De forma moralista, você diz que o carnaval não estimula o seu ato de pensar, mas quando escreve isso é porque já está pensando e foi provocado justamente pelo carnaval. Das duas, uma: ou você não acompanha as discussões sobre o que é cultura, ou não entende bulhufas de carnaval, ou talvez as duas coisas juntas. Diga lá: por acaso, você é doente do pé?
O carnaval é cultura, porque através dele o povo cria beleza, expressa alegria, manifesta sentimentos. No carnaval, estão representadas todas as formas de arte: dança, música, artes plásticas, pintura, escultura, poesia, literatura, teatro, drama. Até mesmo um poste se emociona com as músicas de compositores como Silas de Oliveira, Geraldo Babão e Carlos Cachaça. Um poste certamente se curva diante da elegância de dois magricelas – Delegado e Canelinha – deslizando como mestres-sala, ou com o rodopiar de duas porta-bandeiras como a Wilma Nascimento ou a Rita do Salgueiro.
Suspeito que o conceito de cultura do Apolo Ruiz é aquele mesmo do “senso comum”, que acha a nona sinfonia de Beethoven superior ao “bumbum-paticumbum-prugurundum”. É a visão do Robério Braga, vulgo Berinho, secretário estadual de cultura, para quem o compositor russo Rachmaninov é infinitamente melhor que o Zuzuca. Berinho finge conhecer e amar de paixão a Sinfonia nº 2, porque dessa forma cria a ilusão de que é um cidadão internacional, mas em casa, escondido, rebola ouvindo “Tengo-tengo, Santo Antônio e chalé, minha gente é muito samba no pé”?
Na ponta da sapatilha
Afinal, o que é cultura? Mais de duzentas definições foram reunidas, em 1967, pelo psicólogo social Abraham Moles. Apesar das divergências, todas elas destacam a dimensão simbólica da produção cultural, onde cabem Beethoven, Walter Alfaiate, Mozart, o saudoso Gargalhada, Margot Fontaine, as passistas Narcisa e Roxinha do Salgueiro, Rudolf Nureyev, Serrinha, o Lago dos Cisnes, a escola de samba, a ópera, o balé, a cuíca, o surdo, o tamborim, o oboé, o fagote, a caldeirada, a feijoada, o caviar e o jaraqui frito.
No entanto, aqueles que não discutem o tema, ou os que não usufruem dos bens culturais, acham que a cultura é algo inatingível, um produto superior, que não pode ser criado por pessoas comuns, pelos deserdados da terra, por um zé-mané qualquer. Confundem ‘cultura’ com ‘escolaridade’. Por isso, quem pensa assim, despreza o carnaval, o futebol, o jogo-de-bicho, e não os vê como produtos que são da elaboração humana, capazes de satisfazer necessidades não apenas materiais, mas intelectuais, psicológicas, afetivas.
Eunice Durhan, professora da USP, observou com muita propriedade que apesar de totalmente equivocada, essa definição tem o mérito de valorizar a cultura, de reconhecer o seu caráter refinado. No entanto, a antropologia fez um movimento para demonstrar que esse refinamento está presente não apenas no saber produzido por algumas pessoas, mas se estende a todas as produções humanas, a todos os comportamentos sociais. A cultura está num quadro de Picasso da mesma forma que na preparação de um bolo, na tecnologia de ponta que fabrica computador, como nas técnicas refinadas de artesanato indígena.
Meu caro Apolo Ruiz, você ficará assustado ao tomar conhecimento da quantidade de dissertações de mestrado e de teses de doutorado sobre o carnaval, que foram defendidas nos últimos anos, no Brasil e no exterior. Deixe a arrogância de lado, leia dois ou três trabalhos de antropologia sobre o carnaval (Roberto da Matta, Maria Clementina Pereira Cunha, Maria Laura Viveiros de Castro) e pegue no ganzê, pegue no ganzá. Vá pra avenida. Faça como a Ana Botafogo e sambe na ponta da sapatilha, porque Darcy Ribeiro tem razão: o pássaro da cultura não pode decolar com uma asa só.
P.S. 1 – O criador do site Taquiprati, José Amaro Jr., e sua esposa Janaina, acabam de colocar no mundo a Ana Beatriz, “uma fofura”, segundo o testemunho das fotos.
P-S. 2. O governo Lula completa hoje 767 dias, sem que tenha sido homologada a demarcação, em áreas contínuas, da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.