Era um dom. Alguns nascem com vocação para tocar piano ou violão. Outros, para ticar peixe, descascar tucumã ou dançar debaixo do boi. Tia Ernestina, conhecida na família como Dindinha, nasceu com um dom extraordinário. Ela era capaz de sentir o cheiro da morte. Sabia quando alguém estava prestes a subir o Boulevard Amazonas, de carona. Por isso, embora não fosse médica ou enfermeira, era chamada frequentemente para avaliar pacientes em estado terminal, que estavam mais pra lá do que pra cá. Ficou conhecida na rua, no bairro e na cidade como a despachante de doentes para o Além.
Às vezes, o moribundo, muito teimoso, se aferrava à vida, e conseguia sobreviver aos remédios mortais receitados pelos médicos. Nesses casos, a família chamava logo a Dindinha. Vestida toda de negro, parecendo o goleiro do Rio Negro Futebol Clube, ela chegava compungida, com a cara petrificada, como se fosse uma máscara, sem exteriorizar qualquer emoção. Demonstrava admirável profissionalismo. Entrava no quarto, cumprimentava secamente os presentes e, com as mãos postas, avaliava o enfermo com o rabo do olho. Depois ordenava aos curiosos, com uma autoridade conferida pela experiência, que se retirassem do recinto.
Dindinha ficava, então, sozinha, ela e o doente, face to face, acompanhada às vezes de um ou outro familiar mais íntimo. Sentava num banquinho na cabeceira da cama, aproximava os lábios do ouvido do moribundo e durante alguns minutos cochichava, bem baixinho, quase sussurrando, palavras inaudíveis. Seus lábios se moviam como se estivesse murmurando uma prece silenciosa: bzzzz, bzzzzzzz. O que é que ela falava? Ninguém sobreviveu até hoje para contar. Só sei que no final do ritual ela se benzia, fazia um sinal da cruz na testa do doente e dizia para a família:
- Pode chamar o Almir Neves!
A despachante da morte
Era pá, casca! A família podia encomendar a mortalha. Os argumentos convincentes da Dindinha, até hoje desconhecidos, tinham efeito mortífero quase imediato. Era impressionante! O doente batia a caçoleta em questão de duas ou três horas. Dessa forma, Dindinha, a despachante da morte, prestava um serviço à família, à sociedade e ao próprio finado, que ia dessa para a melhor com uma expressão feliz no rosto. Dindinha morreu subitamente, de um ataque fulminante do coração, talvez por suspeitar que não havia nenhuma alma caridosa que tivesse igual competência para despachá-la, em caso de agonia prolongada.
Lembrei da Dindinha quando li nos jornais as notícias sobre Terri Schiavo, a americana que se tornou a principal atração da mídia na última semana. Em fevereiro de 1990, seu coração parou de bater e seu cérebro ficou sem oxigênio por alguns minutos. Desde essa época, Terri está toda entubada, absolutamente inconsciente, se alimentando por uma sonda há quinze anos, vivendo como se fosse uma planta ou, de acordo com a descrição médica, num “persistente estado vegetativo”, sem poder se comunicar com ninguém.
O caso ficou internacionalmente conhecido, porque foi espetacularizado pela mídia, em imagens dramáticas mostradas pela televisão. O marido dela, Michael, procurou os tribunais da Flórida solicitando a retirada dos tubos para não prolongar artificialmente a agonia de sua esposa. Ganhou em várias instâncias, pois os juízes entenderam que todo mundo tem direito a uma boa morte, a morrer naturalmente. Os pais recorreram, argumentando que sua filha tinha direito à vida, mesmo artificial, mesmo vegetal. Perderam. Os tubos foram desligados há nove dias. Terri está agonizando.
O Bushinho
O debate, no entanto, deixou de ser assunto privado, particular, pertencente a uma família, para se tornar público, entrando nos tribunais, ganhando as ruas, ocupando as páginas dos jornais e as redes de televisão. Holywood já está com advogados comprando os direitos autorais para transformar a história em filme. Foi ai que entrou o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, denominado por Arnaldo Jabor como “Bushinho”, para diferenciá-lo do pai, o “Bushão”.
O Bushinho interrompeu suas férias no Texas e voltou a Washington para assinar uma lei de emergência aprovada pelo Congresso, que forçou a revisão do caso por uma corte federal. Deu declarações favoráveis a manter Terri Schiavo entubada, argumentando que apoiava a “cultura da vida” contra a “cultura da morte”. Quá quá-rá-quá-quá! Logo quem! O Bushinho, quando era governador do Texas, autorizou 152 execuções de condenados à pena de morte, incluindo alguns casos nos quais havia dúvidas sobre a culpa dos condenados. Comanda, agora, o bombardeio a civis, inocentes, crianças e velhos, no Iraque. Não tem moral pra falar.
Na realidade, estamos aqui diante de duas discussões. Uma, mais geral, envolvendo a distanásia, considerada como o prolongamento inútil do processo de morrer, e a ortotanásia, ou seja, deixar que a vida siga seu fluxo natural e que o paciente descanse em paz. Nesse debate todo mundo tem direito de meter sua colher.
A outra discussão é sobre o caso particular de Terri Schiavo, que só diz respeito a ela, quando era consciente, e a seus familiares. Essa decisão difícil e dramática compete somente à família e não ao presidente da República, ainda mais se tratando do Bushinho, que está à caça de votos.
Diante de tanta hipocrisia do Bushinho, confesso que fiquei orgulhoso, como amazonense, ao tomar conhecimento de que 27 militantes do PC do B no Amazonas fizeram uma manifestação no portão principal das instalações do Sindacta (Sistema Integrado de Defesa e Controle do Tráfego Aéreo), em Manaus, obrigando o secretário de Defesa americano, o carniceiro Donald Rumsfeld, a sair pelos portões dos fundos. A reação desses meninos do PC do B acendem a esperança na possibilidade de um mundo melhor.
Não devemos conceder nem ao Bushinho, nem ao Rumsfeld, nem a qualquer outro senhor da guerra, o direito de decidir sobre a vida ou a morte de pacientes em estado vegetativo permanente. Essa é uma decisão pessoal, que deve ser respeitada, seja lá qual for ela.
Da minha parte, vou logo declarando que se um dia eu ficar nesse estado – toc, toc – já estou previa e publicamente autorizando o meu sobrinho ‘Pão Molhado’ a retirar os tubos e a chamar alguém, como a Dindinha, que sussurre nos meus ouvidos: bzzzz, bzzzz. Pelo amor de Deus, ‘Pão Molhado’, chama a Dindinha ou, na falta dela, providencia uma injeção de cloreto de potássio. Ou só de cloreto, porque já estou acumulando potássio, comendo bastante banana.
P.S.1 – São 816 dias de Governo Lula, sem que tenha sido até hoje homologada a demarcação, em área contínua, da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.
P.S.2 – Esse locutor que vos fala se sente muito honrado com o convite feito pela deputada Vanessa Graziotin para participar, na próxima terça-feira, em Brasília, de uma audiência pública na Comissão da Amazônia, da Câmara de Deputados e para o lançamento do livro “Rio Babel – A história das línguas na Amazônia”, no salão nobre do Congresso Nacional..