Cidade de Manaus, capital do Amazonas. Última semana de março de 2006. O I Encontro de Professores Indígenas de Manaus está terminando. Numa sala do Centro de Formação Permanente do Magistério (CFPM), cerca de trinta índios de diferentes etnias fazem apresentações em suas línguas maternas. Tenho o privilégio de acompanhar pessoalmente o evento, convidado que fui para discutir as políticas de línguas direcionadas aos índios que vivem na cidade. -
O idioma mais usado é o nheengatu, falado atualmente pelos índios Baré. É nessa língua que Sixto da Silva reza a ave-maria, aprendida em 1973, quando estudou em Santa Isabel. É nela que Olavo Aleixo dá o seu recado, acompanhado por Jonas e seu violão. É também em nheengatú que Admilson Dias entoa: “ai, ai, aí, nós viemos do rio Cuieiras”, e Marlino Melgueiro fala do zumbido do pião (divanda, em nheengatu).
Uma cantiga infantil é apresentada em língua cambeba por Raimundo Cruz. A defesa da terra é cantada em língua ticuna por Tubias Pereira, ao violão, e Reginaldo Luciano, com maracás. Finalmente, José Nilto, o Mamureté, 40 anos, filho e neto de pajés, com voz ligeiramente trêmula, nos oferece, em língua apurinã, uma comovente canção de despedida.
Túmulo de línguas
Nheengatu, baré, apurinã, tikuna, cambeba, cocama, sateré-mawé, tukano, desana, deni... Esses índios de línguas e etnias tão diferentes e de regiões tão distantes têm em comum, hoje, o fato de que todos eles moram em Manaus. Milhares deles vivem na periferia da capital, enquanto na zona rural do município existem nove aldeias distribuídas pelos rios Negro, Cuieiras, Tupé e São Tomé. Mas nem sempre foi assim.
No século XVII, eram outras as línguas faladas aqui: Tarumã, Manáo, Passé, Baré, Caboquena e Baniwa. Havia pelo menos doze nações diferentes, segundo informa o padre Acuña, um jesuíta que navegou pela foz do rio Negro em 1640. Essas nações foram logo depois subjugadas pelos portugueses, que construíram o forte de São José, em 1669.
O forte, erguido em cima de um cemitério indígena, deu origem à atual cidade de Manaus. Os índios que aqui viviam foram espoliados de suas terras, humilhados e escravizados. Os que resistiram, foram exterminados, como os Manáo e os Passé. Outros fugiram para o alto rio Negro, como os Baniwa e os Baré, ou para a Guiana Inglesa, como os Tarumã.
Durante três séculos, alguns povos falaram suas línguas, pela última vez, na cidade de Manaus. O botânico Barbosa Rodrigues testemunhou isso em março de 1884. Ele viu o cadáver de um índio coberto com um lençol, num casebre à beira do igarapé, que depois foi aterrado para dar origem à avenida Eduardo Ribeiro. Perguntou à mulher:
- Você não chora a morte de seu marido?
Ela respondeu em nheengatu:
- Yané anga yma uana, tapuya ceté pira nhô ana (“Nós já não temos alma, os tapuia só têm corpo”).
Dessa forma, a cidade se tornou o túmulo de línguas indígenas. Seus falantes que aqui residiam eram corpos sem alma, não tinham mais com quem falar, nem sobre o que falar. Ficaram mudos e invisíveis. Os manauaras e manauenses, preocupados em copiar modelos de fora, decretaram que aqui não havia índios. A escola os excluía, com suas línguas e seus saberes. Eles foram ignorados por todos os prefeitos, de Eduardo Ribeiro a Carijó.
Índios na cidade
Quantos índios urbanos vivem hoje em Manaus? De quais etnias? Onde moram? Em que condições? Como se relacionam entre eles e com a cidade? Qual a sua situação lingüística? No ano 2.000, o Censo do IBGE contou cerca de 7.894. Um estudo feito para o CIMI aponta 8.500. O sociólogo José de Souza Martins calcula em 18 mil, enquanto para a COIAB eles são cerca de 20.000.
Segundo levantamento do CIMI, eles estão distribuídos em cerca de 35 bairros da cidade, quase todos na periferia. Os Cambeba residem, sobretudo, no bairro da Compensa II, os Sateré-Mawé na Redenção e no Conjunto Santos Dumont, os Apurinã no Jorge Teixeira, os Ticuna na Cidade de Deus, os Cocama em Grande Vitória, os Tukano, Desana, Baniwa e Tariano no bairro da Compensa, no Tancredo Neves e no Zumbi.
Quase todos eles trabalham na chamada economia informal, sub-empregados em atividades temporárias: artesanato, pequeno comércio, venda de dindin, biscates, empresas de limpeza e de segurança, e vários tipos de serviços prestados. As mulheres atuam em casas de família, como domésticas (82% sem carteira assinada, segundo estudos do CIMI).
Os dados do CIMI apontam um aumento da migração de índios para Manaus nos últimos vinte anos, não como opção, mas como a última possibilidade de sobrevivência e, paradoxalmente, como a única chance de continuarem sendo índios. Aqui, eles desenvolvem estratégias de vida, mantendo alguma forma de contato com a aldeia de origem, de onde vêm, inclusive, produtos alimentícios que são consumidos ou vendidos.
O som do pião
Esses índios agora têm uma política de educação escolar indígena, implantada recentemente pela SEMED, em forma institucional e permanente, com o objetivo de fazer da capital um jardim, onde essas línguas possam florescer e se reproduzir. Manaus – através do prefeito Serafim Correia e de seu secretário de educação, José Cyrino – decidiu que não vai ser mais o túmulo de línguas indígenas. Será?
Trata-se de dar visibilidade aos índios urbanos, reconhecer suas identidades, respeitar suas línguas e valorizar seus saberes. A Divisão de Educação Indígena da SEMED conta com dotação orçamentária própria e recursos para construção de escolas. Recentemente, no Dia do Índio, o prefeito assinou a contratação de 12 professores indígenas de Manaus, pagando uma dívida histórica. Eles darão aula nas suas línguas maternas para que as crianças possam manter um bilinguismo permanente, falando o português para fora e uma língua indígena internamente. É a primeira vez que isso acontece na capital do Amazonas.
Esses professores indígenas realizarão atividades para fortalecer a língua, a cultura e os etnosaberes, dividindo com o professor não-indígena o espaço e a prática pedagógica, numa experiência inédita no Brasil. Já a Divisão de Educação Escolar Indígena vai assessorar as escolas indígenas e rurais e mediar as discussões da comunidade escolar.
Os índios, que foram discriminados e expulsos de Manaus, que aqui se tornaram invisíveis, que foram emudecidos e silenciados, recebem hoje as boas-vindas da cidade, graças à sua organização e à sensibilidade do prefeito, do secretário de educação e da equipe da Semed.
Marlino Melgueiro, um dos professores contratados, é um índio baré, que nasceu em Cucui. Vive atualmente na comunidade Barreirinha, no município de Manaus. Ele, agora, vai poder ensinar os barezinhos a rodar o pião, de tucumã ou goiabeira, chamado de divanda, cujo zumbido imita o barulho do curupira e serve para espantar os mortos. Os manauaras vivos ouvirão, outra vez, o zumbido do pião e a música das línguas indígenas.
P.S. 1 – O levantamento preliminar das comunidades indígenas de Manaus foi realizado pela Divisão de Educação Indígena, subordinada ao Departamento de Gestão Educacional da Semed, dirigido por Lúcia Maia. A equipe da Divisão, coordenada por Leonízia Albuquerque, é composta entre outros por Jonise Santos, Francisco Aguiar e Jhones Souza. A pesquisa do CIMI foi feita por Rosinei Martins, Ana Delia, Benedito Maciel, Terezinha Weber, Edson de Lima e José Aldemir de Oliveira.
OBS. Crônica publicada originalmente com o título A VOLTA DO PIÃO. Fotos: Renato Soares, aldeia de Jaqueira - Pataxó (Porto Seguro) e Nádia Barboza - Waimiri-Atroari (Amazonas) 1999