Por que essa luta tem um “c” tão antiquado? A pergunta era inevitável. Estudantes, professores e trabalhadores do Distrito Industrial de Manaus, que recebiam um exemplar do jornal ‘A Lucta Social’, em setembro de 1979, queriam saber que diabo era aquilo. Todo mundo estranhava a grafia antiga, do tempo em que o dr. Canuto Palhano, o phodão da Pharmácia do Povo, usava pincenez e vendia xarope na Rua dos Barés.
Bastava, no entanto, folhear o jornal, que a explicação estava lá dentro. Acontece que em 1979 a Comissão Pró-Núcleo do PT no Amazonas decidiu editar um boletim mimeografado e escolheu o nome ‘A Lucta Social’, para homenagear um jornal fundado em 1914, em Manaus, por um tipógrafo anarquista, Tércio Miranda.
A grafia de 1914 foi mantida em 1979 para ativar a memória dos leitores, como uma forma de lembrar que a luta no Amazonas não foi inventada pelo PT, era muito anterior à existência de qualquer partido. A ‘lucta’ conservou o “c” no meio, para mostrar que o combate não começou agora. Mas de onde foi que tiramos aquele jornal anarquista, que nos inspirava a seguir ‘luctando’?
Manaus e Amsterdã
É incrível, mas foi preciso ir lá, na Holanda, para descobrir um jornal editado em Manaus em 1914. Esse locutor que vos fala se encontrava exilado em Paris, fazendo um curso de pós-graduação. Em maio de 1972 realizou pesquisa com o historiador Victor Leonardi no Instituto de História Social de Amsterdã. Lá, emocionado, viu ‘A Lucta Social’ e xerocopiou a primeira página, trazendo-a depois para Manaus.
Por isso, a cópia do jornal de 1914, apresentada aos leitores 65 anos depois, exibia, ao lado do título, um carimbo estranho, difícil de ler: Internationaal Instituut voor Sociales Geschiedenis (IISG) - Amsterdam. Esse é o nome holandês do Instituto Internacional de História Social. Se der tempo, ainda hoje conto um pouco pra vocês sobre essa instituição. Por enquanto, voltemos à Lucta Social.
Debaixo do título original de 1914, estava escrito: “orgam operário livre”. Em 1979, acrescentamos “Segunda fase. Jornal mensal do PT Amazonas”. Na realidade era uma ‘terceira fase’, mas não sabíamos. A segunda tinha sido em 1924, conforme pesquisas posteriores de Luiza Ugarte e Luís Balkar, que em 2004 organizaram uma bela edição fac-similada da imprensa operária no Amazonas.
Nessa fase petista, a linguagem era panfletária. Denunciamos a demissão de trabalhadores de uma empresa do Distrito Industrial, porque haviam reclamado contra a comida podre servida na hora do almoço. Fizemos um concurso: “a pior comida da Zona Franca de Manaus” e anunciamos as empresas vencedoras.
Outra denúncia foi contra uma conhecida fábrica de ar-condicionado. Seus diretores, bibliofóbicos, eram intelectualmente tão mesquinhos, que proibiam qualquer tipo de leitura nos intervalos. Livros e jornais eram confiscados, o que escandalizou a cantora argentina Mercedes Sosa, de passagem por Manaus em maio de 1980. Numa entrevista que fiz com ela para A Lucta Social, criticou essas empresas e manifestou seu apoio aos lascados e “a los que viven en la mierda”. Ou seja, nós.
O tostão solidário
A fase petista do jornal contou com um time de primeira: o escritor Márcio Souza e vários jornalistas amazonenses, entre os quais Aldisio Filgueiras, Nestor Nascimento (o querido Nego Nestor), Narciso Lobo, Deocleciano Bentes e esse locutor que vos fala, que era o editor responsável.
A periodicidade era irregular. Dois números circularam em São Paulo: o nº 02 distribuído no dia 10 de fevereiro de 1980 no Colégio Sion, quando mais de 1.200 militantes aprovaram o Manifesto de lançamento do PT; o nº 03 panfletado entre os delegados de todo o Brasil que participaram da fundação do Partido dos Trabalhadores no Instituto Sedes Sapientiae, em 31 de maio e 1º de junho de 1980.
Lá, muita gente perguntava: como é que um jornal amazonense vai parar lá na Holanda? Para entender isso, é preciso conhecer um pouco o Instituto Internacional de História Social (IIHS), que foi inaugurado oficialmente em 1935, com o objetivo de salvar os documentos sobre as lutas sociais de toda a Europa, ameaçados de destruição.
Nos primeiros cinco anos de sua existência, o IIHS adquiriu os arquivos de Marx e Engels, os manuscritos de Bakunin retirados clandestinamente da Áustria durante a invasão nazista, as bibliotecas e arquivos dos mencheviques que haviam fugido da Rússia e a documentação da Federação Anarquista Ibérica transportada da Espanha pelos Pirineus, pouco antes do golpe fascista do general Franco.
Na década de 1960-70, o Instituto comprou documentação histórica de organizações sociais, partidos e sindicatos de outras regiões, como a América Latina, formando um rico acervo referente ao movimento anarquista e anarco-sindicalista. Possui uma quantidade expressiva de exemplares de jornais operários brasileiros, contando a história das lutas, das greves, das condições de trabalho, das organizações sindicais.
Na década de 1920, esses jornais aqui no Brasil fizeram uma campanha comovente em defesa de dois operários italianos, Sacco e Vanzetti, acusados injustamente de um assassinato, cometido numa manifestação anarquista nos Estados Unidos, em 1920. Os dois morreram na cadeira elétrica. O processo durou sete anos. Os trabalhadores brasileiros, inclusive amazonenses, se cotizaram para pagar os advogados americanos. Os jornais registram periodicamente a contribuição de cada um: João da Silva - dois tostões, José dos Anzóis Pereira - um tostão, e seguia uma lista interminável.
Agora, esses jornais estão guardados juntos com “A Lucta Social – segunda fase, jornal do PT do Amazonas” (1979-1984), num antigo armazém de cacau na área portuária de Amsterdã, onde estão instalados os arquivos do IIHS. Lá, o Departamento de Documentos Eletrônicos, criado recentemente, conserva cópias dos arquivos do PT microfilmados pela Fundação Perseu Abramo, além de jornais operários de toda a América Latina.
Hoje, só nos resta perguntar aos companheiros honestos que estão resistindo no PT: Cadê a lucta social? Cadê o gesto de solidariedade como aquela bela campanha em favor de Sacco e Vanzetti? Saudades da Pharmacia do Povo, do Canuto Palhano e de seu xarope contra a tosse.
P.S.1 - O PT chegou a editar sete números do jornal “A Lucta Social”. O número 01 apareceu em setembro de 1979. Os quatro números seguintes circularam em 1980: em fevereiro (nº 02), março (nº 03), maio (nº 04) e junho (nº 05). O número 06 é de agosto de 1983, e o nº 07, edição especial, foi editado em maio de 1984, ambos já com o título de “A Luta Social”, abandonando aquela lembrança histórica do “c” original.