CRÔNICAS

Os indígenas em outros carnavais

Em: 11 de Fevereiro de 2024 Visualizações: 6548
Os indígenas em outros carnavais

Na madrugada da segunda (12), a flecha disparada pelos Yanomami - povo da floresta – atravessa o sambódromo no ritmo da Acadêmicos do Salgueiro, em busca de um alvo: a construção de um “Brasil cocar”. A flechada será aqui discutida depois do desfile das campeãs no sábado (17). Por enquanto, convém refletir sobre o significado da participação de indígenas em outros carnavais com destaque para Porto da Pedra (2023), Unidos da Tijuca (2022) e Imperatriz Leopoldinense (2017).

Porto da Pedra cantou A invenção da Amazônia e introduziu o sagrado na passarela com o canto de esperança em língua Katukina do Bruno Pereira: Wahanararai Wahanararai. A Unidos da Tijuca contou a lenda do guaraná do povo Saterê-Mawé – Waranã, a Reexistência Vermelha. E a Imperatriz Leopoldinense trouxe “Xingu, o clamor da floresta” com Raoni celebrando os saberes das civilizações indígenas, “a primeira semente da alma brasileira”.

Para curtir melhor o desfile da Acadêmicos do Salgueiro, que conta com a presença de Davi Yanomami, pode ser oportuno discutir o caráter educativo das escolas de samba no carnaval e a forma como os enredos são elaborados, com maior ou menor precisão.

O currículo oficial da rede de ensino incluiu de forma obrigatória a temática “História e Cultura Afro-Brasileira e indígena” com a Lei nº 11.645 assinada pelo então presidente Lula em 10 de março de 2008. Isso vale para as escolas em todos os níveis de ensino. Embora as escolas de samba não sejam “obrigadas”, algumas delas incluíram a temática em seus enredos, conscientes de que o sambódromo é um lugar privilegiado de educação, o que não é uma novidade.

O livródomo

- Ao longo da história do Brasil, o carnaval foi uma festa altamente politizada. Já na década de 1880, trouxe a campanha abolicionista para as ruas, com as grandes sociedades do Rio de Janeiro desfilando e arrecadando dinheiro para fazer fundos de alforria - escreveu o historiador Luiz Antônio Simas lembrando que, muito antes de entrar no livro didático, o Quilombo dos Palmares passou pela avenida no desfile do Salgueiro de 1960.

Com o carnaval se aprende a ler o mundo com determinado olhar. Melhor do que qualquer aparelho ideológico, as escolas de samba fazem a crônica do Brasil. Por isso, os regimes autoritários tentaram interferir nos enredos, impondo seus valores de forma atabalhoada.  

A ditadura Vargas e a ditadura empresarial-militar de 1964 distribuíram verbas às agremiações para exaltarem os “heróis oficiais” num palavrório sem pé nem cabeça. No governo Medici uma escola chegou a fazer a apologia do ensino pago na universidade pública. Os enredos desprezavam a história e a realidade, o que levou o humorista Stanislaw Ponte Preta a criar o “samba do crioulo doido”, no qual “Tiradentes queria ser dono do mundo e elegeu-se D. Pedro II”.  

Depois, com os ventos democráticos, os enredos passaram a ser filhos legítimos do casamento da sabedoria popular com o saber acadêmico, elaborados com muita pesquisa e muito cuidado. Os carnavalescos fazem a síntese intercultural com imagens, performances, fantasias, alegorias, que informam, conscientizam e subvertem a memória oficial, seguindo a ideia de Darcy Ribeiro, o idealizador do Sambódromo, que se referiu às duas asas do pássaro da cultura: a academia e o saber popular. Se bater apenas uma asa, o pássaro não levanta voo.

Muitas escolas de samba, com suas aulas magistrais, preenchem uma lacuna, já que o sistema escolar é frequentemente omisso em algumas questões, invisibilizam as matrizes indígenas e de origem africana ou, quando mencionadas, reforçam preconceitos. Agora, o conhecimento acadêmico, fertilizado e transfigurado pela cultura popular, desfila no carnaval em todo seu esplendor ao alcance dos não iniciados.

Trabalho de campo

Foi o que aconteceu com a Imperatriz Leopoldinense, em 2017. O carnavalesco Cahê Rodrigues se deslocou ao Xingu onde conviveu com os indígenas, observou o cotidiano e com eles concebeu o enredo. Viu a área contaminada por agrotóxico, causador de câncer responsável pela morte de muita gente de lá, viu os rios secando e a mata morrendo.

- Voltei de lá com outra cabeça – disse.

Da Antropologia, a escola de samba tomou emprestado o trabalho de campo como forma de entender o outro, o diferente. Buscou na Museologia a curadoria compartilhada com os povos do Xingu. Recorreu à História para abordar acontecimentos com o conceito de longa duração de Fernand Braudel, abandonando o fatual, os nomes de heróis fajutos e a sucessão de datas inúteis.

Com essa bagagem, o enredo levou para a passarela do samba a defesa da natureza agredida, a beleza e exuberância das cores da floresta e de rios limpos e piscosos, as pinturas corporais, a arte indígena, os instrumentos musicais – as flautas e os maracás, a liberdade e a memória sagrada. A letra foi tema de aulas em muitas escolas do Rio. Na escola das minhas netas, vi o encantamento das crianças c0m os saberes das etnias que vivem no Xingu.

O conhecimento acadêmico, fertilizado e transfigurado pela cultura popular, desfilou no carnaval em todo seu esplendor, ao alcance dos não iniciados. A Escola de Samba, sem qualquer pedantismo, divulgou as fontes bibliográficas de seu samba-enredo. No entanto, os comentaristas da TV nem sempre estão preparados para ajudar o público, desconhecem quase sempre a literatura e os ensaios de história e antropologia sobre o tema e às vezes atrapalham.

Brasil Cocar

Cheio de boa intenção, a Unidos da Tijuca, com seu enredo sobre o povo do guaraná, defendeu a demarcação das terras e a resistência indígena, mas afrontou as crenças ameríndias, quando exibiu Jurupari como “a força do mal, que vive na escuridão possuído por energias malignas semeadoras do ódio” e o fez desfilar no carro “A maldade de Jurupari avança sobre a floresta”.

Acontece que Jurupari, herói civilizador, legislador, criador de normas e usos transmitidos oralmente, é uma das figuras míticas mais representativas das culturas ameríndias. Quem o demonizou foram os missionários. O enredo seria outro se os carnavalescos tivessem ouvido os indígenas do Rio Negro, especialmente Edilson Melgueiro, que pertence justamente ao clã do Jurupari e se doutorou em linguística com a tese O Nheengatu de Stradelli aos dias atuais.

No desfile da Acadêmicos do Salgueiro será possível checar em que medida esse diálogo de saberes aconteceu e se seu enredo vai sair do sambódromo para a rede oficial de ensino como uma ferramenta a ser usada pelo professor para pautar e, se preciso, questionar o livro didático. O currículo escolar vai sambar e permitir um conhecimento da cultura e da resistência Yanomami, contribuindo para a construção de um “Brasil cocar”.

Referências:

Porto da Pedra: A Invenção da Amazônia. 2024: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1681-porto-da-pedra-so-nos-resta-cantar

Unidos da Tijuca: Waranã, a Reexistência Vermelha. 2023

https://www.taquiprati.com.br/cronica/1638-jurupari-exu-e-o-dr-edilson-no-carnaval

Imperatriz Leopoldinense: Xingu, o clamor da floresta. 2017:   https://www.taquiprati.com.br/cronica/1327-olha-o-indio-ai-gente-version-en-espa

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17 Comentário(s)

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Ana Lúcia Pardo comentou:
16/02/2024
Que consigamos avançar na construção de um "Brasil cocar".
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Ademario Souza Ribeiro comentou:
15/02/2024
Professor Bessa, quanta informação preciosa em tuas crônicas, quantas delícias pedagógicas para as aulas e para o dia a dia em qualquer lugar. Já que elas estão Taqui-pra-gente, perrmite-nos fazer um dabacuri de você!!!!
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Ademario Souza Ribeiro comentou:
15/02/2024
Ah, que pena, a ausência de uma pesquisa mais apurada e imputar maldades no Grande Herói Jurupari!!! Só mesmo uma flecha ervada de cansanção e tucundeira!!!
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rodrigo comentou:
15/02/2024
Ótima retrospectiva professor! A salgueiro deu um show na Sapucaí, foi emocionante ! Um abraço querido professor
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Nara Reis Carneiro Koide comentou:
14/02/2024
Parabéns, pelo relevante texto pedagógico
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Mauricio Negro comentou:
14/02/2024
O professor José Bessa discorre assertivo sobre os indígenas em outros carnavais. O artigo merece a lida, neste e naquele sentido. Faço só um adendo. Além dos Acadêmicos do Salgueiro, com a construção de um “Brasil cocar" em defesa dos Yanomami, Porto da Pedra com o sagrado na "A invenção da Amazônia" sob menção em língua Katukina, Unidos da Tijuca sob o mote Saterê-Mawé "Waranã, a Reexistência Vermelha" em 2022, Imperatriz Leopoldinense e seu “Xingu, o clamor da floresta” em 2017, neste ano a Mocidade Independente de Padre Miguel se inspirou nas personagens tupinambás do livro "Tempo de Caju", de Socorro Acioli e por mim ilustrado, para compor o seu samba-enredo.
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Terezinha De Jesus Soares comentou:
14/02/2024
Muito boa a análise do mestre Bessa
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Loretta Emiri (via FB) comentou:
14/02/2024
O texto fala do desfile da Imperatriz Leopoldinense 2017. "Quando o Carnaval é cultura", um texto de Loretta Emiri. https://www.pressenza.com/.../quando-il-carnevale-e-cultura/
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Valter Xeu comentou:
13/02/2024
PUBLICADO EM PATRIA LATINA,. https://patrialatina.com.br/os-indigenas-em-outros-carnavais/
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Rita Gonçalves comentou:
13/02/2024
Muito legal, professor, fazer essa ponte entre o carnaval, o sambódromo de Darcy Ribeiro e a sala de aula.
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Ana Maria Nogueira comentou:
13/02/2024
Maravilha de texto, obrigada. Vou compartilhar, inclusive com minha neta!
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Wanda Medrado Abrantes comentou:
12/02/2024
Depois de aposentada da universidade, aprecio com muito mais gosto o ouvir e o contar histórias, tal como acontece nesse período de Carnaval. Que história linda sobre a última aula do Darcy Ribeiro. Quantas reflexões sobre cultura, na sua dimensão acadêmica e popular., tornando o saber muito mais rico. A vida é mesmo surpreendente, ao desvelar tantas camadas de significações, como fazem os enredos, a música, a dança, as artes plásticas, sem contar os bastidores dos barracões, com histórias narradas pelos trabalhadores da folia das Escolas de Samba, valeu!
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Ana Ramalho comentou:
12/02/2024
Pena que só li hoje. Assisti ao desfile do Salgueiro ontem, pela TV. Vc previu a irrelevância dos comentaristas! Às vezes parecia boicote: a imagem mostrando o carro com Kopenawa e eles falando de outra coisa. Gostavam mesmo é de comentar da mulher do bicheiro que é madrinha da bateria há trocentos anos.
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Miguel (EGC) comentou:
12/02/2024
Li pouco depois da passagem do Salgueiro. Esta crônica é uma aula sobre o quanto as Escolas de Samba são, para além do samba,, escolas daquilo que não se aprende na escola, com um alcance que não podemos avaliar... E, nesse período recente e atual, têm constituído um registro importante das mudanças que a sociedade brasileira vem experimentando. Muito bom! Aguardo ansioso o próximo Taquiprati!
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Celeste Corrêa comentou:
12/02/2024
Mano, também já estou aqui, ansiosa, esperando pra ver a flecha ser disparada pelos yanomami e atravessar o templo sagrado do carnaval. Te confesso que o meu ladinho ansioso gostaria de assistir contigo o desfile do Salgueiro, ouvindo os teus comentários e aprendendo a ler o mundo dos Yanomami através do teu olhar. Mas vou esperar o próximo Taquiprati.rs. Eu creio,de verdade, que o mestre Darcy Ribeiro, de onde estiver, está muito feliz e gratificado com a escolha do enredo do Salgueiro. Quem acompanhou os ensaios da escola pôde sentir a grandiosidade e até uma certa ousadia do samba, com várias partes na língua yanomami, cantado com emoção indescritível por toda a quadra, como um grito de denúncia e de resistência. E mesmo que o diálogo de saberes não aconteça na medida certa, com certeza o grito desse povo tão sofrido ecoará por todo o sambódromo. Tomara que esse samba chegue até ao currículo escolar!
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Solange Bastos comentou:
12/02/2024
Bessa, tô morrendo de pena de não ter acompanhado o Salgueiro na avenida, o sono me venceu. Você menciona a deficiência dos comentaristas da TV na explicação dos enredos. Esse ano eu fiquei irritada com uma deliberada diminuição da transmissão do enredo em si: durante os primeiros 13 minutos da escola na avenida as câmeras da Globo não saíam do puxador do samba, com alguns takes "aéreos" da bateria. Quando começavam a mostrar a escola ela já estava na metade da avenida e aí as câmeras percorriam correndo as alas, mal dando tempo de se ler o nome de cada uma para entender o significado dentro do enredo. Além disso o áudio dos comentaristas era abafado pelo som ambiente do samba, o que não pode ser uma simples falha já que perdurou durante todo o tempo que resisti, sem alteração. Posso supor que houve interesse comercial na divulgação do samba-enredo, talvez pressão da Som Livre, sei lá. Mas o fato é que essa técnica prejudicou muitíssimo o possível didatismo a que você se refere dos temas tratados. Ainda puseram uns youtubers para fazerem entrevistas durante essa enrolação inicial que nada diziam, só oba oba. Sem jornalismo. Uma merda federal! Lembro que cobri carnaval na avenida desde a inauguração do Sambódromo, com a exclusividade da Manchete, em 1983, até a falência da emissora, em 1999. Deplorável.
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Ana Silva comentou:
12/02/2024
Excelente, Bessa. A flecha dos Yanomami e do Salgueiro foi certeira. O desfile foi lindo, político e necessário. Parabéns aos Indígenas, aos dirigentes da Salgueiro e aos compositores do samba. Lindo, lindo
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