CRÔNICAS

No mundo em frangalhos, a leitura

Em: 28 de Janeiro de 2024 Visualizações: 5690
No mundo em frangalhos, a leitura

Nunca leio os livros que critico, para não me deixar influenciar pelo seu autor”. (Oscar Wilde - 1854-1900).

Como a leitura pode ajudar a curar a humanidade doente?  Já cometi aqui alguns artigos sobre o ato de ler, um deles “Contra a leitura” escrito com muita fúria, em 2008, depois de ter ouvido um pesquisador alemão dizer que a oralidade era como uma casa de palha e barro, que dura pouco, enquanto a escrita era perene, como o castelo de pedra da cidade alemã de Bielefeld construído no ano 1240, no alto de uma colina, que havíamos visitado no dia anterior.

Foi na “V Conferência Internacional sobre colonialismo, cultura e escrita”. No debate, dei um contraexemplo. Nasci em Manaus, onde os portugueses construíram um forte de pedra, em 1669, do qual atualmente “nem marcas restam no chão”, como cantou o poeta amazonense Ernesto Penafort. No entanto, as milenares malocas Tuyuka estão lá ainda hoje. Cada vez que a palha apodrece, erguem outra novinha, usando técnicas de construção transmitidas oralmente há séculos e ignoradas pelos analfabetos da oralidade.

As quase-leituras

Esse artigo indignado “Contra a Leitura” recorre a quatro autores. Um deles é o psicanalista Pierre Bayard, cuja obra “Como falar dos livros que não lemos?” não traz receitas para você “cagar goma”, arrotar cultura, se exibir “hum-sete-hum-mente” e querer ser o que “a folhinha não marca”. Trata-se de provocação bem-humorada na qual o autor define os diversos tipos de leitura, de quase-leitura e até de não-leitura, todas válidas desde que ajudem a nos encontrar.

Essa diversidade reaparece em “Leituras” da antropóloga francesa Michèle Petit, que foi lido e citado para reforçar a nossa indignação. Mas depois disso, a autora publicou “A arte da leitura em tempos de crise”, que ainda não li, mas ouso comentar, seguindo as orientações irônicas, mas nem tanto, de Pierre Bayard, porque o título me atraiu pela atual crise mundial, que reverbera na nossa vida pessoal.

Impossível não pirar diante das imagens diárias da barbárie, cujas vísceras são expostas nos telejornais. Guerras insanas, genocídio na Faixa de Gaza, a Ucrânia invadida em chamas, assassinatos de indígenas dentro de suas aldeias, balas “perdidas” que atingem corpos de crianças e de jovens negros nas favelas do Rio, florestas incendiadas, rios contaminados, inundações, o planeta destroçado. O que fazer? Onde buscar a humanidade perdida?

A impotência é desoladora. Confesso que desde meados de dezembro dei um chega-pra-lá nas redes sociais, busquei refúgio na literatura e passei a desfrutar a leitura que dá prazer, mas com certo sentimento de culpa. A sensação de estar fugindo da luta foi mitigada pela lembrança do conselho do cacique guerreiro Payaré à sua filha pequena Kátia Akrãtikatêjê, hoje cacica do povo Gavião:

- Minha filha, se eles invadirem outra vez a aldeia e começarem a matar teus irmãos, foge. Foge, minha filha, foge, porque alguém tem de sobreviver para contar o que aconteceu. Denunciar o massacre faz parte da luta e da resistência. Não é covardia.

Leitor ruminante

Refugiar-se na leitura para resistir. Esse é o espírito da arte de ler em tempo de crise. Sua autora, antropóloga da leitura, em entrevista durante evento em Buenos Aires, destacou a leitura, inclusive da literatura oral, como atividade de resistência, de indagação, de memória, capaz de associar as dimensões individual e coletiva do ato de ler no campo da educação e da cidadania e de dar ao leitor o sentido da vida:

- Em contexto de crise, a literatura nos dá outro lugar, outro tempo, outra língua, um fôlego. Ela abre um espaço que permite sonhar acordado e pensar sobre a continuidade de nossas experiências. Torna o pensamento mais ágil. Apazigua o caos interno e dá forma a ele. Acalma o estresse e ansiedade.

Em outro texto sobre o sabor da leitura (05/02/2023), citamos um leitor infatigável, o ex-reitor da Uerj, Ivo Barbieri, professor de literatura brasileira. Dizíamos que quando ele fala de suas leituras, a gente começa a salivar, sentindo o sabor e até o aroma do texto literário. Quem assistiu suas aulas no doutorado de Letras da Uerj sabe disso.

Ivo Barbieri, que completa 90 anos no próximo dia 3 de fevereiro, acaba de lançar mais um livro de sua autoria “Um leitor ruminante: ensaios Machadianos”, o que nos faz lembrar a crônica radiofônica “O teatro de marionetes em Berlim” dirigida às crianças, na qual Walter Benjamin apresenta uma lista de titiriteiros com mais de 90 anos de idade:  

- É fato conhecido – diz W. Benjamin – que os grandes bonequeiros vivem apaixonadamente para seus bonecos, todo o resto lhes é indiferente. É por isso que chegam até uma idade avançada.

Meu amigo titiriteiro Euclides Souza, que reside em Curitiba e com quem atuei no Teatro de Bonecos Dadá no exílio, é uma prova disso: completa 89 anos em outubro focado no seu acervo de 800 bonecos e na sua biblioteca especializada em teatro.

Ivo Barbieri não é titiriteiro, mas suspeito que sua longevidade com qualidade de vida se deve, em grande parte, à paixão pela leitura em pelo menos 83 anos de palavras encantadas, que cumprem a função dos bonecos de Benjamin.

Ao contrário de Oscar Wilde, vou ler “O leitor ruminante” com seus 12 ensaios sobre Machado de Assis, para me deixar influenciar pelo seu autor. Depois vos contarei o resultado.

Referências:

  1. Walter Benjamin: O teatro de marionetes em Berlim. In A hora das crianças. Narrativas radiofônicas. Rio. Nau Editora. 2015.
  2. Pierre Bayard: ¿Comment parler des libres que l´on n´a pas lus? Paris. Minuit. 2007
  3. Michèle Petit: El arte de la lectura en tiempos de crisis. Océano Express Editorial. Buenos Aires/Santiago de Chile. 2009.
  4. Taquiprati:
  1. Contra a Leitura (16/11/2008) https://www.taquiprati.com.br/cronica/57-contra-a-leitura-version-en-espa
  2. Ivo Barbieri: o sabor da leitura (05/02/2023) - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1678-ivo-barbieri-o-sabor-da-leitura
  3. Entre a Maloca e o Castelo: o Belão  (24/06/2007) https://www.taquiprati.com.br/cronica/132-entre-a-maloca-e-o-castelo-o-belao

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26 Comentário(s)

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Ailton Krenak comentou:
12/02/2024
gratidão, mestre Bessa???? bom te ler, mesmo em um mundo em frangalhos ???? Até logo????saúde pra nós &todgrs????
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Joana D'Arc Fernandes Ferraz comentou:
31/01/2024
Que maravilha! Quero acompanhar os comentários como quem ouve as histórias.
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Múcio Medeiros comentou:
31/01/2024
A experiência que acha sua forma na escrita perde o condão dos extravios da narrativa!
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Anne Marie Milon Oliveira comentou:
30/01/2024
Maravilhoso texto, Bessa. Meu maior medo é que a leitura desapareça. Hoje em dia, as redes sociais dão a impressão de poder suprir os jornais, as revistas e até os livros. Ver um filme ou mesmo um documentário nos convence que sabemos tudo de um assunto. Não digo isso contra filmes ou documentários, mas há tantos livros ou mesmo artigos que o dizem melhor. É um sentimento profundo que me vem ao ler o Taquiprati. Qual filme ou documentário daria conta de sua escrita tão bela. Obrigada!
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rodrigo comentou:
30/01/2024
Os livros nos fazem viajar sem precisar pagar passagem, é uma ferramenta mágica que muda vidas, alimenta sonhos e nos faz pensar em dias melhores. Viva a leitura, por um mundo com mais livros e menos armas. Um abraço querido professor!
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Isabela Frade comentou:
29/01/2024
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André Ramos comentou:
29/01/2024
Olá Professor Bessa, boa tarde! Que satisfação receber mais uma crônica deliciosa e inquietante! Grato. Abraço!
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Mario Adolpho comentou:
29/01/2024
Guru, “cagar goma” eu conheço. Mas, “hum-sete- hum-mente”….nunca havia visto, nunca ouvi e nem ouço falar. Entendi “hum” como resmungo – hummmmmm! Só depois que me toquei e entendi que era 171 por extenso.
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Andrea Penna comentou:
29/01/2024
adoro seus textos, Bessa! E espalho muito!
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Gabriela Bernal comentou:
29/01/2024
Querido José, ayer leí con mucho gusto tu artículo. ¡Me encanta leerte! Es como tenerte cerca. Justo estos tiempos pienso mucho en el tema de la lectura y la escritura. En lo que leemos y en lo que escribimos y además, dónde lo hacemos. Esto de ser profesor de criaturas que solo se dedican a la imagen me cuesta trabajo, pero al mismo tiempo, me pone retos importantes. Las imágenes parecen ser leídas con menos violencia (aunque en esencia sean brutalmente más violentas que las palabras). Parece que como profesores nos esforzamos en marcar las palabras escritas con violencia. La otra pregunta que me recorre es, ¿dónde leen mis crías de cocodrilo (es decir, mis alumnos)? Leen y escriben, mucho, muchísimo, pero casi siempre lo hacen como ejercicio reprimido por la gramática y los buenos modales. Leer bien, escribir bien se convierte en un mecanismo de exclusión. Pero hay muchas palabras escritas que se esconden por impuras; y por impuras quiero decir, que son letras que no se acomodan a los cánones de las academias de la lengua. Les digo a mis alumnos, escribir es un acto de rebeldía; y esa rebeldía cobra sentido cuando se es consciente de que, pensamos en Kichwa, sentimos en kichwa y tratamos al hablar, de amansar esa violencia ajena y colonial, con los modos sutiles que se regulan con la entonación y los miles de guiños que el cuerpo hace al dialogar con otro cuerpo tan conocido como extraño. Sin embargo, en la lengua escrita, toda la violencia colonial aparece: solo las reglas del colonizador son válidas para lograr una expresión clara. Y ahí, la literatura tiene un rol fundamental; a mi juicio, solo desde ahí podemos revertir el ejercicio colonial de escribir como las reglas de otros nos lo dicen... La literatura, con su magia, puede hacernos construir un mundo donde aquello que en lo oral sale muy suelto de huesos (por supuesto que gracias al cuerpo), adquiera materialidad, cuerpo otra vez. ¡Ya ves cómo estamos conectados! ¡Senderos paralelos! te abrazo un montón, Me hace muy feliz poder seguir leyéndote.
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Tamar de Castro comentou:
29/01/2024
Tamar de Castro Vou repetir o que lhe enviei depois de ler seu último texto enviado e, não sei pq, nunca chegou até aí. Não faz mal, eu repito: é sempre delicioso ler o que vc escreve. É este texto agora sobre livros e leitura me tocou profundamente e fiquei pensando: quais livros ler numa hora dessa, em um mundo assim, como vc bem descreve. Encerrada aqui no meu castelo, sem torre dourada, amei suas sugestões e o foco das suas palavras. É que bom poder dizer para mim mesma e para quem puder ouvir: eu conheço o Riba há muito tempo, e ele foi importante em muitos pontos da minha vida, apesar da distância. Salve!
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Euclides Coelho de Souza Dadá comentou:
29/01/2024
Muito bom, mas o termo apropriado não é bonequeiro, é titiriteiro. Você podia ter citado os quase 50 livros que Lula leu nos 580 dias de prisão: “O Amor nos Tempos do Cólera, do Gabriel García Márquez; A Elite do Atraso, do Jessé Souza; A Fome, de Martín Caparrós; O Petróleo, de Daniel Yergin; Escravidão, de Laurentino Gomes”. Sergio Moro foi entrevistado pelo Bial e o mentiroso disse que lia biografias, perguntado para citar a última leitura ou qq outra, ele disse que não lembrava. E olha que o Marreco tem diploma universitário. Bial fez a mesma pergunta pro Lula que lavou a égua, resenhou oralmente as biografias Tiradentes, Fidel, Mandela, Prestes, Chávez, Putin, Marighella, que ele leu.
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Ana Silva comentou:
29/01/2024
Viva a leitura, viva o Taquiparati e o brilhante Bessa.
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Giane Lessa comentou:
28/01/2024
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Leonardo Peixoto comentou:
28/01/2024
Fiquei com vontade de ler o Barbieri. Nunca tive chance de lê-lo e nem de ouvi-lo.
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Solange Albernaz de Melo Bastos comentou:
28/01/2024
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Delayne Brasil comentou:
28/01/2024
Assim, abrindo o link e lendo uma boa crônica, vale a pena ficar na rede social! ????
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Celeste Correa comentou:
28/01/2024
Mano, desde o início da pandemia, por conta do isolamento forçado, eu tentei descobrir quais seriam as minhas "boias" para manter a minha integridade emocional. E aí redescobri a leitura. Eu te confesso que tive muita dificuldade nessa retomada por conta do uso excessivo das redes sociais e, pela dificuldade de concentração pra ler, fato que me deixou meio angustiada, mas que depois eu li ser um fenômeno muito comum nesses nossos tempos. Eu quero ler este livro “A arte da leitura em tempos de crise”, para entender realmente o que aconteceu comigo. Eu sinto que agora, mesmo com certa dificuldade ainda de concentração, eu já retomei o gosto pela leitura . E, como bem disseste na crônica, ler, neste contexto caótico de guerras e de tanta violência, está sendo um bálsamo para o meu espírito. Estou me apaixonando novamente pelos livros. E estou pensando aqui, ao ler o que escreveste sobre o nosso irmão titiriteiro, o querido Euclides, e sobre o teu amigo , o ex reitor e escritor, Ivo Barbieri, vejo que os dois são apaixonados pela sua arte. Logo, deduzi que ela dá longevidade. rs. Ambos com 89 anos, super inteligentes e com uma linda história de luta e de resistência, eles me inspiram muito a retomar o gosto e a disciplina pela leitura.
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José Alcimar de Oliveira comentou:
28/01/2024
Seu texto, companheiro Ribamar Bessa, veio ao encontro da disciplina Leitura e Redação de Textos Filosóficos, com a qual estou me havendo neste semestre letivo na Licenciatura em Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, casa que também é sua. Tecido com inteligência e leveza, acabei de repassá-lo para a minha turma de filosofantes. Nosso grande Paulo Freire, objeto da infâmia e da ignorância arrogante da extrema direita (sobtretudo da extrema direita letrada e analfabeta), bem assinala que a leitura da palavra é sempre precedida pela leitura do mundo. Quanta pretensão, hoje, de certa cultura letrada, a manifestar um duplo analfabetismo: da oralidade (leitura do mundo), na qual os povos originários são doutores de fato, e o da cultura escrita (leitura da palavra), capitulada pela estupidez que atualmente domina as redes ditas sociais. Ao desconhecer a riqueza da tradição oral, o analfabeto letrado é o típico sujeito semiculto, descrito por Adorno como o que vive do cultivo de si mesmo sem si mesmo.
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Marisa Castellani comentou:
28/01/2024
Bessa nos brinda com mais um texto formidável! Obrigada, amigo
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Ana Ramalho comentou:
28/01/2024
A de hoje "se pasó"! Tudo a ver com minha vida atual de sócia de Casa 11-sebo e livraria. Sempre estamos repetindo entre nós: Casa 11 é resistência! Ontem quem esteve nos visitando para um bate-papo foi o Evandro Teixeira. Ficamos encantados. Nosso micro-espaço em Laranjeiras transbordou. Em muitas dimensões. Tomei a liberdade de enviar sua crônica para o grupo dos sócios. Somos mais de 100 e nos gerenciamos anarquicamente por um grupo de whatsapp. Alguém do grupo já comentou: "fala de nós"
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Ribamar FNCC comentou:
28/01/2024
"so quer ser o que a folhinha não marca" é o máximo, ouvi muito quando era criança
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Celio Cruz comentou:
28/01/2024
Caramba, Mestre @Jose Bessa, esse Taquiprati de hoje chegou como um bálsamo na minha vida atual. Além do prazer da leitura, a possibilidade da longevidade fazendo algo fantástico
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Luiz Pucú comentou:
28/01/2024
Enviei para a namorada do meu filho mais novo que saiu daqui a pouco sem saber o tema do TCC. Pedagogia
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Lúcio Carril comentou:
28/01/2024
Virou um senso comum dizer que a história começa com a escrita. Coisa do colonialismo desconsiderar a oralidade e a cultura que fluiu e serviu de base para todo conhecimento que o mundo tem.
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Amaro Junior comentou:
28/01/2024
Publicado no PORTAL M+ https://www.portalmuitomaispositivo.com.br/2024/01/28/no-mundo-em-frangalhos-a-leitura/
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