CRÔNICAS

LULA, AQUI E LÁ

Em: 25 de Janeiro de 1994 Visualizações: 2417
LULA, AQUI E LÁ

No final de janeiro de 1981, em pleno inverno de Paris, o jornal LibérationLibé para os íntimos - abriu a seguinte manchete, algo assim como: “Lula faz general Figueiredo empalidecer de inveja”. E fez mesmo. Eu estava lá e te conto já como foi, leitor (a). Não sou capaz de guardar datas sem ajuda externa, mas tenho razoável memória para reter o essencial.

Acontece que no mesmo dia em que o general Figueiredo, ditador que presidia o Brasil, desembarcava no aeroporto Charles De Gaulle em visita oficial, chegava também em Paris, vindo de Roma, o líder sindical metalúrgico Luiz Inácio da Silva Lula, presidente do recém fundado Partido dos Trabalhadores (PT). Por pouco não se encontraram na sala de desembarque.

O general e sua esposa, dona Dulce, foram recebidos no Hotel Marigny pelo presidente Giscard d´Estaing, que três meses depois seria derrotado por François Mitterand. Lula foi recepcionado por Georges Seguy, secretário geral da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT).

Cada um dos dois marcou uma entrevista coletiva no dia seguinte, quase na mesma hora. Olha só o rolo que se aprontou: eu tinha que testemunhá-lo, não tinha não?

Na década de 70, na qualidade de correspondente na França do semanário Opinião, cobri uma ou outra entrevista coletiva, uma delas com o presidente Georges Pompidou, já com sinais evidentes da doença que o mataria. Sabia, portanto, que era necessário cumprir todo um ritual de credenciamento, cheio de trique-trique, sem o qual qualquer jornalista seria barrado.

Por isso, me apresentei à sede da CGT, responsável pela organização da entrevista com Lula. Até que foi simples. Exibi minhas credenciais. Na folha que me deram para preencher havia dezenas de nomes de jornalistas do mundo inteiro, correspondentes estrangeiros do New York Times, do Washington Post, do The Guardian de Londres e creio, mas não posso jurar, até mesmo do Asahi Shibun do Japão, além de repórteres do Le Monde, do L´Humanité, do Le Figaro e de tantos outros.

A palidez do general

Escrevi Porantim, Manaus na coluna destinada a indicar o jornal e a cidade.  Na identificação do entrevistador, não contei com conversa e tasquei – olha só a cara de pau, leitor (a) –meu nome José Ribamar debaixo do último gringo de uma longa lista. Suspeito que deu um nó na cabeça da francesada, que deve estar procurando até hoje no catálogo de jornais impressos no mundo, que diabo de Porrantan era aquele e quem era esse seu correspondente.

Bem, o Porantim existia efetivamente. Deixei um exemplar na CGT. Era um jornal mensal valente, atrevido e panfletário, inicialmente mimeografado, ligado à questão indígena, que eu ajudara a fundar em Manaus com o teólogo Paulo Suss do CIMI e tivera o privilégio de ser o seu primeiro editor. Depois, teve até uma edição do Porantim International em inglês feita em Viena pela Dreikönigsaktion of Catholic Jungschar Austria.

Era um jornal tão desconhecido na França quanto Ribamar, nome desse filho aqui da dona Elisa. Carregar tal prenome na carteira de identidade é dose, é phooddaa com ph de pharmácia, dois “o” de cooperativa, dois “d” de toddy e dois “a” de caatinga. Eu preferia Severino, soaria mais familiar. Afinal, em Paris, no Quartier Latin, existe a igreja de Saint-Séverin, onde rezam homem, mulher e menino. Mas dona Elisa, gozadora, me batizou rindo do mar. O que posso fazer com tal nome, senão relaxar e... carregar pelo resto da vida? O consolo é que tem coisa pior: Amazonino e Lupércio para citar apenas dois.  

Para encurtar o papo e explicar porque o Figueiredo ficou pálido de inveja, te conto o seguinte: enquanto no auditório da CGT havia 96 correspondentes internacionais bombardeando Lula com perguntas, na sala da Embaixada do Brasil, Figueiredo falava apenas para menos de 20 jornalistas, quase todos da imprensa brasileira. Lula era notícia. Figueiredo não.

Caravana das águas

Conto isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque Lula está aqui em Manaus, devendo sair hoje, 25 de janeiro de 1994, às 16h00 na Caravana das Águas, colhendo elementos para elaborar o programa que o PT vai apresentar ao país como proposta de governo. Vai conversar com todos os setores representativos da sociedade amazonense: trabalhadores, empresários, sindicalistas, militares, estudantes, igrejas e associações de classe.

Em segundo lugar, porque o aqui contado ilustra o tratamento dado a Lula pela imprensa internacional. Lula, lá, é considerado como o estadista, que realmente é, concorde você ou não com suas ideias. Comportou-se como tal na entrevista lá na França, ladeado por dois doutores da USP – Francisco Weffort e José Álvaro Moises. E te aviso, leitor (a), que os jornalistas não deram refresco não: atiraram cascas de banana, jogaram tijolos quentes em suas mãos, cumprindo a função critica que corresponde à imprensa.

Com uma agilidade extraordinária de raciocínio, uma inteligência aguda e um bom humor que só os verdadeiros sábios cultivam, Lula discorreu sobre política internacional, dívida externa, crescimento econômico, inflação, reforma agrária, desemprego, política cultural e oscambau-a-quatro, apresentando dados estatísticos atualizados na ponta da língua e demonstrando compreensão surpreendente da realidade brasileira e da conjuntura internacional.

Surpreendente sim! Como é que um pau-de-arara, pobre e lascado, saído da miséria nordestina para trabalhar como torneiro mecânico em São Paulo, sem curso universitário, sem diploma, conseguiu obter conhecimentos tão amplos sobre o Brasil?

A experiência de vida ajuda muito a gente a conhecer o mundo. E a de Lula é muito rica. Acompanhei poucas vezes de perto e quase sempre de longe a trajetória do Lula. Fomos por ele recebido, em companhia de Aloysio Nogueira, em dezembro de 1979, quando o entrevistamos para o jornal A Lucta Social do PT-Amazonas. Aproveitei para presenteá-lo com um exemplar do Porantim. Em 1983, ao lado de Paulo Suss, em cima da carroceria de uma caminhão, em Brasiléia, no Acre, participei com Lula, Jacó Bittar e a liderança local do comício de protesto contra o assassinato do nosso Wilsão, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais.

Educação de príncipe

O contato direto com a realidade nacional, com a dor e o sofrimento de milhões de brasileiros, ampliado nos últimos tempos pela Caravana da Cidadania que percorreu todo o país, foi uma grande escola para Lula. Mas esse imprescindível conhecimento empírico não é suficiente. É necessário ainda uma reflexão teórica sobre o que se viu e se viveu para se obter um saber mais profundo.

Como se prepara um dirigente para governar um país?

Quem encontrou seu próprio caminho foi a monarquia espanhola extinta em 1931 pela Segunda República e restaurada pelo ditador fascista Francisco Franco, em 1969, quando nomeou Juan Carlos príncipe. A formação do futuro rei foi na Universidade Complutense de Madri, onde cursou Direito Político e Internacional, Economia e Finanças Públicas.  Mas não frequentou as salas de aula da universidade, porque a realeza entendia que ele não podia se misturar com a plebe ignara.

Assim, Juan Carlos teve preceptores, que lhe davam aulas particulares no palácio. No final, submetia-se apenas a algumas formalidade de avaliação para obter o canudo. Ele estudou ainda nas Academias e Escolas Militares das três armas.

No caso de Lula, ele conviveu diariamente, em sua militância, com os melhores professores das universidades brasileiras: Florestan Fernandes, Marilena Chauí, Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Freire, Hélio Pellegrino, Mário Pedrosa, Lélia Abramo e outros pesquisadores produtores de conhecimentos, com quem muito aprendeu e a quem muito ensinou. Desta forma, Luís Inácio teve uma formação privilegiada, que sua inteligência e sagacidade souberam aproveitar muito bem.

O diploma e o saber

Esta viagem por dez países mostrou que Lula está maduro e preparado, sem dúvida alguma, para governar o país, se essa for a vontade da maioria da nação. Nos Estados Unidos, ele foi recebido pelo senador Ted Kennedy, na Itália pelo papa João Paulo II e pelo líder sindical polonês Lech Walesa. Sua eleição para presidente pode dar origem a dois enterros com direito a café, bolacha e cachaça no velório.

Em primeiro lugar, vamos sepultar para sempre essa visão cartorial do conhecimento, defendida por um certo provincianismo bocó de setores atrasados, que confundem conhecimento com diploma. O pobre deputado Ronaldo Tiradentes (PPR – vixe vixe), por exemplo, é um que, através de métodos nada ortodoxos, busca desesperadamente até hoje um título para legitimar um saber que não possui. Ele acha que o importante é o diploma e não o saber. Com essa visão, há dias um articulista deste jornal tentou desqualificar Lula.

Em segundo lugar, Lula lá, na presidência, contribuirá para eliminar, no plano regional e nacional, um método de fazer política, que combina clientelismo com corrupção. Tais práticas só acontecem porque existe uma máquina, responsável pela falta de transparência nos atos governamentais, que precisa ser desmantelada.

Desde a trinca colonial maldita, decorada por todos nós na escola primária – Tomé de Souza, Duarte da Costa e Mem de Sá - passando pelos Pedros I e II, até o mauricinho Fernando Collor (toc toc, isola), que o Brasil vem sendo governado e saqueado por bacharéis sabidões, que arrotam experiências administrativas e consolidam as infames desigualdades sociais. Agora, chega! Lula é o único dado realmente novo no cenário político do país. Tenho dito. O referido é verdade e dou fé.

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1 Comentário(s)

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Celeste Correa comentou:
29/08/2022
Ele é um gênio! Por isso incomodou e incomoda tanto, né! Muito legal!!
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