“O passado é o que não passou do que lhe passou”.
João Cabral de Melo Neto. Habitar o tempo. 1965
O fumacê permanente que asfixia Manaus degrada sua paisagem, adultera cheiros, sons, cores, sabores, arruína a saúde de 2 milhões de moradores e se entranha na pele da cidade, causando-lhe graves ferimentos. Olho fotos das casas imersas em nuvem de fumaça enviadas por minhas irmãs e as comparo com as da cidade de outrora totalmente arborizada, assim como com imagens da Faixa de Gaza bombardeada, o que me leva a relacionar o poema Habitar o tempo de João Cabral com o Regatão da Saudade de Arlindo Porto.
Habitar o tempo é vivenciar cada instante e, enquanto esse instante transcorre, se caminha na trilha entre o pretérito e o porvir. O passado, já morto, só existe se ressuscitar no presente. O passado é aquilo que “não passou do que lhe passou”. O poeta sugere que um mergulho nas águas do passado nos permite penetrar no miolo do tempo, tornando visíveis seu corpo e sua cor. Só assim é possível habitar o tempo ao vivo.
A maloca do tempo
O “Regatão da Saudade”, por mim resenhado em 1995, habita o tempo e mantém vivo o passado “que não passou”. Com os olhos ardidos simbolicamente pela fumaça manauara, releio o livro e fico só abicorando o autor nascido em Manaus, numa casa pobre da rua Nhamundá, Praça XIV, com os olhos fechados como um filhotinho de cachorro. Não via nada. Será que é cego? Pensaram até em operá-lo. Mas dona Inácia, sua mãe, seguiu receita de uma velhinha sábia e pingou-lhe leite materno sobre os olhos.
Santo remédio. Esse regatão da saudade arregalou os olhos e começou a ler o mundo, para nossa felicidade, porque o que ele viu, ouviu, cheirou, tocou, sua memória registrou. Criado na década de 30 no Alto de Nazaré em um barraco de zinco, sua memória acústica, olfativa, tátil, gustativa e visual foi gravando e fotografando tudo. Agora, essa memória não mais lhe pertence. Ela se fez carne e habita entre nós na maloca do tempo, nossa morada coletiva.
Ainda hoje, aos 94 anos, ele guarda os sons da cidade: o dlem-dlem do bonde que moía vidros sobre os trilhos para fazer cerol, o papagaio empinado pelo famão da Vila Mamão – Descai linha, galinha! Bota outro, penoso, que teu pai é perigoso! – o apito triste do guarda noturno, o bimbalhar de sinetas dos carros coletores de lixo, o ruído das vassouras de cipó varrendo ruas, a sirene da usina de luz do Plano Inclinado e as crianças: - sua benção, mamãe! - quando badalava ao meio dia o sino da Matriz.
Frutas regionais e ingás suculentas compradas em Flores no final da linha do bonde. Odores das ruas arborizadas: aroma de manga e de mari-mari, o gosto do peixe e da pimenta murupi, de gengibirra e do aluá no mercadão e nas feiras, são sabores e cheiros que ficaram cravados na lembrança do menino, cujo corpo namorou as águas frias do igarapé do Quarenta e o sol do Parque Dez, mostrando que a memória tátil também é perene.
Memória seletiva
O menino gravou martelos retinindo nos postes de ferro, navios apitando no porto, os poucos carros buzinando nas festas de Natal, os berros da plateia do Cine Guarany, as brincadeiras de crianças nas ruas – cantigas de roda, camoniboi, 31 alerta, o cão do Luso, as conversas dos vizinhos ao entardecer em cadeiras nas calçadas. O regatão, que navega na canoa do tempo, desembarca hoje essas saudades misturadas às nossas embaralhadas lembranças individuais.
A Manaus que se foi, que já era, com arraiais e festas populares, as normalistas vestidas de azul e branco, fazendo footing em bandos na paquera pela av. Eduardo Ribeiro. Buquês e guirlandas de angélicas perfumadas trazidas do Careiro para cerimônias de casamento. O Royal Briar - um “extrato” como era chamado em caboquês qualquer perfume – vendido em pequenas doses por alguns tostões na entrada das festas populares.
Eita! Pera lá! Só sabor e perfume de flor? Dissabores e fedores não entram nesta memória seletiva? Isso lembra o poeta espanhol do séc. XV, Jorge Manrique, que em Coplas a la muerte de su padre escreve “como a nuestro parecer, cualquiera tiempo pasado fue mejor”. Qualquer tempo passado parece ter sido melhor. Parece, mas não necessariamente foi. Acontece que o presente já é tão tétrico, que na construção da memória varremos o lixo de outrora pra debaixo do tapete.
É claro que agruras, desprazeres, intolerância religiosa, racismo e machismo, aporofobia e homofobia conviveram na Manaus de ontem com momentos intensos de alegria e de humanidade, evidenciando que a cor da realidade manauara não era exclusivamente preta nem unicamente branca. Era cinza, como esse fumacê que então não existia e que agora nos sufoca provocado, entre outros, por incendiários criminosos – diz o superintendente regional do IBAMA, Joel Araújo.
Os nomes de alguns Netanyahu da Faixa de Casa foram publicados pelo Intercept. São 12 desmatadores e incendiários, todos eles multados, incluindo o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Amazonas (FAEA). Mas muitos responsáveis por crimes ambientais não foram descobertos, porque a fiscalização foi desativada nos quatro anos do governo do Coiso com a cumplicidade do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas – IPAAM no governo de Wilson Lima.
Netanyahu mata crianças, explode ambulâncias, reivindica o “direito de se defender” e ainda atribui cinicamente ao Hamas bombas sobre o hospital palestino. Também o presidente da Associação de Pecuaristas e Produtores de Autaz Mirim, Dalton Martins, critica o IBAMA por culpar os agropecuaristas pela fumaça em Manaus. Já o governador, que tem um histórico de conivência com os crimes ambientais, tira o loló da seringa e diz que a fumaça vem lá do Pará, onde ele nasceu. Tudo fake. A fumaça é ele.
Cadê você?
Difícil imaginar como nossas netas e netos habitarão esse tempo sinistro e dele lembrarão. No conhecido poema “Aos que virão depois de nós”, Bertold Brecht lamenta os tempos sombrios em que vivemos, “quando falar de flores é quase um crime, pois significa silenciar sobre tanta injustiça”. Para o poeta, “aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia”.
A terrível notícia não é unicamente a dramática e dolorosa contaminação do ar, mas a passividade da população que, em sua maioria, caminha silenciosamente ao matadouro sem reclamar e ainda por cima elege seus algozes para cargos públicos. Nas eleições presidenciais, o Coiso recebeu 61.28% dos votos na capital amazonense. Isso dói e sufoca. Até quando?
Eh, eh, Manaus, cadê você?
Eu escrevo só pra te ver
protestar contra o fumacê.
A fumaça que invadiu as casas era tanta que outro dia a Ceuzinha, minha irmã caçula, teve de rastejar no chão para encontrar sua gatinha. Sem exagero. Aqui em Niterói fico ofegante só em ouvir tais relatos. Com o fiofó na mão, lembro o citado Manrique para quem “nuestras vidas son los ríos que van a dar en el mar, que es el morir”. Temo ficar órfão de nove irmãs. Bem que um avião da FAB podia retirá-las dessa Faixa de Casa, com sobrinhas e sobrinhos. A questão é: levá-los para onde, meu Deus, se o mundo todo está em pandarecos.
P.S. – Se a gota que inchou meu pé permitir, neste domingo (12) viajo a Buenos Aires para um evento, a convite da Biblioteca Nacional da Argentina, justamente na semana que antecede as eleições presidenciais. Neste caso, darei notícias de lá. Espero que los hermanos não repitam a tragédia vivida pelo Brasil durante quatro anos com consequências até os dias de hoje.
Referências:
1. João Cabral de Melo Neto. Habitar o tempo in A Educação pela pedra. Rio. Editora do Autor. 1965
2. Jorge Manrique [1476] Coplas a la muerte de su padre. Santiago de Chile. Editorial Universitaria. 2007.
3. Bertolt Brecht. Aos que virão depois de nós. In Poemas 1913-1956. São Paulo. Brasiliense. 1967
4. Arlindo Porto [1994]. Regatão da Saudade. Manaus. E.A. 1994.
5. Taquiprati. As saudades do regatão. Manaus. 31 de março de 1995. https://www.taquiprati.com.br/cronica/476-as-saudades-do-regatao
Redação TH. Reportagem aponta desmatadores que contribuíram para fumaça em Manaus. 06/11/2023. https://todahora.com/reportagem-aponta-quem-contribuiu-para-fumaca-em-manaus/