“Quando a música toca, a gente dança. Onde há música, o espírito é capaz de dançar mesmo debaixo da forca com a corda no pescoço” (Chris While - Julie Matthews. Dancing under the gallows. 2014).
Como reagir diante das desgraças pessoais e coletivas? No caso do Brasil, as tragédias no governo do Coiso, o descaso com a covid-19 responsável por mortes, muitas delas evitáveis, de mais de 700 mil brasileiros incluindo entes queridos, a desigualdade social, a miséria, a fome, os assassinatos sistemáticos de quilombolas, indígenas, crianças negras, mães bernadetes e marielles. É possível ser feliz no meio de tantos males quase sempre irreversíveis e irreparáveis, que nos deixam impotentes? Como resistir?
Essa questão é discutida em outro contexto histórico no curta-metragem “A Senhora do Apartamento 6: a música salvou minha vida”, de 39 minutos, exibido no Canal Arte 1, na quarta (9/8). Duas irmãs judias, Alice e Mariana, nascidas em Praga, em 1903, enfrentaram de forma diferente a dor e o desalento provocados pela brutalidade da guerra e pela perseguição nazista: a perda do pai, da mãe, da maior parte de sua família, dos amigos, todos vítimas do Holocausto.
Mariana não suportou tanto sofrimento desde quando Hitler ocupou a Checoslováquia, em março de 1939, e obrigou os judeus a usarem a estrela amarela. Discriminada e banida dos espaços públicos, ela mergulhou na mais profunda depressão. Tomada pelo desespero, morreu relativamente jovem.
Alice, pianista, ciscou migalhas de alegria no campo de concentração de Terezin para onde foi deportada com seu filho de 5 anos e seu marido e, no meio das atribulações, lutou contra as adversidades com o escudo do bom humor durante toda a sua longa existência. Morreu aos 110 anos nos deixando lições de vida.
O mundo da música
Alice e Mariana eram irmãs gêmeas, tiveram a mesma mãe, o mesmo pai, a mesma educação, mas formas diferentes de ver o mundo, especiamente as crueldades contra os seres humanos. Mariana, apesar de talentosa, encarava sempre com pessimismo os dissabores e se deixava aprisionar pela melancolia.
- Eu sou o contrário dela. Não permito que a realidade exterior me adoeça. Diante do sofrimento, procuro ver o lado bom e belo da vida, que sempre existe. Depende de mim, a felicidade. De mim, não do que a vida me impõe. Exclusivamente de mim - diz Alice, que se refugiou na música, responsável por manter o seu equilíbrio psicológico e permitir que cultivasse a esperança nos momentos mais sombrios, impedindo que perdesse o sentido da existência.
No documentário, é possível ver como a música nos enleva, nos ajuda a gerir a dor, age diretamente sobre o nosso ritmo, as pulsações cardíacas, a pressão sanguínea, o sistema nervoso e cognitivo, a produção de endorfina. A música é emoção em estado puro. “Music is my God” - ela diz, assegurando que somos transportados para outro mundo, o mundo da música, melhor do que aquele em que vivemos.
Alice deu muitos concertos em salas de musica, depois no gueto onde ficou reclusa e no campo de concentração, onde lhe foi permitido tocar piano e ao seu filho cantar ópera infantil, com o objetivo de servir de vitrine para a inspeção da Cruz Vermelha.“Foi sorte nossa, mesmo assim, centenas de pessoas morriam ao nosso redor todos os dias. Foi uma época muito difícil”.
Seu marido foi executado em câmaras de gás. Ela e seu filho Raphael, sobreviveram e foram libertados pelo Exército Vermelho em 9 de maio de 1945, o último dia da guerra.
Ferramenta de resistência
Alice e o filho tiveram que reaprender a confiar na vida e a deixar os horrores do passado para trás. Ela tratou de educá-lo sem ódio, “porque ódio traz ódio. Eu nunca odiei, nunca, nunca” - ela diz, apesar de condenar com veemência os crimes contra os judeus. Foi residir em Israel, em 1949, onde deu aulas de música, depois mudou para Londres, em 1986, acompanhando o filho músico que morreu em 2001. Ela não esconde a tristeza ao relatar sua morte, mas acaba agradecendo à vida, “porque ele morreu subitamente sem sofrer”.
Foi lá, no pequeno apartamento de um quarto, no norte de Londres, onde morava sozinha, que foi entrevistada para o documentário. Sozinha não. Ela e seu piano no qual, para a felicidade dos vizinhos, tocava as obras de Beethoven, Bach e Chopin diariamente das 10h00 às 13h00 até às vésperas de morrer, com pontualidade britânica. Os primeiros acordes do piano funcionavam para a vizinhança como o sino da igreja, anunciando as horas.
Alice se vacinou contra o peso da idade e as feridas do passado. Sua amiga Anita Lasker, violoncelista de renome mundial e uma das sobreviventes da Orquestra Feminina de Auschwitz, a visitava religiosamente nos fins de semana para brincarem de Scrabble, aquele jogo de palavras cruzadas em um tabuleiro. Anita também dá seu depoimento no documentário: “Nunca me senti como uma vítima, mas como uma observadora”,
As imagens filmadas em 2013, no crepúsculo da vida de Alice, quando ela tinha 109 anos, mostram closes de seu rosto, o brilho dos seus olhos e a explosão de sua risada contagiante. O diretor do documentário, Malcolm Clarke, diz que o que o atraiu em Alice foi o otimismo, o humor, a generosidade e sobretudo a alegria de viver, usando para isso a música como ferramenta de resistência.
Cheia de mundo
Malcolm Clarke recebeu o Óscar de melhor curta-metragem, em 2014, com um discurso emocionado:
- Quando conheci Alice, ela era a imagem do júbilo e do perdão. Para quem não sabe, ela morreu há uma semana. Foi uma mulher que ensinou a todos a serem mais otimistas e mais felizes. Vejam o filme. Tenho certeza de que ela ajudará a todos a serem felizes.
Eu, que já vi três vezes o filme, também tenho certeza disso. É um filme para professores exibirem em sala de aula nesses tempos bicudos. Do alto dos seus 110 anos bem vividos ela diz:
- A vida é bela, extremamente bela. E na velhice, você a valoriza ainda mais. Quando a gente envelhece, valoriza ainda mais a vida, a gente pensa, a gente cuida, a gente aprecia e é grata por tudo. Por tudo.
A pianista do apartamento 6 foi um dos poucos seres humanos a morrer com tanta vida. Seus restos mortais estavam “llenos de mundo” como no poema de Vallejo sobre o assassinato de Pedro Rojas pelos fascistas na Guerra Civil Espanhola. Sua vida foi celebrada também com a música “Dançar sob a forca” de Chris While e Julie Matthews.
Há quem ache que otimismo de Alice é alienação. Quem é alienada? Mariana, cujo pessimismo a impede de viver? Ou Alice, que não perde a cabeça, mantém intacta sua alma, não deixa que o monstrengo da desgraça e a experiência do terror a desumanize e a faça perder o sentido da vida?
Ver you tube The lady in number 6: music save my life:
https://www.google.com/search?q=Canal+curta+ou+Canal+Arte%3F+The+Lady+in+Number+6%3A+Music+Saved+My+Life&rlz
P.S. Publicamos abaixo dois comentários provocados pelo artigo acima: 1) de Enrique Mayer, peruano, professor emérito da Yale University, cujos avós morreram no campo de concentração, o avô de tifo e a avó na câmara de gás; 2) de Isabella Thiago de Mello, com depoimento sobre a tristeza pela morte do seu primo, o jornalista Paulo Thiago de Mello, na manhã desse domingo (20 agosto)
MEUS AVÓS ESTIVERAM PRESOS EM TEREZÍN
Enrique Mayer - Professor emérito da Yale University
Escribo en español, ya que tienes compañera peruana que te puede ayudar con la traducción, aparte de que tu también tienes experiencia peruana.
Me gustó mucho tu reseña pues mis abuelos estuvieron presos en Terezin también, y el abuelo murió allá infectado de Tifus, y mi abuela viuda un tiempo después fue transportada a Auschwitz y murió allá en la cámara de gas. Una cuñada cuyo marido también murió en Terezin sobrevivió y cuando el ejército rojo liberó el campo de concentración, regresó en largo y penoso peregrinaje a Hamburgo donde vivió varios años más y tiene nietos que todavía viven allí.
La orquesta de Terezín era famosa, había conciertos, óperas, teatro y presentaciones culturales, frecuentes y no solo para impresionar a los inspectores de la cruz roja, sino para sobrevivir espiritualmente, y te aseguro que mi abuela asistió a muchos eventos y quizás conoció a la pianista inmortalizada en el cortometraje que reseñas. Hay un libro en alemán que leí sobre Terezin, donde por supuesto también se mencionan los eventos que tratas.
Todo esto muy a propósito con el momento actual mío porque estoy en Lima revistando un gran baúl con correspondencia y papeles de mis padres, especialmente la correspondencia entre mi papá y mi mamá que se conocieron el año 33 en Breslau en esos tiempos Alemania, ahora Polonia, pero no se casaron. Años más tarde mi papá ya en Huancayo Perú la persiguió y persuadió de venir de Argentina a donde ella había emigrado con su familia, y ella tomó el tren de Buenos Aires a La Paz donde se casaron y eventualmente tuvieron cuatro hijos, se juntaron la hermana y hermano de mi papá e hicieron vida ilustre de alemanes peruanizados residentes en Huancayo, contribuyendo a la vida comercial y cultural de esa ciudad, sin perder su identidad de alemanes pero también asumiendo a su manera la de peruanos nacionalizados.
Gracias y me complace la coincidencia de los recuerdos sentimentales
Amor de Primos
Isabella Thiago de Mello
Paulo Thiago de Mello. Meu primo Paulinho partiu para a Eternidade – seu coração não aguentou as complicações do fígado − nessa manhã de domingo, 20 de Agosto, no mesmo dia do aniversário de seu pai Gaudêncio.
Estou aos prantos. Destroçada. Não consigo parar de chorar, costurando a memória e inconformada por tanto que ainda tínhamos por fazer. A dor aumenta, distantes, ele internado no hospital, no Rio de Janeiro, eu trabalhando em Manaus, e não poder me despedir de quem sempre esteve ao meu lado, dói, dói muito. Nem mesmo um astrolábio, o instrumento que mede a distância entre as estrelas, poderia medir essa ausência.
Vai fazer muita falta. Além da sua visão de mundo, culto, jornalista, fotógrafo, antropólogo − na época da Faculdade, era com quem conversava sobre a construção do socialismo e as filosofias de Marx, Weber e Durkheim – e um enorme coração, repito: não houve um instante nessa vida, na tristeza ou na alegria, quando eu precisei de uma força, Paulinho estava sempre ali, de braços abertos, e sorriso franco.
Paulinho também foi um dos melhores amigos de meu irmão mais velho, o músico Manduka, outro que partiu muito cedo, com 52 anos de idade, em 2004. Paulinho é colecionador dos discos de Manduka. Chamava-me. Na cozinha, preparava um risoto de cogumelos, abríamos um vinho chileno em homenagem a Salvador Allende, e ouvíamos na vitrola que ele mantinha, em som bem alto, os LPs “Brasil/1.500”, que tem “Ticumana” com Los Jaivas, e a canção “Pátria Amada”, parceria com Geraldo Vandré; o disco da França com a música “Jandira,” e a percussão de Naná Vasconcelos, “Septima Vida”, a faixa “As Laranjas do Vizinho” com a banda de Pablo Milanés, e o LP “Vitória Régia”, com a canção “Maldigo del Alto Cielo”, um duo com Tânia Alves, genial. Perder Paulinho é reviver a morte de Manduka, outra vez.
Quando iniciei o trabalho de pesquisa para o “Dossiê Thiago de Mello” a pedido de Carlos Heitor Cony, entre 2012 e 2013, Paulinho me ajudou na aquisição de livros, ensinou-me o “pulo do gato” da Estante Virtual, e me acompanhou na empreitada de gráfica para copiar em alta resolução fotos históricas da nossa chegada do exílio, de meus pais Thiago & Lourdinha. Em seguida, rodeados de fotografias, documentos, matérias da Revista Manchete e crônicas do jornal “Correio da Manhã”, fomos para o bar Aurora, em Botafogo, e no meio de uma conversa “daquelas”, Paulinho fez o seguinte gesto: me deu a cópia da chave da sua casa na Rua General Osório. – “Toma. Se você precisar, na hora que for, a casa é sua.”
Vou banhar em ouro essa chave, fazer dela uma joia, um tesouro de significado da confraria, nosso Amor de Primos. Foi um erro não termos nos casado, e não ter tido o nosso filho. O que nos conforta é a imortalidade da alma. Com certeza, Paulinho está rodeado de Anjos, seguindo o Caminho da Luz.
Infinita saudade.