CRÔNICAS

O STF e o furto do vosso ventre

Em: 10 de Abril de 2022 Visualizações: 3205
O STF e o furto do vosso ventre

Confesso publicamente: eu roubei. Reincidi inúmeras vezes. Não sei se o crime já prescreveu. Faz tanto tempo. Foi no final do último governo do Álvaro Maia. Tinha eu sete ou oito anos. Sabe aquela antiga feira de Manaus que começava na rua Ferreira Penna, na altura da Silva Ramos? Pois é, esse foi o local do delito. Hoje, autores de pequenos furtos são condenados à prisão por juízes de primeira instância, alguns são absolvidos quando recorrem ao STF, outros não, segundo o repórter Fábio Pescarini (FSP, 7/4).

Ainda bem que na época não havia câmeras como agora no supermercado de Joinville (SC), que flagrou um casal com um pedaço de bacon e um pacote de macarrão. Os dois devolveram tudo, mas apesar disso foram sentenciados a quatro meses de prisão cada um, o que foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Já no STF, onde transitaram na última década mais de 3.100 ações como essa, a ministra Carmen Lúcia invocou o “princípio da insignificância” do furto e anulou a pena.

Ela absolveu também um morador de rua de Ibaté (SP) preso por surrupiar dois sacos de lixo reciclável para trocar por comida. A ministra se baseou na mínima ofensa da conduta de um furto que não causou perigo, dano ou lesão, com reduzido grau de reprovação do comportamento. Ainda bem que o caso não caiu nas mãos do Dias Toffoli, ele manteve condenação de um ano e sete meses de prisão de um homem que furtou uma bermuda de R$ 10,00 e depois foi devolvida à loja. Ou do seu colega Kássio Nunes Marques.

Nomeado por Bolsonaro, o ministro Nunes Marques odeia roubalheira de pequenos furtos, mas não assim os de “colarinho branco”, a quem dá outro tratamento: “rachadinhas”, assalto de pastores aos cofres do MEC e superfaturamento na compra de ônibus escolares ou de vacinas. Ele manteve a condenação de uma mulher presa em flagrante ao furtar em Boa Esperança (MG) 18 barras de chocolate e 89 caixinhas de chicletes avaliados em R$50, para a venda no sinal de trânsito. Tem algo de errado aí, não tem não? Considerar crime ou pecado uma mãe que busca alimentar seus filhos... 

Fruto do furto

A prisão de pobres e pretos, que não usam violência ao realizarem pequenos furtos quase sempre de comida, revela a natureza de classe do Poder Judiciário, que defende com unhas e dentes a propriedade privada, mesmo quando de valor insignificante. Pune para servir de exemplo. Criminaliza a pobreza “de uma pessoa em situação de desespero, que se vê obrigada a furtar”, segundo o presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-SP, Caio Favaretto. Felizmente não fui flagrado na minha ação delituosa.

Foi assim. A gente morava apertado num modesto barraco de zinco no Beco da Bosta, bairro de Aparecida. Éramos, na época, onze irmãs e irmãos, as duas últimas não haviam ainda nascido. Dormíamos em rede, parecia “motor de linha”, uma cruzando sobre a outra, os mijões nas redes de baixo, os outros nas de cima. De madrugada, ainda escuro, nossa mãe me despertou – eu sou o mais velho dos homens - para acompanhá-la à feira. No caminho, confessou que não tinha dinheiro para comprar o almoço:

- Meu filho, olha pro chão, vai olhando pro chão que, às vezes, a gente encontra dinheiro que alguém perdeu. Reza – disse ela, lembrando uma vez que achei uma nota marronzinha de 20 cruzeiros, que tinha o retrato de um milico: ou Deodoro ou Floriano.

Percorremos, então, as barracas dos feirantes até o igarapé, carneirinho, carneirão, olhando pro chão, pro chã, pro chão. Nada. Bateu o desespero. Paramos na banca de peixe. Pequeno, eu não podia ser visto pelo peixeiro. Sem combinarmos nada, além da troca cúmplice e silenciosa de olhar, enquanto ela entretinha o vendedor, deslizei dois tucunarés para dentro da sacola. Eita caldeirada gostosa!

Repetimos outras vezes a operação, sem qualquer comentário da dona Elisa, que não falava sobre o ocorrido. Nem podia. Ela dava aula de catecismo aos sábados, nos ensinava os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai e escritos numa pedra. Entre eles, o oitavo: Não roubar.

Crime deslembrado

Era crime. Mais grave ainda: um pecado. Por isso, contei no confessionário ao padre, rezei ato de contrição, pedi perdão com “o firme propósito de emenda”. Cumpri a penitência: seis ave-marias. Cada vez que reincidia, nova confissão. Tal operação, hoje conhecida como “Arrependimento Onyx Lorenzoni”, homenageia a quem abiscoitou R$200.000,00 reais de uma empreiteira, mas foi inocentado por Sérgio Moro, que justificou: “Ele já pediu desculpas”. A “madre superiora do bolsonarismo” não rezou sequer um pai-nosso.

O direito canônico é um pouco mais flexível do que o direito penal brasileiro, que é punitivista contra o pobre e demasiadamente condescendente com os ricos. Roubar um peixe prejudica apenas um indivíduo - o peixeiro, mas roubar a merenda escolar e o FNDE desgraça toda a sociedade. Tem gente que fica mais chocada com a não punição de pequenos furtos do que com a fila do osso e a fome, desconhecendo o legítimo direito à insurgência. 

Mais de cinquenta anos depois, sentados num banco de um parque onde minha filha brincava, trocava eu confidências com dona Elisa. Mencionei pela primeira vez o nosso segredo: a expropriação dos peixes. Ela não perdeu o rebolado nem a dignidade. Disse que de nada lembrava. Morreu negando. Fiquei calado em cumprimento ao quarto mandamento: honrar pai e mãe.

A memória é mesmo traiçoeira. Eu me pergunto: será que o delito foi mesmo cometido? Aliás, o local do crime deslembrado nem existe mais, o igarapé foi aterrado: hoje é uma ladeira na rua. Nem sei se existiu mesmo essa feira no buraco da Ferreira Pena. Talvez ocorreu algo semelhante ao relato dos evangelistas sobre o milagre da multiplicação de dois peixes para mais de 5 mil pessoas às margens do mar da Galileia.

Espero que Nunes Marques, que é católico, ou seu colega André Mendonça, terrivelmente evangélico, não tentem punir este réu confesso de um crime ocorrido há 68 anos. Ou o fruto do furto não passou de um sonho?

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11 Comentário(s)

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Miguel Antonio Pacheco comentou:
18/04/2022
Um recado curto e grosso sobre o paradigma da desigualdade que nos atravessa.
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Mari Weigert comentou:
18/04/2022
Gosto demais de ler tuas crônicas Bessa. Muita sensibilidade
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Delayne comentou:
18/04/2022
Genial e comovente crônica!
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JOSE CARLOS PINA comentou:
17/04/2022
Existiu sim, ainda lembro que foi lá em uma barraquinha que meu pai começou como feirante, deveria ser por volta de 1960. Depois foi inaugurado o Mercadinho Cunha Melo na João Coelho (hoje Constantino Nery), onde todos os feirantes foram transferidos para lá.. Grande abraço desde Mutum-MG.
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Vera Nilce Cordeiro Correa comentou:
15/04/2022
Ainda nao tinha lido o fim e pensei : "vou dizer pra ele que mãe não mente, ele deve ter sonhado isto" . Vc sonhou sim!
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Maria Sá Xavier comentou:
14/04/2022
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rodrigo martins vasco 777 comentou:
14/04/2022
O autor dessa crônica escreve tão bem que desconfio que ela deva ter umas cem bancas de mestrado no currículo, Verdade, professor, temos dois pesos e duas medidas para muitas coisas nesse país, absurdo total. Queremos todos um mundo mais justo, igualitário e sem qualquer tipo de preconceito e um dia chegaremos lá. Um abraço querido professor.
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Astrid Lima comentou:
12/04/2022
Até quando o Brasil irá viver nessas velocidades diferentes: os que precisam roubar para comer e os que roubam porque imersos no regime de cleptocracia? Antes eu me perguntava (creio que todos nós) como era possível dormir tranquilo roubando dinheiro público, usando a máquina do estado como um caixa eletrônico. Na verdade a cleptomania é tão natural que não cria dilemas éticos: eles dormem o sono dos anjos, indiferentes ao fato de que o furto sistêmico tem um impacto direto no corpo da sociedade, na carne e nos sonhos de milhões de pessoas. O teu taquiprati como sempre serviu para acordar lembranças, uma delas é de quando vivi no Chile. Um país sujeito a fortíssimos terremotos, tão intensos que, como contava uma companheira, eram capazes de alterar a geografia de um lugar em poucos instantes. Moramos numa cidade que não chovia nunca, que havia vívido a sua Belle Époque no boom do salitre, em um certo sentido parecia a cópia ao contrário de Manaus (mas essa é outra história) e ali no terceiro andar de uma pensão vivemos um tremor de magnitude 7.3 da Escala Richter. Foi assustador, por um tempo que pareceu infinito ficamos abraçados a uma coluna de concreto armado que vibrava, sentíamos o barulho da terra que se movia e o terremoto subindo de intensidade. No andar térreo, ao lado da escada ao céu aberto, Don Jorge com a mão aberta e firme, nos pedia de ficarmos parados e calmos. Assim que passou o sismo (que, para nossa sorte havia o epicentro a dezenas e dezenas de quilômetros) ele, sempre calmo e com sinais, nos pediu para olhar para o oceano. Era para ver se estava se formando um tsunami, outro perigo caso o terremoto fosse no Pacífico. Estás te perguntando o que tem a ver essa história com a cleptocracia sistêmica brasileira, pois bem, chego lá. Apesar do terremoto ter sido intenso, não provocou nem vítimas e muito menos desabamentos de prédios. O Chile, apesar de estar entre os países no planeta com maior incidência sismica, registra poucas vítimas ou danos físicos. Isso porque as construções são feitas seguindo regras rigorosas anti-sismicas e, jurava Don Jorge, era impossível que um construtor ousasse violar aquelas regras ou usasse material de construção de péssima qualidade. A corrupção não era aceitada. Ainda meio desconfiada dessa qualidade chilena, resolvemos fazer um passeio no sul do Perú. Ao retorno quase fomos assaltados por um soldado peruano na fronteira que tentou aplicar um golpe sobre alguns souvenires em troca de uma propina. Não deu certo: reagi, ameacei chamar o comandante dele. Prosseguimos de retorno atraversando a fronteira com o motorista que nos dizia quanto era perigoso sair da estrada porque o território era minado (outra história) e passando pela alfândega chilena todos os objetos artesanais foram novamente minuciosamente verificados. Riscavam as belíssimas esculturas de argila produto do artesanato peruano procurando traços de contrabando ou drogas e em nenhum momento houve a menor dúvida de que os carabineiros chilenos tivessem outra intenção fora do próprio trabalho. Ficamos impressionados com a diferença entre mundos tão próximos. Naquele momento pensei a toda as vezes que um policial brasileiro comportou-se fora da lei, a comparação era esmagadora. "O Índice de Percepção da Corrupção é o principal indicador de corrupção do mundo. Produzido pela Transparência Internacional desde 1995, ele avalia 180 países e territórios e os atribui notas em uma escala entre 0 e 100. Quanto maior a nota, maior é a percepção de integridade do país." O Chile continua sendo o país da América do Sul que, contrariando a tendência, tem a maior percepção de integridade. Em 2021 teve a nota 67, o Brasil 38 e o Perú 36 (a Dinamarca como sempre nos primeiros lugares, 88). Não sei como isso seja possível, afinal as trajetórias históricas não são tão diferentes, mas é. E ainda bem que os irmãos chilenos existem, porque podem servir de ideal, de meta a ser alcançada pelo Brasil. E nos dá a esperança de que tudo é possível, até que a corrupção sistêmica brasileira possa um dia ser abatida. No mais, a dona Maria Alice também caminhava olhando para o chão - e tinha sorte, quase sempre voltava para casa com uma moedinha, uma bijouteria. Nada que preenchesse a fome mas nos dava a esperança de que a estrada, sendo percorrida, nos traria surpresas. https://transparenciainternacional.org.br/ipc/
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Susana Grillo comentou:
11/04/2022
Bessa, como disse o Dalmo Dallari, "nossa legalidade injusta" marca as decisões das altas cortes.. Mas uma faceta da desigualdade . Um grande abraço,
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Luiz Pucú comentou:
09/04/2022
Tá com saudade Pajé!! Eita cronista paidegua!!!!!!
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Ana Silva comentou:
09/04/2022
Muito boa! Hahaha deliciosa como sempre. No x da questão, eita cronista bom.
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