“Sabemos que os mortos vão se juntar aos espíritos de nossos antepassados
lá do outro lado do céu, onde a caça é abundante e as festas não acabam”.
(Davi Kopenawa. A Queda do Céu. 2010)
Era o Dia da Criança e da padroeira do Brasil. Um dia de festas. No meio da floresta, alheios a tudo, dois meninos brincam como de costume nadando alegremente como peixes no rio Uraricoera. Silêncio sobre suas identidades. Os Yanomami não gostam de ouvir o próprio nome, nem o apelido de criança. Apenas quando ausentes se pode nomeá-los. Então, pedimos licença a Davi Kopenawa para apelidar o menino de 5 anos de Mamoki Prei (Olhos Grandes) e o outro, de 7 anos, de Nakitao (Fala Alto). Os dois primos estão prestes a ser devorados por dragões que cospem fogo como nos desenhos animados.
Mas infelizmente não se trata de ficção. Ali perto, máquinas infernais – as dragas e os dragões do garimpo ilegal - emporcalham o rio e “sugam terra, sugam água, comem tudo atrás do ouro”. Vomitam mercúrio. A enorme mangueira espiralada da draga, esticada como uma cobra grande, se prepara para dar o bote. Escancara sua boca voraz e engole as duas crianças, que são tragadas, cuspidas e arrastadas já mortas pela correnteza. No dia seguinte, um corpo infantil flutua. O outro, dias depois, informou à Rede TVT o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Dario Kopenawa.
Não foi mero acidente, mas um crime cometido pelos Napë, os forasteiros inimigos que pertencem ao “povo da mercadoria”. Cerca de 20 mil garimpeiros invadiram o território Yanomami e lá se instalaram protegidos e incentivados pelo governo Bolsonaro, cujo projeto genocida de extermínio étnico vem sendo alardeado desde a campanha eleitoral, com a promessa de abrir os territórios indígenas para a mineração. São seus cúmplices os que o elegeram.
“Genocíndio”
Tampouco foi um fato isolado. Os Yanomami tiveram seu território homologado em 1992, mas muitas das 300 comunidades, que abrigam 27 mil pessoas, continuam sofrendo invasões. Em maio deste ano, uma horda de garimpeiros atacou a aldeia na região Palimiú, em Roraima. Atiraram contra seus moradores. O protesto internacional veio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) que, em nota oficial, condenou a morte de duas crianças indígenas, uma de 1 ano e a outra de 5 anos, além de pessoas feridas. Até parece versão moderna de Herodes.
Um mês depois, oito garimpeiros armados e encapuzados ocuparam a Estação Ecológica de Maracá que dá acesso ao território Yanomami e fizeram três reféns. Outros afundaram uma canoa com crianças e jovens indígenas. No mês seguinte, Edgar Yanomami, de 25 anos, morreu atropelado por um avião de garimpeiros na comunidade Homoxi.
Além disso, a presença de garimpeiros gerou aumento do número de casos de pessoas contaminadas pela corona vírus. Em apenas três meses, no ano passado, as infecções avançaram 250%. Entre outros, dez bebés Yanomami morreram com sintomas de Covid-19, conforme o presidente do Conselho de Saúde Indígena Yanomami e Ye´kwana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami. Se ele tivesse sido chamado a depor na CPI da Covid, confirmaria essa forma de genocídio. Mas os índios não foram ouvidos.
A coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, criticou a decisão dos senadores de retirar do relatório final a acusação de genocídio indígena contra Bolsonaro, impedindo seu indiciamento por esse crime. Mas o editorial do Globo e o articulista da Folha de SP, Demétrio Magnoli, discordaram da APIB e promoveram discussão que, para muitos, é bizantina, pois “há uma dimensão que soa a desconversa”.
Magnolicídio
Em “Genocídio da linguagem” (FSP 23/10), o geógrafo Demétrio Magnoli conclui do alto de suas tamancas que “Bolsonaro não cometeu genocídio”, porque “nos sistemas democráticos, governos são capazes de cometer crimes hediondos, mas nada que se aproxime de genocídio”.
- “O conceito de genocídio envolve o planejamento deliberado de extermínio completo (o grifo é nosso) de um grupo humano” – ensina Magnoli.
Ficamos assim combinados: Bolsonaro cometeu “crimes hediondos”, mas não genocídio, para isso temos que aguardar que o extermínio seja completo, inclusive porque – escreve Demétrio - “nossos indígenas foram vacinados em ritmo mais rápido do que a média da população”. O “Nossos indígenas” é ótimo.
O “magnolicídio” fica claro com a leitura de outro articulista da FSP, Sérgio Rodrigues, autor de “Viva a língua brasileira”, para quem “em geral, mesmo quem defende a impropriedade de aplicar a palavra genocida a Bolsonaro reconhece que sua conduta na pandemia produziu montanhas de cadáveres”:
- “Que perfil étnico-social precisa ter as vítimas de um assassinato em massa para que se caracterize genocídio? Matar aleatoriamente pode? O número de cadáveres – gigantesco, muito grande ou apenas grande – faz diferença? A partir de que número o alarme dispara? Qual é a jurisprudência internacional?”.
Sérgio Rodrigues deixa essas questões para os entendidos e se concentra na “linguagem comum que merece todo o respeito” porque é nela “que a vida pulsa, palavras prosperam ou definham, sentidos se reinventam. Nesse âmbito, já era – Bolsonaro é genocida, ponto”. Embora reconhecendo o sentido “juridicamente controverso”, conclui que “Bolsonaro e genocida viraram palavras grudadas, pão e manteiga”.
Um filho seu
A deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), a única voz indígena no Parlamento, condenou o genocídio e os assassinatos de crianças Yanomami, que estão bebendo água suja contaminada pelo mercúrio e enfrentam desnutrição com a escassez de alimentos: “O garimpo é crime e, mesmo assim, não há uma resposta à altura por parte do governo brasileiro que, ao contrário, encoraja invasões e conflitos armados e ainda tenta mudar os direitos constitucionais que garantem proteção aos territórios indígenas”.
No livro “A Queda do Céu” escrito com Bruce Albert, Davi Kopenawa, lá do sopé da Montanha do Vento (Watoriki) onde reside, denunciou dezenas de vezes o garimpo, as queimadas, o desmatamento e a degradação da floresta:
- “Foi Omama que criou a terra e a floresta, o vento que agita suas folhas e os rios cujas águas bebemos, foi ele que nos deu a vida e nos fez muitos. Foi ele que criou os xapiri para nos proteger das doenças e da morte. A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa”.
- Davi e seu filho Dario – duas lideranças reconhecidas dentro e fora do Brasil – exigem a punição dos culpados por esses crimes.
Mamoki Prei (Olhos Grandes) e Nakitao (Fala Alto), filhos enjeitados do Brasil, tinham idades de duas netas minhas, o que me fez lembrar o assassinato de Edson Luís, em 1968. No cortejo fúnebre, o nosso grito de indignação com as sílabas cadenciadas:
- Ma-ta-ram um es-tu-dan-te e se fos-se um fi-lho seu?
Das janelas dos apartamentos e dos escritórios nos bairros da Glória, Flamengo e Botafogo, as pessoas respondiam com acenos solidários.
Agora gritamos: Mataram crianças Yanomami e se fossem filhos seus? Até quando a sociedade brasileira vai tolerar a ação “genocíndia” das milícias da bateia?
Créditos: fotos de abertura de Cláudia Andujar.
Sérgio Rodrigues: Por que Bolsonaro é genocida. FSP.22/10/2021
Demétrio Magnoli. Genocídio da Linguagem. FSP. 23/10/2021 Ver também: http://www.taquiprati.com.br/cronica/1067-a-katia-abreu-de-cuecas-