“Se alguém pudesse escrever um livro sobre ética que fosse realmente um livro sobre
ética, este livro provocaria uma explosão e destruiria todos os outros livros do mundo".
(Ludwig Wittgenstein, Conferência sobre a Ética, 1929).
Na década de 1960, a nossa professora de filosofia no curso clássico do Colégio Estadual do Amazonas, Lindalva Mota, apelidada de “Por-conseguinte-então”, nunca nos falou do filósofo e linguista austríaco Ludwig Wittgenstein. Só muitos anos depois encontrei uma menção a ele numa entrevista do escritor argentino Júlio Cortázar que, impactado com a leitura da “Conferência sobre a Ética”, homenageou seu autor batizando um de seus gatos com o nome de Wittgeinstein. Esse “gato” pode agora nos ajudar a refletir sobre a burguesia de igarapé que furou a fila da vacina e ainda teve a desfaçatez de publicar fotos nas redes sociais para ostentar o “privilégio”.
Por burguesia de igarapé entendemos aqui a fração dominante da classe empresarial aliada a famílias de políticos profissionais que tomaram de assalto o Estado, privatizando-o com a troca de favores e a prática de vários “ismos”: clientelismo, compadrismo, nepotismo, afilhadismo. Dessa forma, em vez de gerir a coisa pública, o Estado atende interesses particulares em detrimento da maioria da população. Embora o conceito seja originário do Amazonas, ele se estende a outros estados do Brasil e até ao exterior, como podemos verificar nos fatos relacionados à aplicação da vacina contra o coronavirus.
Farinha pouca
Nenhum fato, por si só, é bom ou mau no sentido ético – diz Wittgenstein. Fatos são fatos e não Ética. Por isso, uma mera descrição dos fatos não pode ser considerada por si só uma proposição ética. “É o pensamento que faz com que um determinado fato seja considerado bom ou mal”.
E qual é o discurso que traduz o pensamento tanto dos furadores de fila como daqueles por eles prejudicados? A "igarapé bourgeoisie" orienta sua conduta pelo princípio “Let the devil take the hindmost”, aprendido em Miami, onde costumam passar suas férias, cuja versão em português equivale à “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Ou “Valha-me Deus, primeiro os meus, depois os teus”. O resto que se lasque.
Foi o que aconteceu nesta terça-feira (19) no primeiro dia da campanha de vacinação em Manaus, que vive uma tragédia com inexistência de leitos hospitalares, gente morrendo asfixiada por falta de oxigênio e profissionais da saúde exauridos, alguns deles morrendo, os sobreviventes enfrentando o risco de contrair o coronavirus. Eles, que atuam na linha de frente, foram passados para trás pela turma da “vacina pouca, minha imunização primeiro”, começando por duas irmãs gêmeas, de 24 anos, que acabam de se formar em medicina na universidade particular de propriedade de sua família.
A matriz do pensamento das duas espertinhas foi “America First” e “O Brasil acima de tudo”. Elas, que se consideram “o Brasil”, ficaram tão orgulhosas com o fato e tão seguras da impunidade que, exultantes, comemoraram postando fotos nas redes sociais. Para evitar qualquer suspeita, o prefeito de Manaus nomeou as duas para cargos comissionados na Prefeitura, uma na véspera, a outra no dia do início da vacinação. Afinal, para que serve o poder?
As gêmeas não foram as únicas. David Dallas, filho do deputado Wanderley Dallas (Solidariedade vixe, vixe) também postou no Instagram imagens do momento em que era vacinado. Ele também foi nomeado para a Secretaria Municipal de Saúde. Nenhum dos três atuaram na linha de frente do combate contra a covid nos hospitais de referência para casos graves, onde a exposição ao vírus é maior.
Meu pirão primeiro
O prefeito David Almeida (Avante, vixe vixe) informou que teria recebido apenas metade da dose prevista, insuficiente para imunizar os 35 mil profissionais de saúde que atuam dentro das UTIs das redes pública e privada. No entanto, o “sumiço” de vacinas que ninguém diz onde foram parar” pode estar relacionado à lista de fura-filas, que “é muito maior do que imaginamos” - denunciou o suplente de vereador delegado João Tayah (PT).
Diante do escândalo que ganhou espaço na mídia nacional e até internacional, o prefeito assinou portaria, não para impedir que a fila seja furada, mas para proibir o registro e divulgação de imagens nas salas de vacinação. O Ministério Público do Amazonas abriu investigação para apurar a suspeita de desvio de vacinas. O presidente do Tribunal de Contas do Amazonas (TCE-AM), conselheiro Mario de Mello, solicitou do Governo e da Prefeitura os critérios usados e a lista nominal das pessoas já imunizadas contra a Covid-19.
A lista vazou nessa sexta (22) com nomes de autoridades e empresários, que confundiram “grupo de risco” com “grupo de ricos”. A fina flor da transgressão está lá. Entre eles, o empresário Bento Martins, dono de empresa que fornece refeições e lanches ao HPS da Criança num contrato cujo valor mensal é R$ 164.640,00. Foi lá que ele e sua mulher Jane Soares Pereira, proprietária da JSP Serviço de Alimentação e Limpeza, receberam a vacina. No grupo de atendimento que identifica a função profissional (médico, enfermeiro, nutricionista, fisioterapeuta, etc), ele e 62 pessoas aparecem como “outros” e ela, como “cozinheira”.
Vários secretários do prefeito David Almeida estão entre os primeiros vacinados, entre eles a secretária municipal de Saúde, Shadia Fraxe e o secretário municipal de Limpeza Pública de Manaus, Sabá Reis (PR vixe vixe), candidato derrotado a deputado estadual nas últimas eleições, que de forma prepotente, agrediu verbalmente servidoras da Unidade Básica de Saúde (UBS) Leonor de Freitas, no bairro da Compensa, tumultuando a fila que lá se encontrava.
O sentido da vida
Já mais de 48 horas se passaram sem vacinação em Manaus, por conta da suspensão motivada pelas trapaças e falta de planejamento. Os boletins diários da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM) informam que é crescente o número de novos casos diagnosticados e de óbitos, entre eles a da sua diretora-presidente Rosemary Pinto, que morreu nesta sexta-feira.
No entanto, a furação de fila não aconteceu apenas em Manaus. Em muitas cidades de oito Estados do Brasil, os prefeitos e suas digníssimas “conges” foram os primeiros, um deles justificou dizendo que era para encorajar aqueles que têm medo de virar jacaré. O outro vacinou a esposa, porque “é a mulher da minha vida”. É interessante observar que a burguesia de igarapé é justamente aquela apoiadora de Bolsonaro, que não usa máscaras, se aglomera em festas e debochou da vacina contra a “gripezinha”.
As falcatruas são tantas e a impunidade é tamanha, que acabam sendo naturalizadas, o que requer uma vacina contra a sem-vergonhice. Na Espanha, ocorreram alguns casos, mas lá, é verdade, pelo menos em um deles o responsável já foi punido.
No entanto, temos contraexemplos que nos mostram o outro Brasil e nos ajudam a combater a desesperança. Muita gente solidária e generosa atuando em comunidades carentes. Em Rio das Flores (RJ), dona Hilda Cândida da Silva, de 108 anos – faz 109 no dia 2 de março - passa a maior parte do tempo sentada na varanda da casa onde mora. Ela abriu mão da vacina:
- “Estou quase partindo. Já vivi tanta coisa nessa vida, com quase 109 anos, que prefiro dar a vacina para alguém mais novo, que ainda pode viver mais do que eu” - afirmou.
Embora nem desconfie da existência do gato de Júlio Cortázar, a linda centenária compreendeu – para citar Wittgenstein – “o sentido da vida, a maneira correta de viver, aquilo que tem valor, que tem realmente importância, que torna a vida digna de ser vivida”. Com o seu gesto, ela provoca uma explosão capaz de destruir todos os livros do mundo.
P.S. - No meio da pandemia e das perdas de tantas pessoas queridas, uma alegria nesta sexta-feira, 22 de janeiro: a defesa de tese de doutorado de Andrea de Lima Ribeiro Sales: A escola para índios no Rio de Janeiro: o que dizem os anos de 1845 a 1875. Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Banca: Aloísio Jorge de Jesus Monteiro (orientador), Amparo Villa Cupolillo e Ramofly Bicalho dos Santos (UFRRJ), Luciana Pires Alves (UERJ) E José R. Bessa Freire (Uerj/Unirio).