De saída, vou logo avisando: o que sei sobre a eleição nos Estados Unidos é apenas aquilo que vejo no noticiário televisivo e na mídia impressa. Não consigo explicar a apuração que foi mais demorada do que preparação de maniçoba. Não entendo bulhufas de política internacional. Mas conheço o bairro de Aparecida. Por isso, se o leitor me permite, arrisco aqui alguns palpites sobre a vitória de Joe Biden, graças à lição que o Partido Democrata aprendeu com Bobby Kennedy na sua passagem por Manaus, em novembro de 1965. Será?
Os jornais locais documentaram tudo desde a chegada do senador americano no aeroporto de Ponta Pelada, onde foi recebido pelo governador Arthur Reis e por um Comitê de Recepção Oficial, do qual faziam parte seis estudantes do Colégio Estadual do Amazonas (CEA), vestidos com a farda de gala, botões dourados, gorro branco de algodão e espadim de cadete. Entre eles, escolhido por ser um dos melhores alunos, Marcus Barros, que viria a ser reitor da UFAM e Nildson Cruz, hoje desembargador no Rio de Janeiro.
- This is the guy - exclamou Bob Kennedy ao olhar a reluzente fivela do cinturão do Marcus Barros com o símbolo do CEA: o castelo de bronze polido na noite anterior com kaol por sua mãe, dona Vênus. O gringo, encantado com aquele jovem – ele era mesmo “o cara” - convidou-o, num gesto populista, a beber caldo de cana com pão doce vendidos num carrinho de mão na praça do Hotel Amazonas. Cercados, evidentemente, por seguranças.
A terrible gossip
Depois desse teste de popularidade, o senador americano convidou Marcus a se integrar a algumas atividades de sua Comitiva: banho de cachoeira no Tarumã e ida à Manacapuru a convite do vigário da cidade, o padre redentorista Carlos Steiner, seu conterrâneo, natural de Illinois, Chicago. Foi aí, em conversa reservada, que Marcus relatou as ocorrências no pleito do Grêmio Estudantil Plácido Serrano, no inglês fluente de aluno de Miss Bell, destacando os “loosers” que não sabem perder eleições.
Desconfio que, para quem não conhece a trajetória de Bob Kennedy, fica difícil acreditar no interesse de um homem de sua estatura pelo movimento estudantil em Manaus ou pelas brincadeiras das crianças de Manacapuru. A verdade é que aconteceu. E estão aí meu amigo Marcus e as fotos que não me deixam mentir. Ou deixam? Mais inacreditável ainda é Trump e Bolsonaro, paspalhões iletrados, terem sido eleitos presidentes de dois grandes países. Ou não?
Bob Kennedy era “a terrible gossip”, um fofoqueiro de primeira. No bom sentido. Fazia muitas perguntas. Sua mulher Ethel, que gostou do tacacá, queria saber se Marcus havia se alimentado com o leite da Aliança para o Progresso “donated by the people of the United States” para a merenda escolar e se como acólito da igreja de São Geraldo havia ajudado missa celebrada pelo vigário americano, father Brinkmann, conhecido como padre Pigmeu. Mas o tema central foi mesmo a eleição estudantil.
Eram dois candidatos à presidência do grêmio: Francisco Antônio Marques da Cunha e um cara que cairia no ostracismo apelidado de “Chiclete de Onça” (Jaguar’s Chewing Gum, do you know, mister?) – explicou Marcus. As urnas dos cursos Ginasial, Clássico e Científico, exceto duas turmas do turno da noite, deram esmagadora vitória ao Chico Cunha.
Alegando fraude, sem provas, o perdedor se proclamou vencedor e procurou as três emissoras locais - Difusora, Rio-Mar e Baré, - mas a outra chapa já havia se adiantado, desmontando as mentiras do “Chiclete de Onça”, que não foram transmitidas por nenhuma delas. O segredo havia sido não deixar divulgar a mentira. Bobby Kennedy anotou tudo no seu caderninho e guardou o exemplar de “O Grito”, órgão do grêmio estudantil, que noticiou a cerimônia de posse de Chico Cunha na presença do diretor do CEA, Afonso Nina.
A sad day
Baseado na experiência estudantil de Manaus, sessenta anos depois o Partido Democrata preveniu os canais de TV sobre a metralhadora verborrágica de mentiras que seriam disparadas pelo presidente Donald Trump nesta quinta-feira (5) se recusando a assumir o papel de looser.
As emissoras americanas, ao contrário das rádios amazonenses, abriram seus microfones, mas as três maiores – ABC, CBS e NBC - interromperam no primeiro minuto o discurso ao vivo do presidente, justificando que ele divulgava informações falsas. A CNN e até mesmo um canal pro-Trump como a FOX News - transmitiram tudo, mas após checar os fatos informaram que não correspondiam à verdade. “It’s a sad day for the USA”- comentou a CNN Internacional.
Efetivamente foi um dia triste. Nem o “Chiclete de Onça” ficou tão desacreditado quanto o presidente da maior potência militar e econômica da história da humanidade, reduzida a uma republiqueta de bananas. Conduta tão desprezível e abjeta como essa, nem mesmo em eleições de grêmios estudantis.
Por que um presidente-candidato, mentiroso contumaz, em fala desesperada dentro da Casa Branca, diante do Brasão e da bandeira nacional, envergonha o seu país perante o mundo e usa o poder de presidente para proteger sua reeleição atacando o mesmo sistema que o elegeu há quatro anos?
Eis o que queríamos mostrar com a documentação que se encontra hoje no Arquivo da Família Kennedy disponível no site da Florida International University. Será que Joe Biden, inspirado no dossiê, escolheu a mesma estratégia que no caso do Amazonas levou o “Chiclete de Onça” a reconhecer sua derrota? É um excelente precedente. Afinal não há muita diferença entre uma eleição estudantil no Brasil e as eleições americanas, embora a primeira seja mais sofisticada, mais rápida e com menos baixaria.
Os comentaristas internacionais, aqueles que fumam cachimbo, garantem que a desinformação propagada por Trump, seus filhos e aliados em número cada vez mais reduzido, serve de combustível para que ativistas de extrema-direita, hordas fascistas e supremacistas brancos armados do grupo Proud Boys apelem para a violência, o que permitiria melar a eleição. Na minha humilde opinião, isso não ocorrerá. A democracia americana é suficientemente forte para não sucumbir. Lá, é preciso muito mais do que um soldado, um cabo e um jeep para fechar o Supremo Tribunal Federal.
Old woman’s fart
Não podemos esquecer que quem derrotou o poderoso exército americano na guerra do Vietnã foram os vietcongs, mas não conseguiriam realizar tal façanha se não tivessem como aliados o lado sadio do Estados Unidos, que levou às ruas, em contínuas jornadas, milhões de manifestantes, entre eles Jane Fonda, Joan Baez. Essa América que admiramos não permitirá os atentados contra a democracia.
Diante disso, a reação truculenta de Trump, homofóbico e racista, não passa de um “peido de velha”, denominação dada na década de 1950 a umas fitinhas de papel com uma quantidade bem pequena de pólvora em formato de unha colada uma ao lado da outra. Nas festas juninas, se acendia com o fósforo uma das extremidades e ela ia estalando em sequência à medida que o fogo avançava. Ou então se esfregava na calçada o que provocava estalos em série. Parecia com os rolinhos de papel cor de rosa dos revólveres de espoleta. Deixava no ar uma pequena nuvem de fumaça com olor de enxofre, repolho cozido, ovo podre e ácido butanoico.
O “peido de velha” era uma espécie de fogo de artifício inofensivo. Eis o que eu queria dizer: as fanfarronadas de Donald Trump, em que pese as milícias armadas, não passam de um peido-de velho. Faz barulho, fede, mas passa logo. O pesadelo, que acabou nos Estados Unidos, desce a ladeira no Brasil, onde um Trump de igarapé procura imitar sua caricatura original. A “esperança” na vitória de Trump, manifestada por Bolsonaro, morreu. O mundo respira aliviado. O Senado americano vai mesmo ser presidido por Kamala Harris, representante da inteligência, da beleza e da civilização. E o Brasil?