CRÔNICAS

Cutucando onça com vara curta: os índios e as políticas culturais

Em: 06 de Setembro de 2020 Visualizações: 8392
Cutucando onça com vara curta: os índios e as políticas culturais

- Quais são os instrumentos mais usados pelos indígenas para tocar música?

Essa foi uma das perguntas feita por uma aluna do 3º ano do ensino fundamental do Instituto GayLussac de Niterói numa aula que dei nesta quarta-feira (2) via zoom a convite de uma amiga, a professora Andrea Ferrassoli. Lá estavam reunidas três turmas num total de 76 alunos de 8 e 9 anos, que me bombardearam com perguntas inteligentes:

- Como os índios se movimentam pela floresta sem se perder? Quando ficam doentes como se tratam? Você sabe como eles estão enfrentando a epidemia do coronavirus? Como as crianças brincam nas aldeias? 

Diante dessas e de outras questões, era preciso desconstruir antes a ideia de “índio genérico”. Cada povo tem uma língua específica, brinca e trata doença de forma diferenciada e tem seus próprios instrumentos musicais. Posto que leite de vaca não mata bezerro, decidi contar às crianças o que vivi na UERJ e na UNIRIO, quando apresentei a meus alunos de pedagogia o projeto Ponte entre Povos, que contou com a participação dos Palikur, Tiriyó, Kaxuyana, Aparai e Wayana, aldeados no Amapá, além de músicos de formação erudita de Macapá e da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo.

Quem idealizou o projeto foi a cantora e musicóloga Marlui Miranda, com mais de duas décadas de pesquisa da música de vários povos indígenas. Teve o apoio do SESC-SP e do Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA) no governo de João Alberto Capiberibe para levar ao Platô da Guiana a Orquestra de Câmara Primavera, regida pelo romeno Lucian Rogulski, primeiro violinista da Orquestra Sinfônica de SP, que tocou a serenata noturna de Mozart para os índios e depois ouviu deles o som de seus instrumentos musicais.

Etno-ópera

O projeto foi executado em etapas: primeiro produziram e gravaram três CDs: 1) o Kiyeminaki (recordação) com músicas Palikur, 2) o Tumukumaki Yoremuru com repertório dos Wayana, Tiriyó, Aparai e Kaxuyana e 3) o CD – Ponte entre Povos, que reúne músicas clássicas e composições em que os instrumentos da orquestra – violinos, flautas transversais, violas, violoncelo, trompa e outros – incorporaram cantos e instrumentos indígenas: cascos de jaboti, clarinetes de bambu, maracás de cuia, chocalhos de sementes, flautas de osso de veado e outras.

Depois, foi editado o livro Ponte entre Povos organizado por Marluí Miranda com esplêndidas fotos dos instrumentos e das performances indígenas e as letras das músicas grafadas nas línguas originais traduzidas ao português e ao francês falados na área de fronteira com a Guiana. A última etapa foi a do espetáculo da etno-ópera encenado pelos índios, em 2005, em dois grandes teatros do eixo centro-sul do Brasil como informa a antropóloga Artionka Capiberibe no artigo “Não cutuque a cultura com vara curta e o Projeto Ponte entre Povos”.

Nas minhas aulas, exibo sempre o livro com os CDs. A experiência consiste em fazer os alunos de pedagogia ouvirem, em primeiro lugar, as músicas indígenas que – como esclarece Marluí - delimitam os vários momentos do cotidiano, seja uma música de acalanto, de ninar, de cantar na rede, uma cantiga de amigo, de caça, de fazer roça, de furar a orelha, o nariz ou o beiço, ou cantigas de atrair o amor ou chorar sua perda, do contato com os brancos. Os alunos universitários, em geral, estranham. Um deles resumiu o ponto de vista da maioria:

- Desculpa, professor, apesar de toda a simpatia com os índios, isso que ouvimos não é música, parece mais um barulho bagunçado.

Ponte sonora

Passo, então, a um segundo momento em que escutamos a orquestra tocar Mozart.

- Ah, isso é música – todos concordam.

Vem em seguida a grand finale, quando os faço ouvir a pequena serenata noturna, mas desta vez enriquecida com a fusão dos sons dos instrumentos indígenas, em situações e arranjos novos, num encontro da música clássica indígena com a música clássica europeia. Aí todo mundo acha lindo aquilo que antes rejeitaram, porque agora o som do casco de jaboti, dos maracás, dos chocalhos, dos clarinetes de bambu e das flautas de osso de veado está num contexto que lhes é familiar e não soa estranho.

As gravações foram realizadas fora das aldeias, num estúdio móvel e em ambiente descontraído, no qual os dois grupos de músicos, formados por 28 não índios e 10 Palikur, estavam sentados, de frente um para o outro, ambos vestidos cerimonialmente, como esclarece Marluí Miranda. Os não indígenas haviam aprendido a tocar os instrumentos dos índios e usavam os seus violinos tocando o arco com bastante breu na ponta para imitar o som do casco do jaboti. Ela diz que há algo de comum entre um violino e um casco de tracajá: ambos soam por fricção, o violino usa o breu e o purupuru ruweny a cera de abelha.

A experiência mostra que as músicas indígenas seguem regras, às vezes de estrutura complexa, para compreendê-las – conclui Marlui Miranda -  é preciso abrir os ouvidos a esta “paisagem sonora”. Para Danilo Miranda, diretor regional do SESC-SP, “a preservação do acervo cultural indígena é uma necessidade nacional, embora padeça de grande indiferença e sofra severas ameaças por parte de determinados segmentos sociais que insistem na intolerância e na desatenção ao bem-comum [...] esse encanto, essa invocação sonora não pode desaparecer sob pena de tornarmos o Brasil e a América mais sentimentalmente triste e espiritualmente pobres”.

O belo não pressentido

No texto de apresentação do projeto, o então governador João Capiberibe e a deputada Janete Capiberibe destacam que “o melhor que se podia fazer pela sociedade era estabelecer o diálogo de saberes entre as comunidades não-índias e os povos indígenas”, numa ponte de mão dupla com a troca de musicalidades diferentes “que valoriza aquilo que por muito tempo foi deixado de lado, mas que, entretanto, carrega o belo não pressentido”.

Nas aulas dadas nas duas universidades, levo os CDs. Mas para as crianças, através do zoom, paguei o mico de entoar a serenata de Mozart, da mesma forma que no dia seguinte repeti no evento do Gedaicast em mesa compartilhada com Márcia Kambeba e Daniel Munduruku. O GEDAI – Grupo de Estudos Mediações e Discurso na Amazônia – é coordenado pela doutora Ivânia Neves, professora do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, com quem participo do projeto “Literaturas Indígenas na Pan-Amazônia”.

E se derem brecha, nesse domingo (6), às 17 horas, voltarei a pagar mico, cantando e contando a mesma história no 5º Encontro dos Estados Gerais da Cultura organizado pelo cineasta Silvio Tendler. Afinal, a gente vaive de laive em laive. E como salienta a antropóloga Lux Vida, “ultrapassar fronteiras sonoras supostamente intransponíveis” evidencia que a música consegue unir a todos enquanto habitantes do mesmo universo

P.S.1 Referências: 1) Marluí Miranda. Ponte entre Povos. São Paulo. SESC. 2005.(o livro traz com ele os três CDs) 2) Manuela Carneiro da Cunha e Pedro Cesarino (orgs): Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo. Cultura Acadêmica. 2014 (especialmente o artigo citado acima de Artionka Capiberibe.

P.S, 2 - A palestra organizada pelos Estados Gerais da Cultura sobre "o lugar dos povos indígenas nas politicas culturais do Brasil" parece que incomodou. Hordas bolsonaristas, que parecem incapazes de discutir e argumentar, invadiram a sala do zoom, aos berros, projetaram fotos de Bolsonaro com arma na mão, fotos de Regina Duarte e gritavam "mito mito mito". Nada disseram sobre as rachadinhas, nem por que o Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle Bolsonaro e silenciaram também sobre a loja de chocolate de Flávio Bolsonaro. A palestra foi adiada para o início de outubro, mas naquele momento saímos da sala do zoom para o canal da ABI no you tube, onde fiz um breve resumo da palestra, tendo antes e depois ouvidos canções de Sabah Moraes.  https://www.youtube.com/watch?v=XQB10d_u8Q0

Obs. Menina, nem te conto, pois não é que o livro “Cascudinho – o Peixe contador de histórias”, (Editora do Brasil) ilustrado por Luciana Grether e escrito por esse locutor que vos fala, foi exibido domingo passado no programa do Faustão?

 

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16 Comentário(s)

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Marlene Ribeiro comentou:
11/09/2020
Apoio integralmente todas as ações que venham a defender os indígenas de todo o país que estão sendo ameaçados de um lado pela perseguição que sofrem para entregar suas áreas para o agronegócio e de outro porque são frágeis ao contágio da Covid-19... Defendo e defenderei sempre a causa indígena!
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Leo Ribeiro comentou:
11/09/2020
Lendo as suas crónicas e sempre aprendendo. Esse livro com as partituras e os CDs deve ser lindo.
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Valda da Costa Nunes comentou:
07/09/2020
Parabéns à Taquiprati e ao Prof. Dr. José de Ribamar Bessa. Muito bom esse projeto com a aproximação das músicas. A música, tem esse poder de aproximação dos povos. Aproxima porque suas notas, sejam ancestrais ou contemporâneas, produziu e continua a produzir vibrações capazes de derrubar muros e fronteiras endurecidas nos nossos corpos, por preconceitos étnico-raciais. Realmente precisamos abrir os nossos ouvidos para a importância dessas preciosas sonoridades, patrimônio cultural indígena brasileiro. Gostaria de ter acesso a esses CDs.
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Beleni Saléte Grando comentou:
06/09/2020
Sempre instigante e apaixonante as contribuições do Mestre Bessa Freire e do Taquiprati!
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Artionka Capiberibe comentou:
06/09/2020
Que presente delicioso ser mencionada em um texto do José Bessa, ainda mais quando esse texto fala de um projeto do qual sou muito orgulhosa de ter tido a sorte de poder participar. Tenho um carinho enorme pelo Ponte entre Povos. Além de ter sido uma experiência artística transgressora, como mostra bem o Bessa, foi um projeto que conseguiu reunir diferentes atores da sociedade em torno do belo e da valorização da nossa história, daquilo que faz o Brasil um país interessante, e isso também está no texto que me chegou como um presente. Muito obrigada por fazer meu dia mais feliz, Bessa.
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Renato Ross comentou:
06/09/2020
Aprecio demais as músicas dela. Pena que não consigo contato com ela para adquirir CDs ou DVDs.
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Loretta Emiri (via FB) comentou:
06/09/2020
Renato, quem sabe o professor José Bessa possa sugerir para você como adquirir CDs ou DVDs da Marlui Miranda.
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Ana Silva comentou:
06/09/2020
Excelente cutucada, Bessa! Que bonitinho o interesse das crianças sobre os indígenas. Parabéns!
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Ademario Ribeiro comentou:
06/09/2020
Estimado Professor Bessa, de tua fonte bela e sempre renovada - saiu essa crônica com cada cutucada sobre pontes e entremeios a nos fortalecerem que a aproximação (com e do outro) se for dialogada - as diferenças não serão indiferenças - aí sim, seremos cutucados pela al-te-rida-de! Que em nome das políticas de avizianhamento de indígenas e não indígenas, continuemos a nos cutucar!
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Valter Xeu comentou:
05/09/2020
Publkicado no blog Pátria Latina http://www.patrialatina.com.br/cutucando-onca-com-vara-curta-os-indios-e-as-politicas-culturais/
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Felipe José Lindoso comentou:
05/09/2020
Babá. bem legal. Suponho que os CDs estão nas lojas do SESC, certo? Falando no Cascudinho, comprei para meus netos do meio e vou comprar para o menorzinho )=(o danado gosta de manusear os livros ilustrados - 1 ano e oito meses), para quando ele souber ler....
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Valdiva comentou:
05/09/2020
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Paula Moura comentou:
05/09/2020
É maravilhoso dar aula pra alunos curiosos e com sede de aprendizado
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Cristina Vergnano comentou:
05/09/2020
Bessa, fiquei simplesmente encantada! Mais ainda!!! Curiosíssima. Sua crônica nos leva à Amazônia, nos faz imaginar e sonhar com o contato cultural com nossos irmãos indígenas. Como conseguimos acesso ao CD? Como ouvir essas músicas? De fato, é uma grande verdade, já dizia Caetano: "...Narciso acha feio o que não é espelho." Precisamos, sim, construir pontes, tecer juntos uma teia cultural, incorporamo-nos uns aos outros, sem nos aculturarmos, sem apagarmos nossas identidades. Enfim... precisamos somar para multiplicar, sem em nada dividir nossa força ou diminuir as essências de cada um. Ah... sim!... Que incríveis as crianças, não é?! Vão aonde a nós adultos, muitas vezes, nos custa bastante ir... Grande abraço!
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Magela Ranciaro (via FB) comentou:
05/09/2020
Tive a sorte de em 98 assistir a um show de Marlui Miranda no SESC/POMPÉIA. O instrumental é fascinante, lindo, vibrante.
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Andrea Ambrosio Ferrassoli comentou:
05/09/2020
Você virou ídolo deles! Ontem alguns relataram que foram no jardim/play tentar ouvir as plantas como a história que contou do pajé. Somos muito gratos pela sua dedicação a essa parte da humanidade tão marginalizada, mas que resiste!
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