“As pessoas pensam que um fato aconteceu só porque está impresso em grandes
letras negras, confundem a verdade com a fonte 12. (Jorge Luís Borges, 1952)
Nesta quarta-feira (17), Paulinho Payakã morreu uma segunda vez, aos 68 anos, vítima da Covid-19 - a “gripezinha” que já contaminou mais de um milhão de brasileiros, matou 50.000 e dizimou o já precário sistema de saúde do país. A primeira vez foi em 1992 durante a Conferência Rio-92, quando ele foi fuzilado pela revista VEJA e jornais de circulação nacional, sem direito à defesa. A execução sumária de Bep-kororoti – esse era seu nome indígena – está descrita e analisada em “A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”, livro de Maria José Alfaro Freire que acaba de ser publicado pela Editora da Universidade do Rio Grande do Norte (Edufrn 2019) e que ganha uma dramática atualidade.
Foi assim. Três dias após o início da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, no Rio, chega às bancas de todo o país a revista Veja, que traz na capa a foto de Paulinho Payakã com o título “O Selvagem” e ocupa seis páginas internas. A revista jura que ele, ícone das lutas ambientais, teria torturado e estuprado “uma estudante branca”. A reportagem noticia o “crime hediondo com tentativa de assassinato” de Sílvia Letícia, 18 anos, moradora na cidade de Redenção, sul do Pará. Uma clara estratégia de ataque àquele que a própria revista reconhece como “o cacique símbolo da pureza ecológica”, respeitado internacionalmente.
Os jornais passam a disparar “notícias” diariamente em suas primeiras páginas até 22 de junho e depois, ao longo do ano, de forma intermitente. Constroem assim uma narrativa uniforme que martela a mesma versão – como se fosse press release - e se torna hegemônica. Maria José, hoje doutora pelo Museu Nacional (UFRJ) com pós-doutorado na Universidade de Nanterre, na França, decidiu checar as informações. Reuniu 217 matérias sobre a acusação a Payakã, incluindo reportagens, artigos, editoriais, entrevistas, cartas, charges e notas publicados pelos jornais O Globo (OG), Jornal do Brasil (JB), Folha de SP (FSP), O Estado de São Paulo (OESP) e pelas revistas Veja e Istoé, no período de junho a dezembro de 1992, escolhidos por serem os veículos de maior circulação nacional e fonte para as emissoras de rádio e televisão.
O "estrangeiro"
O que a mídia omitia era a luta do líder indígena que nos anos 1980 expulsou 5.000 garimpeiros do seu território, lutou contra a construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu poluidoras dos rios e destruidoras da flora e da fauna e percorreu o mundo para denunciar mineradoras e madeireiras que devastavam a floresta, sendo recebido em Washington, em 1988, pelo Banco Mundial, o Congresso e a Casa Branca. Era a luta de David contra Golias – lembra a antropóloga Janet Chernela que convidara Payakã para o Simpósio sobre Floresta Tropical na Universidade de Flórida.
Fluente em várias línguas, bem articulado, orador eloquente, raciocínio rápido e convincente, no seu retorno ao Brasil Payakã foi detido e interrogado pela Polícia Federal junto com o antropólogo Darrell Posey. Com base no Estatuto do Estrangeiro criado pela ditadura militar, foram indiciados no governo Sarney por “causar danos à imagem do Brasil no exterior”. Forasteiro em sua própria terra, Payakã foi absolvido depois pelo STF. Às vésperas da Rio-92, em 1991, liderados por Raoni e Payakã, os Kayapó, conquistaram a homologação das Terras Indígenas Kayapó e Baú onde hoje vivem mais de 12 mil pessoas. Para o agronegócio, isso era e continua sendo imperdoável.
A mídia não informava que o líder indígena acusado de “estupro” havia liderado, em 1985, a expulsão de mais de 5.000 garimpeiros invasores de seu território, que lutou contra a construção de usinas hidrelétricas no rio Xingu poluidoras dos rios e destruidoras da flora e da fauna. Nem que na Inglaterra, a Universidade de Oxford legitimou os conhecimentos tradicionais dos Kayapó na área de etnobiologia e seus métodos de viver. Muito menos que Payakã havia percorrido o mundo para denunciar as mineradoras e madeireiras que devastavam a floresta, sendo recebido em Washington, em 1988, pelo Banco Mundial, o Congresso e a Casa Branca.
O currículo de Payakã registra também a forma como foi recebido na Inglaterra pelos sábios da Universidade de Oxford. Tais fatos, no entanto, não eximem a condenação do “estupro”, se efetivamente tivesse ocorrido. Mas longe de um jornalismo investigativo – escreve Maria José – a cobertura transformou o julgamento de Payakã num ataque às populações indígenas e a seus direitos constitucionais. As manchetes berravam:
“Ricos, caiapós possuem carros e até aviões” (OG-8/06); “Ouro transforma índios em Marajá” (OG-10/06); “Índio não quer apito, prefere caminhonete” (OG- 14/06); “Índios se associam a empresa inglesa” (OG-17/06); “Os marajás da madeira” (Veja-17/06), “Ingleses continuam negócios” (OESP-24/06); “Floresta gera milhões de dólares aos índios” (OESP-14/06); “Nus mas com dinheiro no bolso” (OESP-10/06). No domingo (14/06) a mídia insistia: “Venda de mogno rendeu aos índios US 4 milhões em 91” (OG), “A verdadeira face do capitalismo selvagem” (OG), “Índios caiapós dominam a cidade de Redenção” (OESP), “Caiapós ricos atraem moças de Redenção” (JB).
O Globo continuou insistindo muito depois, em 2002, afirmando que os índios Cinta-Larga, de Rondônia, teriam mais de US$ 2 bilhões de dólares, sem indicar fontes ou apresentar provas e sem se preocupar em perder a credibilidade com a divulgação de algo tão estapafúrdio. Os dois bilhões de dólares são tão verdadeiros quanto o estupro. As havaianas do cacique João Bravo, que com elas aparece na foto, deviam ser certamente de ouro. No caso de Payakã, as reportagens também não traziam informações novas, mas especulavam sobre o ‘poder’ econômico e prestígio dos Kayapó. Esse tópico também é tematizado na reportagem da IstoÉ (1/07) “Índio gente fina - Os caciques brasileiros que enriqueceram explorando como bons capitalistas, as riquezas de suas reservas”.
Os desmentidos
A estratégia consistiu em elaborar uma narrativa ‘noir’, que das páginas policiais se deslocou às páginas editoriais, onde as discussões geram questionamentos sobre a legitimidade e a legalidade de privilégios que reconhecem a posse de territórios pelos povos originários. A mídia não ouviu os implicados, o “outro lado”, alimentando os preconceitos que circulam sobre as populações indígenas. Nunca foi tão oportuna a proposta de Bertrand Russell para que as escolas ensinem a arte de ler os jornais com desconfiança, hoje extensiva às redes sociais.
- O tratamento que os veículos mencionados dispensaram à acusação - guardadas suas heterogeneidades - pode ser caracterizado como sensacionalista, ao lançar mão de elementos sórdidos, além de parcial e tendencioso - já que uma das partes do conflito, apresentada como a vítima, tem lugar privilegiado na construção da versão dominante. É ainda preconceituoso, na medida em que aciona representações do índio, ancoradas nas qualificações, de um lado, de violência, canibalismo, primitivismo, e de outro, de riqueza e poder, enquanto privilégios ilegítimos – conclui a autora.
Ao mesmo tempo em que essas linhas consensuais se cristalizam, é possível observar no mesmo material ‘dados’ dispersos, minimizados, que não ganharam espaço nem força na constituição da notícia. Dados, por exemplo, sobre a agressão de Irekrã, mulher de Payakã, qualificada pelos jornais como canibalismo, assim como sobre a tentativa de homicídio foram desmentidos, mas sempre nesses espaços marginais. Nesse sentido, um único box do JB traz “Legistas desmentem atrocidades” (14/06), assinalando detalhes inverossímeis da versão dominante. Os desmentidos eram dados em notas pequenas.
Num outro plano, os jornais oferecem ‘dados’, também de forma marginal, sobre a complexa rede de interesses locais em jogo, que poderiam dar indícios da forma pela qual a acusação foi apropriada por uma luta política local de Redenção. A esses dados marginalizados não lhes foi atribuído nenhum peso na coerência das narrativas e, no entanto, poderiam apresentar elementos para estabelecer relações de causalidade e dar inteligibilidade aos ‘fatos’.
Nunca houve provas do estupro anunciado na capa da Veja. Payaká foi declarado inocente em primeira instância, em 1994, inclusive da acusação de lesão corporal. Depois, o Tribunal de Justiça do Pará - aquele mesmo que inocentou os assassinos do massacre de Eldorado dos Carajás - acatou a acusação apenas de lesão corporal. O objetivo claro era desqualificar Payakã e mobilizar opiniões contra os direitos indígenas apresentados sempre como se fossem privilégios, que seriam prejudiciais aos direitos dos "brasileiros de bem".
Acusação política
A fundamentação teórica da pesquisa se apoia no trabalho de Van Dijk sobre o tratamento que a imprensa europeia dispensa às minorias étnicas. Ele questiona o princípio da neutralidade e da objetividade dos meios de comunicação e propõe que a mídia seja estudada como uma instituição social submetida a um conjunto de demandas políticas, sociais, econômicas e técnicas. Dessa forma, ela não é um lugar neutro de observação, mas uma voz ativa, um agente produtor de imagens e representações.
- Eu entendi que não era acusação de estupro, e sim uma acusação política de um crime que eu realmente não cometi. Com o tempo, comecei a entender direitinho como o homem branco monta o esquema para prejudicar os outros” - disse Payakán, citado pelo jornalista Felipe Milanez, que foi editor da revista Brasil Indígena, da Funai. A primeira morte de Payakã fez sofrer sua esposa Irekran e suas filhas Tânia, Oé e Maial, tanto quanto a sua segunda morte. As “verdades” fabricadas sobre o “estupro” consumaram o fuzilamento. Mil anos se passarão e a Veja jamais será perdoada por seu crime – esse sim hediondo – similar aos massacres cometidos pelos bandeirantes dos tempos coloniais.
Em seu artigo, Milanez lembra que na mitologia, os Kayapó vieram do Céu, de um outro planeta, para habitar a Terra, depois que um caçador encontrou um buraco de tatu e desceu por ele, sendo seguido pelos demais. Agora, Paulinho Payakã faz o caminho de volta. Por isso, é oportuna a edição do livro sobre a construção do réu, como forma de ler a história, ressuscitar Payakã de sua primeira morte e preservar sua honra e a memória de suas lutas.
Referências: 1) Maria José Alfaro Freire: A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”. Natal. Edufrn/CAPES. 2019. (Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ sob orientação de João Pacheco de Oliveira. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/27962.
2) Janet Chernela. Remembering Paulinho Bepkororoti Paiakan. 19/06/20. https://www.salsa-tipiti.org/covid-19/remembering-paulinho-bepkororoti-paiakan-6-19-20/
3) Felipe Milanez. Viva Paulinho Paiakan! Viva Bepkororoti! 18/06/2020. https://www.cartacapital.com.br/artigo/viva-paulinho-paiakan-viva-bepkororoti/
4) Márcio Santillo. Paiakan, tradutor de mundos. Instituto Socioambiental. 18/06/2020 - https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-xingu-blog-do-ppds/paiakan-tradutor-de-mundos?utm_source=isa&utm_medium=&utm_campaign=
P.S.1 - Defesa de tese Ana de Melo: O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) na trajetória dos Movimentos Indígenas no Brasil (1972-1988). - Doutorado em História Política. UERJ, em 18/06/2020 Banca: Edgard Ferreira Leite (orientador), José R.Bessa Freire (Uerj), João Pacheco de Oliveira (UFRJ), Antônio Rito (Uerj), Cláudia Barbosa (FSB). A tese discute a relação da mídia com o movimento indígena e usa como fonte crítica o jornal O PORANTIM.
P.S. 2 – Líder e educador Tuyuka, o sábio Higino Tenório morreu nesta sexta (19) vítima do coronavirus, deixando todo o Rio Negro de luto. Sua vida será tema da próxima coluna do Diário do Amazonas.
Las dos muertes de Paulinho Payakã
“Bertrand Russell propone que las escuelas primarias enseñen el arte de leer con incredulidad los periódicos. […] las personas se dejan embaucar por artificios tipográficos o sintácticos; piensan que un hecho ha acontecido porque está impreso en grandes letras negras; confunden la verdad con el cuerpo doce”. (J.L.Borges, 1952)
Este miércoles (17), Paulinho Payakã murió una segunda vez, a los 68 años, víctima de Covid-19 - la “gripecita” que ya contaminó más de un millón de brasileños, mató 50.000 y diezmó el precario sistema de salud del país. La primera vez fue en 1992 durante la Conferencia Rio-92, cuando fue fusilado por la prensa: la revista VEJA y periódicos de gran circulación nacional, sin derecho a defensa. La ejecución sumaria de Bep-kororoti – ese era su nombre indígena –la describe y analiza el libro “La construcción de un reo – Payakã y los indios en la prensa brasileña”, de María José Alfaro Freire que acaba de ser publicado y que presenta una dramática actualidad.
Fue así. Pasados tres días desde el inicio de la Conferencia de las Naciones Unidas sobre Medio Ambiente en Rio de Janeiro, llega a los quioscos de todo Brasil la revista Veja, exhibiendo la foto de Paulinho Payakã en portada, con el título “El Salvaje”. La revista afirma que él, ícono de las luchas ambientales, habría torturado y violentado “una estudiante blanca”. El reportaje de seis páginas relata el “crimen grave con tentativa de asesinato” contra Sílvia Letícia, 18 años, residente en la ciudad de Redenção, sur de Pará. Una clara estrategia de ataque a aquél que la propia revista reconoce como “el cacique símbolo de la pureza ecológica”.
Los periódicos pasan a disparar “noticias” diariamente en sus primeras páginas hasta el 22 de junio y después, a lo largo del año, de forma intermitente como si fuese press release. Construyen así una narrativa uniforme que repite insistentemente la misma versión – hasta volverse hegemónica.
El corpus del trabajo reúne 217 materias sobre Payakã, incluyendo reportajes, artículos, editoriales, entrevistas, cartas, caricaturas y notas publicados por los periódicos O Globo (OG), Jornal do Brasil (JB), Folha de SP (FSP), O Estado de São Paulo (OESP) y por las revistas Veja e Istoé, durante el período de junio a diciembre de 1992, escogidos por ser los vehículos de mayor circulación nacional y fuente para las emisoras de radio y televisión.
Lo que la prensa omitía era la lucha del líder indígena que en los años 80 expulsó 5.000 buscadores de oro de su territorio, combatió la construcción de usinas hidroeléctricas en el río Xingú contaminadoras de ríos y destructoras de flora y fauna y recorrió el mundo para denunciar mineras y madereras que devastaban la floresta. En 1988, el Banco Mundial, el Congreso y la Casa Blanca lo recibieron en Washington. Era la lucha de David contra Goliat – recuerda la antropóloga Janet Chernela que invitó Payakã al Simposio sobre Floresta Tropical en la Universidad de Flórida.
El “extranjero”
Fluente en varias lenguas, orador elocuente y hábil, raciocinio rápido y convincente, a su regreso al Brasil Payakã fue detenido e interrogado por la Policía Federal junto con el antropólogo Darrell Posey. En base al Estatuto del Extranjero creado por la dictadura militar, fueron indiciados en el gobierno Sarney por “causar daños a la imagen de Brasil en el exterior”. Forastero en su propia tierra, Payakã fue absuelto después por el STF. Vísperas de la Rio-92, en 1991, liderados por Raoni y Payakã, los Kayapó, conquistaron la homologación de las Tierras Indígenas Kayapó y Baú donde hoy viven más de 12 mil personas. Para el agronegocio, eso era y continúa siendo imperdonable.
El currículo de Payakã registra también la forma como los sabios de la Universidad de Oxford lo recibieron en Inglaterra, legitimando los conocimientos tradicionales de los Kayapó en el área de etno-biología. Sin embargo, este hecho, no lo exime de la condenación de “violación”, si efectivamente hubiera ocurrido. Pero lejos de un periodismo investigativo – escribe María José – la cobertura transformó el juicio de Payakã en un ataque a las populaciones indígenas y sus derechos constitucionales. Los titulares anunciaban:
“Ricos, caiapós poseen carros y aviones” (OG-8/06); “Oro transforma indios en Marajá” (OG-10/06); Indio no quiere cuentas ni abalorios, prefiere camionetas; (OG- 14/06); “Indios se asocian a empresa inglesa” (OG-17/06); “Los marajás de la madera” (Veja-17/06), “Ingleses continúan negocios” (OESP-24/06); “Floresta rinde millones de dólares a los índios” (OESP-14/06); “Desnudos pero con dinero en el bolsillo” (OESP-10/06). Un domingo (14/06) la prensa insistía: “Venta de mogno rindió a los indios US 4 millones en 91” (OG), “La verdadera faz del capitalismo salvaje” (OG), “Indios caiapós dominan la ciudad de Redenção” (OESP), “Caiapós ricos atraen mozas de Redenção” (JB).
O Globo continuó insistiendo mucho después, en 2002, afirmando que los indios Cinta-Larga, de Rondonia, tendrían más de US$ 2 billones de dólares, sin indicar fuentes o presentar pruebas y sin preocuparse en perder credibilidad con la divulgación de algo tan absurdo. Los dos billones de dólares son tan verdaderos como la violación. En el caso de Payakã, los reportajes también no presentaban informaciones nuevas, sino que especulaban sobre el ‘poder’ económico y prestigio de los Kayapó. Ese tópico también é es tema del reportaje de IstoÉ (1/07) “Indio gente fina - Los caciques brasileros que enriquecieron explorando como buenos capitalistas, las riquezas de sus reservas”.
Los desmentidos
La estrategia consistió en elaborar una narrativa ‘noir’, que de las páginas policiales se dislocó a las páginas editoriales, donde las discusiones provocan cuestionamientos sobre la legitimidad y la legalidad de privilegios que reconocen la pose de territorios por los pueblos originarios. La prensa no escuchó a todos los implicados, el “otro lado”, alimentando los prejuicios que circulan sobre las poblaciones indígenas. Nunca fue tan oportuna la propuesta de Bertrand Russell para que las escuelas enseñen el arte de leer los diarios con desconfianza, hoy extensiva a las redes sociales.
- El tratamiento que los vehículos mencionados dispensaron a la acusación - guardadas sus heterogeneidades - puede ser caracterizado como sensacionalista, al echar mano de elementos sórdidos, además de ser parcial y tendencioso - ya que una de las partes del conflicto, presentada como víctima, ocupa un lugar privilegiado – único - en la construcción de la versión dominante. Además es prejuicioso, en la medida en que acciona representaciones del indio, arraigadas en las calificaciones del sentido común, por un lado, de violencia, canibalismo, primitivismo, por otro, introduciendo riqueza y poder, como privilegios ilegítimos – concluye la autora.
Mientras esas líneas consensuales se cristalizan, se puede observar en el mismo material ‘datos’ dispersos, minimizados, que no ganaron espacio ni fuerza en la constitución de la noticia. Por ejemplo, sobre la agresión de Irekrã, mujer de Payakã, calificada por los periódicos como canibalismo, así como sobre la tentativa de homicidio, los datos fueron desmentidos, pero siempre en esos espacios marginales.
En ese sentido, un único box del JB escribe “Legistas desmienten atrocidades” (14/06), apuntando detalles inverosímiles de la versión dominante. Los desmentidos se presentaban en notas pequeñas.
En un otro plano, los diarios ofrecen ‘datos’, también de forma marginal, sobre la compleja red de intereses locales en juego, que podrían dar indicios de la forma por la cual una disputa política local de Redenção se apropió de la acusación. A esos datos marginalizados no se le atribuyó ningún peso en la coherencia de las narrativas y sin embargo, podrían presentar elementos para establecer relaciones de causalidad y dar inteligibilidad a los ‘hechos’.
Nunca hubo pruebas de la violación anunciada en la capa de Veja. Payaká fue declarado inocente en primera instancia, en 1994, inclusive de la acusación de lesión corporal. Después, el Tribunal de Justicia de Pará - el mismo que declaró inocentes a los asesinos de la masacre de Eldorado dos Carajás - acató la acusación solamente de lesión corporal. El objetivo claro era deslegitimar a Payakã y movilizar opiniones contra los derechos indígenas presentados siempre como privilegios en detrimento de los derechos de los ciudadanos brasileños.
Acusación política
La fundamentación teórica de esa investigación se apoya en el trabajo de Van Dijk sobre el tratamiento que la prensa europea dispensa a las minorías étnicas. El autor discute el principio de neutralidad y objetividad de los medios de comunicación y propone que se estudien esos medios como una institución social sometida a un conjunto de demandas políticas, sociales, económicas y técnicas. De esa forma no se trata de un lugar neutro de observación sino de una voz activa, un agente productor de imágenes y representaciones.
- Entendí que no se trataba de una acusación de violación si no de una acusación política de un crimen que yo realmente no cometí. Con el tiempo, comencé a entender mejor como el hombre blanco monta el esquema para perjudicar a los otros” - dice Payakán, citado por el periodista Felipe Milanez, que fue editor de la revista Brasil Indígena, de la Funai. La primera muerte de Payakã hizo sufrir a su esposa Irekran y a sus hijas Tânia, Oé y Maial, tanto como su segunda muerte. Las “verdades” fabricadas sobre la “violación” consumaron el fusilamiento. Mil años pasarán y Veja jamás se redimirá de su crimen – ese si grave – similar a las masacres cometidas por los bandeirantes de los tiempos coloniales.
En su artículo, Milanez recuerda que en la mitología, los Kayapó vinieron del Cielo, de un otro planeta para habitar la Tierra cuando un cazador encontró un hueco de armadillo y descendió por él, los demás lo siguieron. Ahora, Paulinho Payakã recorre el camino de regreso. Por eso, es oportuna la edición del libro sobre la construcción de un reo, como forma de leer la historia, resucitar Payakã de su primera muerte, preservando su honra y la memoria de sus luchas.
Referencias: 1) Maria José Alfaro Freire: A construção de um réu – Payakã e os índios na imprensa brasileira”. Natal. Edufrn/CAPES. 2019. (Dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ sob orientação de João Pacheco de Oliveira. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/27962.
2) Janet Chernela. Remembering Paulinho Bepkororoti Paiakan. 19/06/20. https://www.salsa-tipiti.org/covid-19/remembering-paulinho-bepkororoti-paiakan-6-19-20/
3) Felipe Milanez. Viva Paulinho Paiakan! Viva Bepkororoti! 18/06/2020. https://www.cartacapital.com.br/artigo/viva-paulinho-paiakan-viva-bepkororoti/
4) Márcio Santillo. Paiakan, tradutor de mundos. Instituto Socioambiental. 18/06/2020 https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-xingu-blog-do-ppds/paiakan-tradutor-de-mundos?utm_source=isa&utm_medium=&utm_campaign=
5) Juliana Arini. Liderança indígena histórica, Paulinho Paiakan morre vítima de Covid-19. 18/06/2020 https://amazoniareal.com.br/lideranca-indigena-historica-paulinho-paiakan-morre-vitima-de-covid-19/