CRÔNICAS

No tempo em que as escolas cantavam

Em: 05 de Janeiro de 2020 Visualizações: 11056
No tempo em que as escolas cantavam

Fulana catibiribana seja matutana firifirifana. (Canção infantil do Amazonas)

Há 20 anos, uma amiga jornalista me telefonou angustiada. A revista Manchete, onde trabalhava, fechara as portas e ela estava no olho da rua. Sem saber como confortá-la, meio que brincando, sugeri:

- Come feijão.

- O quê?

- É. Isso mesmo! Feijão!

Uma pesquisa na Universidade da Califórnia -  eu disse à minha amiga - feita por aquele famoso bioquímico Joseph Oversea Toomuch, descobriu que o feijão, rico em aminoácidos, traz alegria. Cerca de 88% dos estudantes de Berkeley que comem feijão são alegres e 92% dos que não comem são deprimidos e melancólicos, com uma margem de erro de 2% para mais ou para menos. Isso acontece porque o feijão contém lisina, um aminoácido polar básico, seja lá o que isso signifique.

Um mês depois ela me telefona lépida e fagueira:

- Deu certo.

- O quê?

- O feijão. Comi diariamente. Continuo desempregada, mas estou alegre – ela disse meio que brincando.

O fato parece confirmar que qualquer descoberta, se vier ancorada em pesquisa de universidade dos Estados Unidos, ganha foro de verdade. Quem acreditaria num cientista chamado José Ribamar, nome de porteiro de motel? Já Joseph Oversea Toomuch (tradução canhestra do nome deste locutor que vos fala) traz credibilidade. Não sei se isso tem algo a ver com o nosso complexo de vira-lata cantado e decantado por Nelson Rodrigues. Mas uma postagem nas redes sociais me permitiu checar uma vez mais o prestígio, entre nós, dos saberes produzidos pelos irmãos do Norte.

Um instante, maestro

A postagem, que logo compartilhei, é sobre um estudo sério que revela o forte impacto da música no funcionamento do cérebro e, por isso, recomenda a professores que cantem diariamente nas escolas com as crianças. A pesquisadora Elvira Souza Lima, autora de diversos livros, entre eles Neurociência e aprendizagem”, “A criança pequena e suas linguagens” e “Neurociência e escrita”, discute como as artes têm a mesma complexidade que as ciências no desenvolvimento mental e no processo cognitivo. Deu vontade de ler seus escritos.

Por enquanto, li apenas suas entrevistas, nas quais destaca que as pesquisas de neurocientistas não trazem muitas novidades para a educação. “A pedagogia já contempla há séculos várias práticas só agora confirmadas pela neurociência”. No entanto, novos instrumentos de investigação não invasiva permitiram avançar os estudos do cérebro vivo e em funcionamento, com aportes para a educação formal de crianças, jovens e adultos. Um deles é a de que “quem aprende a ler música, desenvolve redes neuronais funcionais para a sintaxe, que está presente tanto na escrita como na matemática”.

-  Uma função básica para o amadurecimento do jovem é o desenvolvimento da imaginação, que depende do acervo guardado na memória. Pesquisas revelam claramente que a ausência de experiências estéticas compromete a formação deste repertório, além de levar à mediocridade e de limitar as estratégias de tomada de decisão – segundo Elvira Lima. E eu complemento: Taí os atuais governantes antimusicais no Brasil que não me deixam mentir.   

O cérebro é interdisciplinar – prossegue Elvira - “a aprendizagem de um conceito em uma área de conhecimento se transforma em instrumento mental para aprender, refletir e solucionar questões em outras áreas”. Ou seja, quem canta, o conhecimento transplanta. Quem aprende a tocar um instrumento musical na infância, melhora as funções cerebrais ligadas a habilidades como memória, organização e controle das emoções. Esta atividade pode começar a partir dos quatro anos, quando a criança é capaz de fazer movimentos mais sutis com a mão.

Ficar no canto

Até aqui, reproduzi a postagem que compartilhei, entusiasmado, e que mereceu comentário da minha sobrinha Paula. Ela é fissurada na produção acadêmica dos Estados Unidos e da Europa. O único cientista brasileiro que admira é um físico da USP, somente porque ele é reconhecido e idolatrado, com razão, fora do país. Ela me advertiu:

- Cuidado, tio! Essa pesquisa foi feita por uma brasileira.

E daí? Efetivamente, Elvira Souza Lima é brasileira da gema, formada em neurociência, psicologia, antropologia e música. Mas encontrei no currículo dela elementos, para mim totalmente dispensáveis, que serviram, porém, para tranquilizar minha sobrinha. Elvira tem doutorado na Sorbonne e três pós-doutorados em universidades estadunidenses: no Institute for the Study of Child Development da Universidade de New Jersey; em linguística e antropologia na Universidade de Stanford (EUA) com bolsa da FAPESP; e em Educação Multicultural na Universidade de New Mexico (pelo CNPq).

Quando soube disso, Paula, correndinho, colocou sua filha Sofia, de 4 anos, para cantar como nos velhos tempos das escolas no Brasil, que tinham ensino diário de Música, Canto Orfeônico ou simplesmente Canto, até 1971, quando o ditador, general Garrastazu Medici, sancionou a lei que praticamente baniu a música do currículo, diluindo-a no que denominou de Educação Artística. No tempo em que as escolas cantavam, o destaque era para as canções populares regionais, evidenciando como a música mexe também com a identidade.

Uma delas, que aprendi no Jardim-de-Infância no Colégio de Aparecida, em 1953, com a irmã Cecília, é uma parlenda cantada, que não encontrei nem no Dicionário do Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo, nem no Folclore Amazônico do Mário Ypiranga e sequer no Google, que registra tudo, mas é omisso neste caso. Quem quiser saber mais procure, se ela estiver viva, a irmã Cecília catibiribilia seja matutilia, firifirifilia. Ou minha prima Dodora catibiribora, seja matutora firifirifora. Ou ainda minha irmã Tequinha, catibiribinha, seja matutinha, firifirifinha.

A música é pegajosa. Estou cantando para as novas gerações, aqueles que me acham jovem como o Manu catibiribu seja matutu firifirifu e minhas netas: Ana Pereira catibiribeira, seja matuteira, firifirifeira. Para a Bochecha catibiribexa seja matutexa firifirifeixa e para a Maia catibiribaia seja matutaia firifirifaia. Cantemos todos para espantar a barbárie e a mediocridade. Com os cumprimentos do Babá catibiribá seja matutá firifirifá.

Ver também Cadê a clave de sol? O canto na escola - http://www.taquiprati.com.br/cronica/1398-cade-a-clave-de-sol-o-canto-na-escola

 

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18 Comentário(s)

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Rodrigo Martins comentou:
09/01/2020
Boa tarde professor Josep Oversea, tudo bem? Professor, ao ler a crônica, me recordei do estágio que fiz na educação infantil para o Curso de Pedagogia. Nesse período, me recordo que uma das atividades que as crianças mais gostavam além das contações de histórias, eram as aulas de música, elas adoravam. As músicas podem nos ensinar com ludicidade e leveza. Um viva a música!!! Um abraço querido professor!
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Neide Martins Siqueira comentou:
08/01/2020
Quando era professora na aldeia, sempre cantava com as crianças, era muito bom.
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Múcio Medeiros comentou:
08/01/2020
Caríssimo Professor José Bessa, noves fora toda honra da titularidade, permita-me chamá-lo mestre e agradecer esse excelente artigo. A palavra mestre trás uma sonoridade respeitosa que, embora formada pela tradição caducante, tem a propriedade de apresentar uma provocação fundamentada, na sabedoria. Obrigado!
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Anne-Marie Milon Oliveira (via FB) comentou:
07/01/2020
O hábito de cantar que aprendemos na escola é para a vida toda. Sempre, sempre tenho uma música em mente e essas músicas, tenho convicção disso, para além do que diz a neurologia, são reflxo donosso eu mais profundo. Não sei se Freud ou algum psicanalista se debruçou sobre isso. Mas certas músicas voltam à nossa mente com insistência em certos momento da vida, significando alegria, pulsão de vida mas também pulsão de morte. Isso é involuntário. São mensagem do nosso inconsciente.que deveríamos aprender a "ler".
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Vera Nilce Cordeiro Correa (via FB) comentou:
05/01/2020
Só faltava agora a irmã Cecília com quem vc estudou canto ser a mesma que eu estudei mais tarde na escola da igreja dos remédios. Freira do Preciosíssimo Sangue, tocava piano e montou um coral dos alunos. Será a mesma? Se for, em 72 ela apareceu na igreja pra tocar piano no meu casamento, quando descobriu que eu não havia contratado nada. Não era mais freira e esqueci o seu nome de batismo. Seria muita coincidência!
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Maria Luiza Santos comentou:
05/01/2020
Vamos cantar, dançar e rimar.
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Nilda Alves comentou:
04/01/2020
Querido Bessa, deliciosa como feijão feito no dia. Viva a música sempre. Fui do Canto Orfeônico do Instituto de Rducação do Rio de Janeiro, do qual guardo memórias incríveis. Grande abraço e que 2020 nos venha leve Nilda Alves
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Maria Do Carmo Almeida (via FB) comentou:
04/01/2020
Li um artigo interessante sobre Programação Neurolingüística: Seu Cérebro: Dançar evita a tristeza? Destaquei este trecho que achei interessantíssimo: "O cérebro possui vias especializadas, como por exemplo as vias da aprendizagem fonética e gráfica, ou seja um caminho para o aprendizado dos sons e outro para a grafia das palavras. Do mesmo modo existem as vias cerebrais da música. Isso era a premissa básica dos pesquisadores interessados em descobrir os caminhos que a música faz em nosso cérebro. Quanto mais eles pesquisam, mais descobrem que não existem vias especializadas em música no cérebro. Parece que ele é todo musical. Ouvir música depois de um dia cansativo é muito importante para relaxar o cérebro. Na verdade isso pode inclusive ser, para seu cérebro, uma espécie de malhação, pois ele se expande com a música. Por outro lado, dançar pode ser uma espécie de materialização dos benefícios da música. Dançar pode parecer a você apenas um momento de prazer. Para seu cérebro é um verdadeiro balé neuroquímico. Não importa se você está num clube de dança, numa discoteca animada ou dançando sozinho em sua casa, os benefícios são inúmeros, tanto do ponto de vista químico, quanto das conexões e da melhoria do equilíbrio. Áreas diversas de seu cérebro se envolvem no processo, o equilíbrio, a tradução dos estímulos auditivos em motores, a coordenação do ritmo, a consciência espacial e visual exigem que seu sistema nervoso faça muitas conexões e isso se conecta com sua medula e com sensores motores especializados, o que também envolve áreas da linguagem, pois música é comunicação. O desenvolvimento da linguagem, ao que tudo indica, surgiu dos gestos antes de se tornar vocal. Dança é uma linguagem gestual." Portanto, cantemos e dancemos!????
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Beatriz F. Arantes comentou:
04/01/2020
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Adele comentou:
08/01/2020
Quer aprender a cantar, com as técnicas que os grandes artistas e profissionais possuem? Acesse o link: http://bit.ly/tecnicadecanto
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Cláudio Nogueira comentou:
04/01/2020
Eu colocava os meus filhos bebês para ouvir Beethoven e outros, porque eram vendidos ( e eu acreditei) dizendo que faziam um bem danado para o intelectos deles.
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Celeste Correa comentou:
04/01/2020
Mano, a tua crônica me remeteu à minha infância no Colégio Aparecida e as aulas de canto, mas, principalmente às músicas das brincadeiras de roda na Carolina das Neves, em frente à casa do Alcides, inclusive aquelas que a nossa criatividade infantil inventava. Não entendiamos nada de partituras ou de notas musicais. O que contava era a alegria e a comunicação. E as escolas também cumpriam esse papel, talvez ainda sem o objetivo claro da sua importância para o desenvolvimento do cérebro. O mestre Ruben Alves dá sentido a isso num texto que escreveu,onde dizia "Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes." Ou seja, o importante era cantar, brincar e se comunicar. Mas Infelizmente a música também foi vítima da ditadura militar que conseguiu assassinar a produção da beleza musical nas escolas. E hoje nesse contexto de retorno da barbárie, cantemos como resistência, cantemos para enfrentarmos a mediocridade.Parafraseando Galeano,mostremos para esses fascistas que ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca, apesar de tudo..
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Silene Orlando Ribeiro comentou:
04/01/2020
Feliz Ano Novo, Professor Bessa! Li sua crônica e lembrei do tempo em que alfebetizei crianças na Baixa Fluminense. Cantar e tocar músicas nos deu muitas esperanças e ensinou a resistência. Um grande abraço.
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Zélia Puri comentou:
04/01/2020
adorei a crônica tenho pesquisado muito este assunto e realmente é interessante como a música influencia nosso estado de espírito. prático muito a musicoterapia, e é maravilhoso!
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Valéria Couto comentou:
04/01/2020
Obrigado prof. José Ribamar por nos permitir que o doutor Joseph Oversea nos traga nessa primeira semana do ano a contribuição da doutora Elvira. Eu li os textos dela acho que na disciplina Fundamentos da Infância. Sou professora em Maricá e canto diariamente com meus alunos. Da sua eterna aluna, que não sabe se vai assinar certo: Valéria catibiribelia seja matutelia firifirifelia.
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Maria Celina Muniz Barreto comentou:
03/01/2020
Bom saber, vou passar a comer feijão todos os dias. Estou acreditando que vai dar certo! Mas cantar, não consigo mais. Felizmente, sou do mesmo tempo seu, em que cantávamos por prazer e não por precisarmos espantar a barbárie e a mediocridade. Com os cumprimentos de Celina, catibiribina seja matutina firifirifina.
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Zacarias Mello (via FB) comentou:
03/01/2020
Essa foi uma boa forma de divulgar o trabalho da doutora Elvira Lima, cuja produção é bastante discutida nos cursos de pedagogia.
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Ana Silva comentou:
03/01/2020
Hahaha, que belezura de crônica! Adorei as fotografias.
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