É como se eu tivesse conquistado o Prêmio Nobel da Literatura. Fiquei tão mexido que não sei nem por onde começar. É melhor, então, começar pelo começo. Retrocedo a 1869 e registro a inauguração do Lyceu Provincial, que virou depois Gymnasio Amazonense Pedro II, ambos cheios de ypysylones. Pulo para 1963, quando fui acolhido no Curso Clássico do Colégio Estadual do Amazonas (CEA) que, após o troca-troca de nomes, está comemorando seu sesquicentenário, o que me confere a honrosa condição de ex-aluno – informação necessária para entender as voltas que vou dar a seguir.
As voltas que darei são para situar o CEA como o mais longevo e gabaritado centro de formação de estudantes secundaristas do Amazonas e, por isso mesmo, palco de agitação e protestos estudantis que pipocaram várias vezes ao longo do século XX, alguns em defesa das qualidade do ensino, outros pelas mudanças no país: a rebelião na crise da borracha, a revolução ginasiana que derrubou um governador, a campanha “O petróleo é nosso”, as jornadas contra a ditadura militar de 1964 e tantas outras que ocorreram quase sempre em anos dramáticos marcados por conflitos e tensões.
Dramático foi o ano de 1915, quando a economia do Amazonas desmorona com a falência da sua principal riqueza: a borracha. A crise repercutiu nas festas populares, no futebol, na política, na educação escolar. A temporada começou com um crime nunca desvendado, que abalou os ginasianos. Na terça-feira de carnaval, uma estudante de 18 anos, a violonista Ária Ramos, tocava a música “Subindo ao céu” no baile do Ideal Club, quando em plena folia ouviu-se um estampido. A bala atingiu seu coração. Caiu morta. Escondido na multidão, o misterioso assassino, que teria agido por ciúme, nunca foi identificado pela Polícia.
A Polícia identificou e fichou, no entanto, cada um dos estudantes amotinados que, em junho, para protestar contra a degradação das condições de ensino, ocuparam o Gymnásio Amazonense e expulsaram de lá diretor, professores e funcionários. Na retomada do prédio, os meganhas quebraram tudo. O ano escolar foi interrompido por nove meses, as atividades só foram retomadas em março de 1916, depois da recuperação do prédio e da aprovação do novo regimento do Colégio. De folga, os ginasianos assistiram, em dezembro, uma tragédia futebolística, sem mortos, mas com uma vitória insuportável.
Bonde do protesto
A insuportable victory ocorreu no estádio do Bosque Municipal, na av. Constantino Nery, na final do Campeonato Amazonense de Futebol, disputado no seu segundo ano de existência. O Manáos Athletics, com um time formado só por ingleses bem nutridos, conquistou o título de bicampeão amazonense, ao vencer o Nacional, cujos jogadores eram todos famintos cabocos suburucus. Era como se o Liverpool derrotasse o Flamengo e os ingleses cantassem: “Porto de Lenha, tu nunca serás Liverpool”. A torcida ginasiana chorou, mas os jornais locais nada noticiaram sobre essas lágrimas.
Em compensação, O Jornal do Commércio e O Jornal recém fundado deram ampla cobertura à depressão econômica mundial, que quebrou a Bolsa de Nova Iorque em 1929. No Brasil, um golpe de estado derrubou o presidente Washington Luís em outubro de 1930. Naquele momento, em Manaus, os ginasianos realizaram comícios pacíficos, reprimidos violentamente pela Polícia. Os manifestantes ocuparam o quartel e, com a simpatia de militares do Exército, depuseram o governador Dorval Porto, um gaúcho que havia sido prefeito de Manaus. Ele perdeu o bonde da história.
Os bondes elétricos, porém, continuaram a circular em Manaus, a segunda cidade do Brasil a ter esse sistema de transporte, inaugurado em 1897, no apogeu do ciclo da borracha e explorado pela Manaustrã – a Manaus Tramways and Light Company, que financiava o Manáos Athletic. Com a crise da borracha, deixaram de importar peças de reposição e aumentaram o preço da passagem de 400 para 500 réis. A Manaustrã só recuou depois que ginasianos tocaram fogo em dois bondes, como relata Aristófanes de Castro no seu livro “Cuspir é preciso”, que reproduz a crônica “Pau no meu povo”.
O pau comeu no lombo do povo ginasiano, que saiu outra vez às ruas de Manaus, em 1950, desta vez com uma reivindicação nacional, na campanha vitoriosa “O petróleo é nosso” que tomou conta do Brasil. O resultado foi a criação da Petrobrás e o empoderamento dos alunos do Colégio Estadual: unidos a colegas de outros estabelecimentos, fundaram em 13 de janeiro de 1952 a União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas (UESA), baluarte na resistência à ditadura militar, que derrubou em 1964 o presidente eleito João Goulart.
A resistência da UESA ganhou corpo em março de 1968, quando a polícia matou no Rio um secundarista de 18 anos, o estudante paraense Edson Luís, numa passeata em defesa do restaurante estudantil. “Mataram um estudante, e se fosse um filho seu” – esse grito ecoou pelas ruas de Manaus, na manifestação da qual participaram ex-diretores da UESA: os saudosos Edson de Oliveira e Paulo Figueiredo, apoiados por ginasianos como o cineasta Aurélio Michilles, então com 16 anos, e o jornalista Narciso Lobo, que constituiam uma vanguarda esclarecida. Por que essas lutas foram esquecidas? Eis aqui aonde eu queria chegar.
Memória de lutas
Depois de tantos circunlóquios cheguei, enfim, aonde eu pretendia, para lembrar Milan Kundera: “a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”. Esse Colégio Estadual do Amazonas que não quer esquecer, símbolo de uma educação pública de qualidade, comemorou os seus 150 anos com os Jogos do Gymnásio Amazonense Pedro II (JOGYM): crossfit, vôlei, basquete e futsal. Cada uma das 30 turmas reverenciou figuras de sua história, ao homenagear ex-alunos, entre eles Thiago de Mello, Samuel Benchimol, Paulo Figueiredo, o poeta Aldisio Filgueiras e este vaidoso locutor que vos fala, orgulhoso da nobre companhia.
Este desumilde e emproado locutor ficou “se achando” ao ver duas fotos da equipe dos craques do 3º ano 03: em uma delas eles exibem uma bandeira com o escudo do CEA e dentro dele as iniciais JB vespertino. Na outra, entram na Arena Amadeu Teixeira portando um banner com a cara do papaizinho aqui retirada do Taquiprati. Lá estavam Natãn Fonseca, Pedro Gabriel, Marcos Natalino, Jeferson Lopes, Mateus Alfaia, Pedro Lucas, Vítor Hugo, Ederson Duarte e Deivid. Era a glória suprema.
- Ele se achava um grande nome, uma verdadeira glória. Um dia adoeceu, morreu, virou nome de rua... e continuaram a pisar em cima dele – escreveu Mário Quintana. É. Pode ser. Mas, seriozinho, fiquei tocado pelo reconhecimento. Passa a mão aqui nos cabelinhos do meu braço, chega estão arrepiadinhos. Sei que a glória é efêmera, excetuando a Glória, minha irmã, que é eterna. De qualquer forma, nesses tempos bicudos de Weintraub, foi um bálsamo, um antídoto à excrecência do ódio nas relações interpessoais e institucionais. Permite ver o papel de liderança que o ensino público estadual e federal exerceu no século XX e que hoje se encontra ameaçado.
Agradeço de coração a homenagem do 3º ano vespertino do CEA, que para mim significou o Nobel da Literatura. O Nobel não, que é internacional. O Prêmio Jabuti, também não, que é nacional. Vá lá, se for o Prêmio Tracajá da Literatura de Igarapé, já estou no lucro com o troféu. Rende, pelo menos, um sarapatel. E rima.
Aos leitores da coluna, desejo um Feliz Natal.
P.S. – Quem me deu a notícia da homenagem e me enviou as fotos foi a Associação das Crioulas do Quilombo de São Benedito da Praça XIV, da quinta geração da Vó Severa, que visitarei na próxima ida a Manaus. Agradeço a Rafaela Fonseca da Silva, moradora do Quilombo, a Magela Ranciaro, ao historiador Tarcísio Normando e aos professores Júlio Nascimento (História) e Hanniel Souza (Matemática) que me fizeram sentir uma saudade danada do velho Aristófanes Castro, de Paulo Figueiredo, Edson de Oliveira, Narciso Lobo, Carlos Zamith com seu Baú Velho e do nosso poeta Aldísio Filgueiras, felizmente vivo e atuante.