.“Temos 7.500 ONGs indígenas, mas para comprarmos o caixão do Galdino [Jesus dos Santos, índio Pataxó assassinado em Brasília] foi preciso pedir dinheiro ao governador. As ONGs deveriam estar aqui prestando contas a esta casa, a casa do Legislativo, de todo esse dinheiro que furtou das sociedades indígenas. Muito obrigado, senhor presidente”.
Este trecho, extraído da fala final de um cacique na sessão de 28/03/2001 de uma Comissão da Câmara dos Deputados em Brasília, pode ser um bom ponto de partida para discutir as expectativas dos índios em relação às organizações não-governamentais na Amazônia, questionar os objetivos dessas instituições e avaliar os seus resultados.
Discussão similar foi feita recentemente pelo filme ´Vale o quanto pesa ou é por quilo´? (2005), de Sérgio Bianchi, que faz uma crítica lúcida e implacável à atuação de algumas ONGs, colocando em xeque o trabalho ´desinteressado´ delas. Ele conclui, com ironia e desalento, que se os recursos destinados a projetos de atendimento aos menores de rua tivessem sido divididos pura e simplesmente entre os destinatários dos benefícios, era possível mantê-los todos, com bolsa integral, nos mais caros colégios particulares do Rio de Janeiro ou São Paulo. Acontece que grande parte da verba é consumida em viagens, diárias, estudos, consultorias, salários, impostos, aluguel, compra de equipamentos, computadores, ar-condicionado, etc
Qual seria o resultado se o montante de recursos financeiros empregados pelas ONGs nas áreas indígenas fosse dividido pelo número de índios? A resposta a essa pergunta é que nutre o sentimento que está por trás da fala citada do cacique. Ele se sente “roubado”, acreditando que os recursos financeiros, captados com o objetivo de beneficiar os povos indígenas, desaparecem no ralo da burocracia e no pagamento a terceiros por serviços prestados. O cacique tem razão de pensar assim?
O seu discurso contém elementos críticos legítimos, mas parece incorrer num erro de avaliação ao generalizar, sem perceber que as ONGs são como o colesterol: há o bom e o mal. É preciso diferenciar as que trabalham com seriedade em parceria com as comunidades indígenas daquelas convertidas em autênticos “gigolôs” de índios. Coincidentemente, essa confusão vem sendo cultivada por setores contrários aos direitos indígenas garantidos pela Constituição de 1988, que colocam todas as ONGs no mesmo saco, quando é preciso diferenciá-las.
Segundo Vilmar Berna existem as chamadas “ONGs de combate”, cujo objetivo é organizar e mobilizar os setores interessados para reivindicar melhor qualidade de vida; as “ONGs profissionais”, que vão mais além e montam uma estrutura capaz de elaborar e executar projetos em parceria com governos, empresas e organizações indígenas, usando recursos públicos ou privados destinados a projetos; e até mesmo as denominadas “ONGs de cartório”, criadas para se beneficiarem de isenções fiscais e agregar valor às suas marcas institucionais, “desvirtuando e confundindo a noção de ONGs como organizações que representam os interesses da sociedade civil”.
As cifras indicam que no Brasil existem aproximadamente 250 mil organizações sem fins lucrativos, que movimentam anualmente bilhões de reais e contam com a colaboração de 3 milhões de pessoas. No entanto, não sabemos com precisão quantas dessas organizações atuam na Amazônia, quais são os seus projetos e resultados, de onde vêm os recursos com os quais operam, qual a porcentagem de fundos públicos e de que ministérios saíram, como estão sendo utilizados esses recursos, quantos voluntários prestam serviços a essas entidades etc.
As dúvidas são muitas, sobretudo agora que as ONGs, sempre em expansão, estão na berlinda. Houve até mesmo proposta para criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de investigá-las. Mas as respostas são ainda poucas.
Não existem dados confiáveis, nem uma avaliação rigorosa da atuação dessas entidades, que tiveram sua imagem recentemente danificada, sobretudo porque a ausência de informações contribuiu para que se generalizasse, indevidamente, para todas as ONGs, as prática ilícitas de algumas “ONGs de cartório” que serviram de ´laranja´ para desvio de dinheiro público. De qualquer forma, parece legítima a reivindicação do cacique para que todas elas prestem contas do que fazem.
A sociedade começa a cobrar das ONGs maior transparência e visibilidade. Embora o presidente Lula tenha vetado recentemente a exigência de licitação para a escolha de Ongs que prestam serviços à comunidade com o dinheiro público, o ministro Jorge Hage (Controle e Transparência) anunciou em algum momento que estava estudando critérios de seleção para entidades contratadas pela União.
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), através de uma Resolução de 1989, criou o Cadastro Nacional de Entidades Ambientalistas (CNEA), com o objetivo de manter em banco de dados o registro de entidades ambientalistas não-governamentais atuantes no país, cuja finalidade principal seja a defesa do meio ambiente. O Cadastro, acessado por órgãos governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais, disponibiliza informações para o estabelecimento de parcerias, habilitação em projetos, convênios e divulgação em geral.
Esse talvez seja o caminho para evitar a proliferação de instituições “pilantrópicas”, permitindo o estabelecimento de parcerias que possibilitem o cumprimento por parte do Estado de suas responsabilidades constitucionais e a garantia de políticas sociais diferenciadas, com ampla participação dos povos indígenas em todas as suas etapas de discussão e execução.
Essas parcerias já vêm se desenvolvendo com instituições criadas pelo próprio movimento indígena como a FOIRN – Federação das Organizações Indígena do Rio Negro, a OGPTB – Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües; a OPIAC – Organização dos Professores Indígenas do Acre e a Vyty-Cati – Associação das Comunidades Timbira do Maranhão e Tocantins, envolvendo ainda ONGs como a ATIX – Associação Terra Indígena Xingu; a CCPY – Comissão Pró-Yanomami; a CTI – Centro de Trabalho Indigenista; a CPI-AC – Comissão Pró-Índio do Acre; o Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena e o ISA – Instituto Socioambiental e muitas outras que desenvolvem projetos com os índios.
Na realidade, como sinaliza Hélio Matos, “a imensa maioria das organizações do Terceiro Setor é séria, honesta, não vive de dinheiro público. A maior parte dessas organizações se mantém basicamente pela solidariedade e pelo dinamismo da Sociedade Civil Brasileira, que são também imensos, ao contrário do que prejulgam aqueles aos quais faltam tais sentimentos republicanos e cidadãos”.