CRÔNICAS

O Cabo das vassouras, a questão: varrer ou não

Em: 24 de Março de 2001 Visualizações: 10204
O Cabo das vassouras, a questão: varrer ou não
Zeca Baré, morador do bairro Santa Etelvina, na zona norte, é tarado por Manaus. Adora sua cidade. Durante a semana, ele participou, sentado na platéia, do '1º Seminário Manaus, Vila, Cidade e Metrópole', promovido pela Prefeitura. Não perdeu uma só palestra. No final, ouviu o prefeito Alfredo Nascimento (PL) apresentar o projeto 'Centro Feliz' e convocar a população para amanhã, segunda-feira, ir varrer as ruas da cidade, num mutirão, junto com todos os secretários municipais.
Varrer ou não varrer, eis a questão que atormenta Zeca Baré. Ele pesa os prós e os contras desse dilema shakespeariano. Os prós: a cidade ficará mais limpa e, além disso, ele poderá flagrar o vereador Galo Carijó segurando o cabo da vassoura. Os contras: sua participação, aproveitada politicamente, será interpretada como apoio - que ele não quer dar - ao prefeito, fazendo com que o cabo de vassoura se transfigure em cabo eleitoral.
Essa é a preocupação de Zeca Baré, enquanto entra no banheiro, cantarolando "Porto de Lenha". O chuveiro, de onde cai apenas uma gota de lama, confirma que Manaus nunca será Liverpool. Zeca, então, xinga todas as mães sardentas de Lyon e a empresa francesa "Águas do Amazonas". Coloca a mão direita debaixo do queixo e o cotovelo sobre o joelho, como "O Pensador" de Rodin, senta-se no vaso sanitário e, com a veia do pescoço tufada, dá uma gostosa filosofada, refletindo sobre uma questão cabotina: afinal, o que é um cabo?
A VASSOURA DO CABO
"Um cabo - ele filosofa - é algo concreto, que a gente agarra com a mão, mas que não tem existência própria. Não é um ente em si, mas um ser para o outro. Precisa ligar-se a algum objeto para poder existir, pois um cabo é, sempre, cabo de alguma coisa. Sozinho, é apenas um pedaço de pau, sem nome e sem vida. O que lhe confere identidade é justamente o objeto, na outra ponta, que lhe permite exercitar sua 'cabacidade' e realizar-se enquanto cabo. O que faz de um cabo, um cabo, é, portanto, o objeto ao qual ele está anexado".
"Toda vassoura, da mesma forma que todo político, tem um cabo, conforme observou o filósofo dinamarquês Kierkegaard, no século passado. O cabo da vassoura só o é, se estiver acoplado a um objeto que serve para varrer. Nesse caso - e somente neste caso - o cabo é um cabo de vassoura, o que não ocorreria se na outra ponta houvesse uma faca, uma panela, uma frigideira ou um político. Neste último caso, amarrado a alguém que faça politicagem, o cabo seria eleitoral. De qualquer forma, esclarece Kierkegaard, a essência do cabo está sempre fora dele".
Depois dessas profundas reflexões metafísicas, Zeca Baré concluiu, de forma cabal, que "toda vassoura tem um cabo, mas em compensação nenhum cabo tem uma vassoura". Por isso, a língua portuguesa admite que se fale: 'o cabo da vassoura', reconhecendo a quem pertence o dito cujo. No entanto, ninguém diz o contrário: "a vassoura do cabo'. Ninguém diz? Ops! Pera lá! Diz sim! Digo eu, consciente de que neste caso a ordem dos fatores altera o produto.
As vassouras da cidade tem um cabo, sim senhor: o cabo Pereira, nome pelo qual o prefeito Alfredo Nascimento era conhecido no quartel. Foi ele quem convocou os moradores para que "demonstrem seu amor à cidade", limpando as ruas, praças e logradouros públicos, num mutirão comandado pessoalmente por ele próprio. Com isso, fica evidente que detrás do cabo das vassouras cívicas de Manaus - o Cabo Pereira - existe escondido, na realidade, um cabo eleitoral.
VASSOURAS CÍVICAS
O Cabo das vassouras quer que os moradores deixem seus afazeres amanhã e, voluntariamente, em mutirão, recolham o lixo, lavem calçadas e monumentos históricos, desentupam bueiros e galerias, consertem calçadas e meio fio, recuperem praças e jardineiras, troquem iluminárias, plantem árvores, combatam a pichação e a poluição sonora, renovem as sinalizações do trânsito, enfim, façam o mesmo que os paulistas fizeram, quando foram convocados por Marta Suplicy (PT) nos seus primeiros dias de governo na cidade de São Paulo. Lá, ela própria comandou também o mutirão.
Uma idéia boa merece ser copiada. Se o envolvimento dos moradores na defesa de sua cidade é bom para São Paulo, por que não pode também ser bom para Manaus? É aqui que o fiofó da cotia começa a assoviar. O Plano de Ação para o Centro Histórico de Manaus, coordenado pelo Secretário de Mercados e Feiras, Wilson Wolter, o popular Dáblio Dáblio, prevê - pasmem! - a retirada dos hippies das praças do centro e a repressão aos vendedores de mingau, croquete e tacacá. Pasmaram? Pois é!
No entanto, não é isso que diferencia um plano do outro. Ambos podiam conter as mesmas ações, que ainda assim seriam diametralmente opostos, porque o que dá significado a uma mensagem é o seu contexto. As mesmas palavras cantadas por Luiz Gonzaga, no Brasil de JK - "Espero a chuva, cair de novo, prá eu voltar pro meu sertão", na boca de Caetano Veloso, no exílio em Londres, durante a ditadura militar, ganham outro significado: chuva é democracia e sertão é o Brasil. O significado é diferente porque o contexto é diferente.
Qual é o contexto de São Paulo? Os paulistas convocados por Marta Suplicy vão varrer o centro histórico, porque sabem que lá o IPTU é cobrado de todo mundo e que as mansões dos Jardins pagam mais do que as casas populares. Os moradores, convocados para varrer as ruas, são também chamados para decidir sobre onde o dinheiro arrecadado deve ser gasto, no processo conhecido como orçamento participativo. Marta Suplicy tem existência própria: ela é a vassoura.
O CABO ELEITORAL
O contexto de Manaus é outro. Aqui, a mansão cinematográfica do Amazonino Mendes pagou de IPTU R$ 482,00 em 1999 e R$ 610,00 no ano passado, enquanto a Preta, minha irmã, hoje está pagando quase R$ 400,00 reais por uma casa popular na Cidade Nova. O Amazonino vai de cota única, o que lhe dá ainda 15% de desconto. A Preta - coitada - parcelou em sete vezes, não tem desconto, apenas o direito de concorrer a um sorteio de oito geladeiras e oito televisores.
Depois disso, como é que a Preta vai dizer pro 'Pão Molhado': "Meu filho, te veste que nós vamos varrer as ruas de Manaus". Nunca! A Preta foi lesada, mas não é lesa. Leitores indignados me escrevem jurando que o Galo Carijó apagou nos computadores da Prefeitura os débitos de ISS e IPTU daqueles que prometeram votar nele. Deus, meu Deus, minha alma ficará eternamente atormentada enquanto o Cabo das Vassouras não me disser que tudo isso é mentira.
O problema é que podemos copiar idéias de São Paulo, mas não podemos importar contextos. Zeca Baré, a Preta e o Pão Molhado, chamados para varrer o centro de Manaus, nunca foram convocados para dizer onde deve ser gasta a grana arrecadada pela Prefeitura. Acontece que o Cabo das Vassouras, como todo cabo, não tem existência própria. Kierkergaard tem razão: a essência do cabo está fora dele, lá na mansão do Tarumã, para onde ele, humilhado, leva seus tucumãs.
Esse contexto estraga qualquer idéia boa, inclusive o seminário sobre o Plano Diretor para Manaus, que poderia ter sido, talvez, um dos acontecimentos mais importantes para o destino do lugar onde nossos filhos e netos viverão. Dele participaram pessoas que tem um compromisso histórico, político e afetivo com nossa cidade: Roger Abrahim, Frederico Arruda, Sérgio Cardoso, Joaquim Marinho, José Alberto Machado, entre outros. O que eles disseram, foi muito interessante, mas nenhum vereador ouviu, porque todos eles escafederam-se, inclusive os três puxa-sacos que, eleitos pela oposição, pediram penico: Tony Ferreira, Sabidinho Castelo Branco e Luiz Fernando.
Te informo, leitor (a) que Zeca Baré, mesmo amando Manaus como ninguém, amanhã não vai varrer as ruas do centro. A Preta e o Pão Molhado também tiraram o time. Espero que tu compreendas suas razões.
P.S - 1. Uma rampa para deficientes construída com um poste bem no meio: esse foi um dos slides mostrado pelo arquiteto Roger Abrahim para ilustrar como Manaus nunca teve planejamento e controle urbano. 2. As cartas de leitores enviando votos serão usadas numa próxima ocasião. 3. Luis Fernando Malheiro, regente da Orquestra Filarmônica, fez uma molecagem inominável. Prometeu executar a 'Missa de São Félix', na missa de um mês de falecimento do maestro Dirson Costa, no dia 21 de março. Todo mundo esperando e ele não compareceu. Deixou bispo, amigos e viúva do falecido esperando inutilmente. Malheiro merece um tratamento especial: um Taqui Pra Ti exclusivo, só prá ele.

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