CRÔNICAS

O Brasil na panela: dá um caldo

Em: 10 de Junho de 2018 Visualizações: 17571
O Brasil na panela: dá um caldo

A cozinha de um país é sua paisagem colocada na panela. (Provérbio Catalão)

O Brasil inteiro cabe dentro de uma panela. Não me refiro à usada pelos “paneleiros” para derrubar uma presidente eleita. Tal panela é vazia e oca como seus usuários, ao contrário da outra, farta, cheia de ingredientes, condimentos, alimentos que geram turbulências quando não são transportados por caminhões pelas estradas para chegarem à cozinha do consumidor. Dentro dela cabem receitas, temperos, cheiros, sabores, festa, música, humor, literatura, economia doméstica, saúde, higiene e o quiabo a quatro.

Essa receita do Brasil está no livro editado pela EDUFF lançado recentemente na Livraria Icaraí, em Niterói – Discurso sobre alimentação nas enciclopédias do Brasil: Império e Primeira República – de Phellipe Marcel, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ele realizou a façanha de encher a panela com sua pesquisa de doutorado para analisar o Brasil dentro deste caldeirão: o Brasil caipira, rural, urbano e suas identidades. O Brasil, não a caricatura que a TV Globo quer no futuro, mas o que a gente tem agora.

O tema surgiu graças ao carinho das duas avós do autor que embaralharam narrativas, identidades e receitas e alimentaram o Phellipinho com pão de ló. A vovó Yolanda, carioca, filha de paraibanos e italianos, preparava ensopadinhos e doce de laranja-da-terra. A vovó Cícera, alagoana, descendente de índios com franceses, preparava um cuscuz imbatível, pudim de pão e galinha cabidela ou ao molho pardo, que dá água na boca só em falar. Pronto. Foi daí que nasceu o tema, temperado pelas avós de tantos brasis: latino, índio, negro.

Receita do Brasil

Mas um tema sozinho não faz verão, mesmo que o pesquisador se entregue apaixonadamente a ele como foi o caso. Faltavam os documentos e as ferramentas de análise. O autor, com gosto e vocação para a pesquisa, vasculhou os acervos da Biblioteca Nacional e da Academia Brasileira de Letras em busca de alimentos ali registrados, assim como aqueles que foram silenciados e apagados naquilo que historicamente se considerava alimentação do brasileiro.

Encontrou rico material, de cuja existência nem suspeitava. Consultou textos e uma rica bibliografia incluindo desde a Carta de Pero Vaz de Caminha até as crônicas e relatos de viajantes. Identificou os discursos sobre comida que circulam no Brasil nos livros de culinária, em almanaques, revistas, com o corpus de análise concentrado nas enciclopédias. Analisou prefácios, introduções, apresentações e notas dos editores na abertura das coletâneas,

E as ferramentas de análise? Ele foi buscá-las no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal Fluminense (UFF), que lhe forneceu os instrumentos conceituais e teóricos no campo da Análise do Discurso (AD), complementando a busca na Université Paris 13, sob a orientação segura da doutora Vanise Gomes de Medeiros.

O livro se dirige não apenas aos conhecedores desta área, mas também a nós – eu e muitos leitores – que não somos especialistas em AD. Para isso, define os conceitos usados na tentativa de apreender as filiações de sentido nas enciclopédias publicadas no período de 1863 a 1925 sobre a comida brasileira para revelar em que medida tal operação ajuda a entender o Brasil e os brasileiros.

O corte cronológico toma como ponto de partida uma das primeiras enciclopédias publicadas no Brasil – a Encyclopedia do Riso e da Galhofa em Prosa e Verso (1863) – e outras identificadas como fundadoras e que permitem reconstruir a história dos sabores: a Encyclopedia popular (1879) - a primeira de divulgação científica em nosso país; a Encyclopedia e Diccionario Internacional (1920), pioneira na organização em verbetes; o Thesouro da Juventude (1925) destinado à educação infantil, uma espécie de google da minha geração e, finalmente, O Cozinheiro Nacional (1870), o primeiro livro de culinária com receitas.

Dupla feijão-farinha

Com esse material, o autor mostra discursivamente como se dá nas enciclopédias a formação daquilo que vai sendo chamado de comida brasileira, bem como a constituição da identidade nacional que se constrói, entre outros materiais, com a culinária, talvez muito mais do que com o futebol. Mais do que no gramado e nos estádios, o Brasil está mesmo é na panela.

A tese torna evidente o apagamento do discurso sobre a formação da alimentação no Brasil no que diz respeito às influências e contribuições do negro e do índio, marginalizados em detrimento da herança lusa. O consumo de feijão, por exemplo, é registrado pelo viajante francês Saint-Hilaire, entre 1816 e 1822, em diferentes pratos com feijão-preto: “à moda brasileira”, “a modo dos colonos”, “em tutu”, “tutu à baiana” e até a “feijoada”. Mas as receitas não constam no Cozinheiro Nacional (1870).

- A dupla feijão-e-farinha de mandioca já era consumida antes da chegada dos portugueses, mas só vai aparecer como base da alimentação do brasileiro a partir de 1920, com a eclosão do movimento modernista. Apesar de muitos ingredientes, pratos e comidas indígenas terem sido apagados ou omitidos no discurso enciclopédico, o feijão e a farinha resistiram– escreve Phellipe Marcel.

Desta forma, o livro passa por outros sentidos sobre comida e sobre sujeito, abordando o discurso geopolítico que “nacionaliza” sabores e comidas, além do discurso médico, para o qual algumas comidas e ingredientes são básicos não só para o sujeito nacional, mas para toda a espécie humana. Discute o perigo da universalização, generalização e redução do sujeito a uma espécie biológica.

Ao discorrer sobre comida e alimentação, Phellipe Marcel reflete muito sobre a história desse Brasil imenso que, se cabe na panela, como a paisagem na cozinha catalã, não deixa de ter, dentro dela, conflitos, encontros, sabores e dissabores. Mas que dá um caldo, dá.

P.S. 1 Texto reelaborado a partir do prefácio escrito para o livro de Phellipe Marcel da Silva Esteves. O que se pode e se deve comer: uma leitura discursiva sobre sujeito e alimentação nas enciclopédias brasileiras (1863-1973) EDUFF. Niteroi. 2017, lançado em 2018. A tese defendida no final de 2014, contou com a seguinte banca: Vanise Gomes de Medeiros (orientadora), Bethânia Sampaio Correa Mariani, Helena Franco Martins, Maria Cristina Leandro Ferreira e José R. Bessa Freire.

P.S. 2 - A foto, evidentemente, foi postada no Face como sói acontecer. Aliás, diplomas só deviam ser reconhecidos depois da postagem das fotos da defesa nas redes sociais. 

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20 Comentário(s)

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Pedro Augusto Pinho comentou:
11/06/2018
Caros amigos Bom dia Como vagabundo (aposentado, no elevado entender de FHC), só chego ao computador às 10 horas. Mas tive a enorme satisfação de ler dois artigos magníficos: O Brasil da panela: dá um caldo e Não precisa explicar, este macaco cibernético só quer entender . O do Fernando já foi para o Coletivo Geólogos para Democracia e minha página no facebook. O do Bessa vai me obrigar a comprar o livro. Parabéns a ambos e muito obrigado. Até amanhã Fernando. Forte abraço Pedro Pinho
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Eva Ferreira comentou:
11/06/2018
Fiquei super interessada. Vou procurar como adquirir. Já estou pensando para a disciplina de historiografia.
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Lalita Paiva (via FB) comentou:
11/06/2018
Que delícia de texto Bessa! Sim, este prato do qual falei é bem brasileiro tapioca com abacate e tomate temperado. O livro, do texto, deve ser bem interessante. Eu tenho um livro de culinária dos índios Baniwa, muito interessante tb! Bjos
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Fernando Soares Campos comentou:
10/06/2018
Publicado no Pravda versão em portugues. http://port.pravda.ru/news/desporto/11-06-2018/45703-brasil-0/
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Isabela Torres de Castro comentou:
10/06/2018
Maravilha de texto professor José Bessa...lembrei da minha mãe e seu doce de laranja da terra...haha doce da minha infância...Abraço.
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Gerusa Pontes de Moura comentou:
10/06/2018
Estou completamente euforica para ter acesso a essa maravilha. A relação que faço com a comida é muito que tê-la no prato para comer. Me remete a forma como fui criada. Adorei !!!
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Isabela Thiago de Mello comentou:
10/06/2018
Só de imaginar aquela ova de acari bodó.....
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Renata Menezes (via FB) comentou:
10/06/2018
Amei, Jose Bessa. Vou correndo comprar o livro.
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Taquiprati (FB) comentou:
10/06/2018
O Phellipe informa que aAinda não chegou fisicamente a Manaus, não, mas que é possível comprar pelo site da Eduff: http://www.eduff.uff.br/.../680-discurso-sobre...
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Marly Cuesta comentou:
10/06/2018
Gratidão,querido Prof. José Bessa,por nos presentear com mais uma riqueza! E parabéns,também, ao brilhante Phellipe Marcel, Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), por tão especial missão! Vou procurar essa riqueza de Livro, aqui nas melhores livrarias! Ou tem algum número ou site para comprar? Bjs e luz,
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José da Silva Seráfico de Assis Carvalho comentou:
10/06/2018
Meu caro Babá, já foram enviados esemplares do livro para Manaus? Pretendo comprá-lo e lá encontrar o quiabo a quatro. Um abraço fraterno.
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Marcia Maria Marapodi dos Passos comentou:
09/06/2018
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Marta Bessa comentou:
09/06/2018
Muito bom! A Bethânia foi minha professora na pós, especialmente marcante. Minha primeira publicação sobre AD foi com a ajuda dela. Apresentei meu trabalho num congresso, que depois virou artigo, e ela estava sempre presente. Excelente pessoa e profissional.
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Juliana Bessa comentou:
09/06/2018
A Betânia foi também minha professora. Foi por pouco tempo, mas também marcante, gostei muiiiito. Estava sempre disposta a participar dos eventos e seminários que organizávamos.
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Alessandra Marques comentou:
09/06/2018
Interessante a pesquisa. Lembrei o depoimento de um palestino falando sobre esse apagamento e roubo (o termo educado é apropriação, mas não gosto dessas amenizações) da cultura culinária do seu povo pelos sionistas.
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Gleice Oliveira comentou:
09/06/2018
Olá Alessandra Marques, gostaria de saber mais sobre "o palestino falando sobre esse apagamento e roubo (o termo educado é apropriação, mas não gosto dessas amenizações) da cultura culinária do seu povo pelos sionistas.". Vc poderia indicar onde localizo?
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Ana Paula Freire Artaxo (via FB) comentou:
09/06/2018
Muito bacana! Fiquei com vontade de ler.
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Phellipe Marcel (via FB) comentou:
09/06/2018
Bessa, que beleza! Muito obrigado mesmo. Ficou muito legal!
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Marilza De Melo Foucher (via FB) comentou:
09/06/2018
O José Bessa é bom de boca! Um dia eu conto a historia do Pacu assado na farinha do areni que dona Lizoca mandou pra Paris....kkk Ela dá um taqui pra ti ocultando as vitimas, a quem foram sonegadas participar do banquete.!!!kkkk
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Ana Silva comentou:
09/06/2018
Adorei!! Quero ler! Maravilha de texto.
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