CRÔNICAS

Pedro Custódio, o filósofo da Mangueira na UERJ

Em: 11 de Março de 2018 Visualizações: 28723
Pedro Custódio, o filósofo da Mangueira na UERJ

“Tristeza não tem fim. Felicidade sim” (Tom Jobim).  

- Eu detesto alegria, porque a alegria não deixa a gente pensar, ao contrário da tristeza, que provoca a reflexão.

Quem falou assim foi Pedro Antônio Custódio, 58 anos, residente no morro da Mangueira, no Rio. Estávamos na sua salinha, no 12º andar da Uerj, por onde sempre passo bem cedo para um dedo de prosa, antes da aula das 7 hs no curso de pedagogia. Foi logo depois do carnaval. Eu havia lhe contado, crente que estava abafando, que na disciplina Movimentos Sociais e Educação - uma das quatro que ministro nesse semestre - iria projetar o desfile da Escola de Samba Paraiso de Tuiuti sobre a escravidão. Pedro desmontou meu entusiasmo com um piparote provocativo:

- Professor, me desculpe, mas escola de samba não conscientiza ninguém. É jogada da mídia. Amanhã todo mundo já esqueceu. Que consciência é essa que conta a escravidão - minha avó foi escravizada - com gente cantando de alegria, dançando, seminus, fantasiados, desfilando em carros coloridos e iluminados? O que me aborrece no carnaval é essa felicidade exibida que camufla a realidade. O brasileiro já vem programado com um microchip para ostentar alegria. Repare que ninguém mostra selfie da família chorando. Uma pose, um sorriso, um clique e pronto. A alegria é uma fantasia.

Paulo Prado, no livro “O Retrato do Brasil” publicado há quase cem anos, sustenta que a cultura brasileira é atravessada pela melancolia – eu disse, mas Oswald de Andrade considera que “a alegria é a prova dos nove”, o teste para checar se “tupi or not tupi”. Falei do Darcy Ribeiro, para quem “o povo brasileiro é mais alegre porque mais sofrido”. Pedro, que anotou os autores, deu um xeque-mate:

- Imagine, professor, as vítimas da guerra da Síria ou do genocídio nazista fazendo sambinha e desfilando alegremente gritando:

- Olha o holocausto aí, gente?

Senhora Tristeza

Esse é o Pedro que trabalha na Uerj há quatro anos, como prestador de serviços, na manutenção de computadores, dando suporte técnico ao setor de áudio e vídeo e, como seu homônimo, porteiro do céu, é ele quem guarda as chaves para abrir as salas de aula da Faculdade de Educação. De quebra, troca figurinhas com alguns professores e com eles filosofa.

- A felicidade me incomoda, porque é só um momento fugaz. Ela me tira do meu estado permanente de tristeza e me leva para algo que dura pouquíssimo tempo. Como posso festejar o sofrimento alheio? Quem disse que a gente veio ao mundo para ser feliz? A tristeza é produto da vida, está dentro de mim, enquanto a alegria a gente tem de buscar lá fora. Já dizia Salomão: “É melhor ir à casa de quem está de luto do que visitar quem está feliz”.

Lembrei que essas ideias já foram desenvolvida por Miguel de Unamuno, especialmente em “O Sentimento Trágico da Vida”, que discute o sentido da existência humana, a angústia, o embate entre o pensamento científico e o religioso. 

Pedro anotou os autores. O livro de Darcy Ribeiro, pediu-me emprestado, outros buscou no Google.  Músico como seu irmão José Luís Custódio, o Russo, mestre de bateria da Mangueira por mais de dez anos, Pedro apela para Tom Jobim:

- A felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar. Voa tão leve, mas tem a vida breve.

Contra ataco com o Samba da Benção de Vinicius:

- É melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que existe.

Pedro não se dá por vencido e lembra outra estrofe do mesmo samba:

- Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza (...) Porque o samba é a tristeza que balança. E a tristeza tem sempre uma esperança”.

- Acontece – eu digo – que Caetano reconhece que “a tristeza é senhora”, mas revela que “cantando eu mando a tristeza embora”. Precisamos cantar, Pedro!

- A canção – ele retruca – está comprometida com a arte e não necessariamente com a verdade. Não digo que gosto de ser triste, apenas observo que a gente convive permanentemente com a tristeza, mesmo os que fingem o contrário.

Indago, curioso, sobre sua história de vida, que ele me autoriza a publicar.

Tu és Pedro

Seus pais vieram de Lagoa Dourada (MG) ainda crianças, para o Rio, onde se casaram, residindo a vida toda na Mangueira. Pedro nasceu na Casa da Mãe Pobre, no Rocha, Zona Norte do Rio, em 28 de novembro de 1959, num parto complicado devido a um chute dado pelo pai na barriga da mãe gestante.  Foi retirado a fórceps, quando ainda não queria nascer, com duas pás alongadas de metal.  Sua avó materna, escrava, engravidou de um português. Por isso Mestre Russo, um dos cinco irmãos – são 3 homens e duas mulheres - nasceu louro.

A mãe, merendeira numa escola, sofria de depressão crônica e era espancada regularmente pelo pai alcoólatra, montador de ladrilhos numa fábrica de cerâmica. Os filhos também faziam fila para apanhar. Pedro escapou de grandes surras, porque desde criancinha teve grave problema na garganta, causador de uma febre reumática, que lhe tirou a mobilidade e provocou uma disfunção cardíaca. Operou do coração aos 8 anos no Hospital Alemão em Botafogo.

- Minha mãe me levava desde pequeno para a escola onde trabalhava e ali eu ficava o dia todo, de 7 às 18 hrs. Paralítico, permanecia no pátio, sentado quieto, espreitando e contemplando o mundo ao meu redor, registrando tudo com os olhos, com os ouvidos e, depois, desenhando, porque aprendi a desenhar. A limitação física não tirou minha liberdade de fazer escolhas. Por exercitar a observação, me tornei um observador.

Ele diz que não acredita na genética como formadora do caráter e da personalidade e que não acredita na raça como determinante da cultura. Raça não tem nada a ver com o comportamento das pessoas, afirma, como se tivesse lido Lévi-Strauss, mas é apenas o resultado de suas observações do mundo.  

Pedro fez curso de desenho técnico no SENAI e trabalhou 22 anos no setor comercial da Bagaggio como estoquista, vendedor e até gerente, além de atuar na portaria da Cruz Vermelha. Casou com dona Nadir com quem está junto há 35 anos e por quem se declara eternamente apaixonado.

- Foi essa paixão que me salvou – confessa.  O casamento não é algo que acontece, mas vai acontecendo. Um cede ali, outro aqui e assim vai casando, se encaixando. Recomeça outra vida. Quer continuar sendo quem você é? Então não case.

O casal teve dois filhos, Helena, hoje com 31 anos, professora e Lotar, 27 anos, formado em administração, além de dois netos, uma de 10 e outro de 6 anos. “Com eles demonstro minha afetividade, dando atenção, cuidado, carinho, falo baixo, não grito nunca. Mas não sei demonstrar afetividade com o toque físico, só através da fala. Não sou muito de abraçar, só abraço minha mulher” – ele diz.  

Duvidando da verdade

Homem de sete instrumentos, Pedro toca violão e compõe músicas evangélicas:

- Compor canções é saber esperar, é melodiar um sentimento, simplificar o que ainda não existe. Mas a arte também nos ensinar a mentir, maquiar, se esconder – ele diz, revelando que se afastou das igrejas “porque elas comercializam, entram no mercado e muitas vezes atrapalham e destroem quem quer conhecer Deus, com um repertório repetitivo, padronizado, cansativo”.  E completa:

- Gosto de duvidar das “verdades” estabelecidas, não para destruir, mas como caminho para descobrir coisas novas. Gosto de mexer na estrutura que o outro defende, gosto de ir lá na raiz e cortar. Por causa disso, o professor José Carlos Lima disse que a minha linha filosófica é a da desconstrução, conceito do Derrida, autor que eu desconhecia.

Depois disso, Pedro Custódio que estudou até o penúltimo ano do 2º. Grau, foi lá no Google buscar Jacques Derrida e autores que vão surgindo nas conversas com outros professores, entre os quais Sammy William Lopes.

Esse é o nosso Pedro, o filósofo da Mangueira na Uerj, inteligência privilegiada, que dá bolo em desembargador e dá nó em pingo d’água. Por isso, o convidei para dar uma aula comigo. Descontruiu tudo e saiu ovacionado pelos alunos.  

Fotos: Isa Silveira, Sérgio Maciel e Arquivo de Pedro Custódio. 

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23 Comentário(s)

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Rosem?re Santos comentou:
01/04/2018
Professor Bessa, Continuo admiradora de seus textos e de sua admirável compreensão da alma humana e seus valores. Se discordo ou concordo com as afirmações do Pedro sobre a tristeza, não é para mim o mais importante, o que conta mesmo é conhecer um pouco mais desse ser humano, que passa desapercebido muitas vezes, em nossa faculdade. Espetáculo de crônica. E viva o Pedro!!!
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Anne-Marie Milon Oliveira (via FB) comentou:
21/03/2018
Discordo um bocado do Pedro. Como diz o Toquinho: "Minha gente é gente desse país. Povo lindo, chora rindo, canta na Sapucaí " (https://www.letras.mus.br/toquinho/87275/). Mas valeu conhecer a história de vida dele!
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Sheila Penna (via FB) comentou:
13/03/2018
“Um sacode” com esse texto é para ficar pensando por muito tempo a respeito . Faz sentido . O não levar a sério nossos problemas deve ser um dos motivos de a cada dia nos tirarem mais direitos sem medo da reação
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Ivo Miranda Gomes (via FB) comentou:
13/03/2018
O riso e a lágrima, a tristeza e a alegria, o amor e o ódio são manifestações genuinamente humanas.
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Liz Rabello (via FB) comentou:
13/03/2018
O humor tira a venda dos olhos, de forma divertida, porém irreversível. As melhores charges políticas nos remetem ao riso e não ao pranto. Revela e se isto não traz reflexão, não sei então o que é crítica. Aliás, eu pergunto: Por que o governo federal, logo após o carnaval, colocou intervenção com exército nas ruas e morros do Rio?
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Rita Lustosa (via FB) comentou:
12/03/2018
De fato, cantar a escravidão na avenida com sorriso no rosto, samba no pé e purpurina no corpo, não é ter consciência de nada....
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Maria Do Carmo Lourenço (FB) comentou:
12/03/2018
A felicidade vale muito a pena nem que seja por alguns minutos!
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Manuel Pina (VIA FB) comentou:
12/03/2018
Há quem diga que tristeza não paga dívidas. Prometo que vou.refletir no caso .
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Liz Rabello comentou:
12/03/2018
Discordo que só a tristeza pode levar à reflexão. A alegria de uns e a raiva e tristeza de outros tb pode fazer milagres. Mesmo que assim seja, o corte certeiro no coração da Globo foi dado pelo carro alegórico dos tumbeiros dos manifestoches da Tuiuti. Isto calou os comentaristas e a emissora não gostou nenhum pouquinho.
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Fernando Soares Campos (via FB) comentou:
12/03/2018
Acaba de ser publicado no Portal Pravda - Rússia - versão em português - CPLP » Brasil - 12.03.2018 LEIA COMPLETO: http://port.pravda.ru/…/…/12-03-2018/45146-pedro_custodio-0/
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Goreth Paiva (via FB) comentou:
13/03/2018
Fernando Soares, já assistiu ou leu a fantástica fábrica de chocolates? Há uma fantástica crítica velada a aparente felicidade, ao trabalho, ao capitalismo, exploração, etc. A tortura e privação, mas com ares de alegria.
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Ivi Merlo (via FB) comentou:
11/03/2018
Caramba, professor. Que texto... obrigada por compartilhar com a gente. Agora fico com a indagação sobre a felicidade versus a tristeza. Será que dá para equilibrar? Não sei, mas Pedro me fez refletir.
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S. Nascimento comentou:
11/03/2018
Não concordo que devamos ficar exaltando nossas dores, sofrimentos e tristezas por aí. Sim, a alegria está no DNA dos brasileiros, o Carnaval é um jeito de extravasar o grito, de "chutar o balde", de "botar o bloco na rua". É legal que as Escolas de Samba transformem essas feridas da nossa história em música, em dança, em vibração positiva. Talvez não haja mesmo "conscientização" nenhuma, para isso seria preciso muito mais que um desfile, uma novela ou uma palestra qualquer, talvez fosse necessário, como ocorreu com o Pedro, um período de introspecção e observação prolongado, mas vale o peito batendo no mesmo ritmo da bateria, vale ouvir e repetir o samba enredo, quem sabe algum dia o que é dito na letra faça sentido? . "Cada um sabe a dor e delícia de ser o que é..." como disse Caetano. Gostei do jeito que o Pedro falou sobre o casamento, nunca tinha pensado assim, vamos casando... sim, isso é verdade. "Gostei", professor.
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Cecilia Coimbra (via FB) comentou:
11/03/2018
Muito BOM como sempre! Grata por um pouco de ar amiguinho querido!!!
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Hildo Honório do Couto comentou:
11/03/2018
Este Pedro Custódio é mais filósofo do que muitos dos filósofos acadêmicos que vemos por aí. Quanta sabedoria!
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Fátima Lourenço (via FB) comentou:
11/03/2018
Gostei muito e vou compartilhar esse texto maravilhoso ;) #UERJresiste
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Tarcisio Lage comentou:
11/03/2018
Gostei do companheiro. Talvez sua pedra no caminho seja deus. Deus não gosta de gente desmontando seu mundo de obediência, revezando tristeza com alegria.
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Ana Silva comentou:
11/03/2018
Excelente, adorei a crônica!!
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José da Silva Seráfico de Assis Carvalho comentou:
10/03/2018
Caro amigo Bessa, seu artigo, mais que reiterar a sensibilidade e o compromisso do autor, mostra quão pernóstico o acadêmico que acumula títulos que o fazem pensar-se superiores aos que sabem aprender com a vida, esse fenômeno que título algum não basta para compreender. Destaco - e, sobretudo por isso o cumprimento - sua coragem. levando o Pedro para junto de seus alunos, você com certeza desagradará muitos autossupostos conselheiros de Deus. O abraço fraterno de seu assíduo leitor. Na província, é certo.
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Maria Celina Muniz Barreto comentou:
10/03/2018
Muito bom conhecer a figura e saber da contribuição que está dando.
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Ligia Aquino (via FB) comentou:
10/03/2018
Adorei seu texto e tudo que foi narrado. Conheci mais um lado do Pedro, pessoa que está conosco no #UERJresiste.
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Jose Carlos Lima de Souza (via FB) comentou:
10/03/2018
Pedrão é o Jacques Derrida da Faculdade de Educação da UERJ!!!
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Jose Ribamar Mitoso (via FB) comentou:
10/03/2018
Preciso conhecer o filosófo Pedro, professor. Genial a observação estética sobre a ópera popular carnaval, talvez a mais sofisticada e complexa invenção artística da humanidade. Traduzindo para o " esteticês" o discurso dele sobre o desfile da Tuiuti, o que está dito é que o conteúdo com seu tema e visão de mundo trágica não encaixou na forma alegórica operistica da alegria esfuziante. Genial. Não li nada igual e com tanta precisão analitica da dialetica do conteúdo na forma e da forma no conteúdo. Muito grato por ter descoberto este artista e pensador anônimo da arte.
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