“Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?
(Samba enredo da GRES Paraíso de Tuiuti 2018)
- O pássaro do conhecimento só levanta voo se bater as duas asas de forma sincronizada: a da universidade e a do sambódromo. Com uma só, não decola.
Quem defendeu esse diálogo do saber acadêmico com a sabedoria popular foi Darcy Ribeiro, construtor de universidades e idealizador do sambódromo. Foi na manhã de 17 de fevereiro de 1997 no hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, horas antes de morrer. Ele nem podia imaginar que, exatamente vinte e um anos depois, uma ave – a Tuiuti, da família dos periquitos - iria sobrevoar a Marquês de Sapucaí, num voo ondulado, ritmado, soberbo, para narrar de forma dramática a história da escravidão. Uma escola, de samba, com uma aula magistral, preenche uma lacuna, já que a outra, do sistema escolar, é quase sempre omissa. Et pour cause.
Agora, no desfile das campeãs, Preto Velho, o sábio guia, indica de novo os caminhos percorridos pela humanidade. Manifesta visão crítica da história de carnificina, dor e sofrimento. Lembra que “onde mora a liberdade não tem ferro nem feitor”. Ensina com alas e carros alegóricos que por trás de todo monumento de cultura existe sempre a barbárie, como quer Walter Benjamin. Quem construiu as pirâmides do Egito e as ditas “civilizações” da Antiguidade: Babilônia, Grécia, Roma? Aristóteles e os filósofos gregos, se tivessem que plantar o que comiam, teriam tido tempo para filosofar?
Dona Rufina
No carro abre-alas Quilombo Tuiuti, inspirado nas fortificações das aldeias africanas, desfilam rinocerontes. Outro carro conta como foi o tráfico de escravos. A comissão de frente, com seu grito de liberdade, traz negros acorrentados açoitados por um feitor, invocando suas entidades:
- Ê Calunga, ê!
Diante de nossos olhos desfilam o regime de trabalho, a mineração, os engenhos, gentes das nações mandiga, cabinda, haussá e até um rei Egbá preso na corrente: “Sofri nos braços de um capataz. Morri nos canaviais onde se plantava gente”. Na ala da Velha Guarda, dona Rufina, 92 anos, resplandecente e luminosa, samba com graça numa cadeira de rodas, deslizando pelo asfalto a história da resistência.
A pergunta-enredo que não quer calar ecoa pelo sambódromo 130 anos depois da assinatura da chamada Lei Áurea:
- Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?
A resposta é dada pelo último carro, o “Neo Tumbeiro”. Um navio negreiro atual transporta na parte inferior trabalhadores – os guerreiros da CLT - que erguem, em protesto, suas carteiras de trabalho. No andar intermediário, mãos gigantes manipulam fantoches – os “manifestoches” - batendo panelas com seus narizes de palhaço e suas camisas amarelas, sem suspeitar, coitados, que foram usados. No alto, a elite política e econômica, com sacos cheios de dinheiro, sustenta o “Vampiro Neoliberalista” com uma faixa presidencial. Os patos da FIESP bailam. E coisa inédita: aparece um tucano preso, antes de ter um habeas-corpus concedido vocês sabem por quem.
Essa leitura do país foi possível porque as duas asas do pássaro, na metáfora de Darcy Ribeiro, bateram juntas. O carnavalesco Jack Vasconcelos e seu assistente Léo Morais, professor de história, partiram do princípio de que “a história é a ciência dos homens no tempo”, como propõe a Escola dos Anais, reelaborando as relações passado, presente, futuro. Consultaram pesquisas sobre a escravidão realizadas pela universidade, cruzaram com a tradição oral e apresentaram o resultado na linguagem do sambódromo.
O desfile acadêmico
Pela primeira vez o conhecimento acadêmico, fertilizado e transfigurado pela cultura popular, desfila no carnaval em todo seu esplendor, ao alcance dos não iniciados. Pela primeira vez, como numa tese de doutorado, uma Escola de samba, sem qualquer pedantismo, divulga nas redes as fontes bibliográficas de seu samba-enredo. O protocampesinato negro nas Américas do saudoso Ciro Flamarion comparece na passarela do samba ao lado do tráfico de escravos de Pierre Verger, do dicionário da escravidão negra no Brasil de Clóvis Moura, da escravidão no Brasil de Jaime Pinsky, da escravidão na África de Paul Lovejoy e de tantos outros (Ver referências abaixo)
No entanto, quem acompanhou o desfile pela televisão olhava uma coisa e ouvia outra, porque “ninguém no estúdio da Globo se atreveu a narrar o que via. Uma cena patética e constrangedora. Durante longos minutos as imagens mostravam uma plateia vibrando com o carro alegórico que trazia em destaque um Temer Vampirizado” como observou o jornalista Florestan Fernandes Jr., para quem “só faltou a Tuiuti mostrar os repórteres escravos de seus senhores, que não têm liberdade sequer para dizer o que todos viram em cores e ao vivo”, numa referência ao “jornalismo escravizado”.
Mas não foi só isso. Os comentaristas despreparados desconheciam o que foi escrito sobre o tema, tanto no campo da literatura quanto dos ensaios de história. Na passagem do carro com tráfico de escravos não foi feita qualquer alusão ao poema épico “O Navio Negreiro” de Castro Alves, presente nas entrelinhas do samba enredo:
- “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura, se é verdade, tanto horror perante os céus”.
Os espectadores muito ganhariam com uma reverência ao poeta dos escravos, que não quer que a bandeira do Brasil sirva de mortalha a um povo e implora a José Bonifácio, o patriarca da Independência, para arrancar o pendão brasileiro dos ares e a Colombo para fechar a porta dos mares.
Memória de elefante
O jornalismo também levantaria voo caso buscasse ficar antenado com a academia. Os organizadores do livro “Nas rotas do Império” - João Fragoso, Manolo Florentino, Antônio C. Jucá e Adriana Campos – poderiam ter sido convidados para fazer comentários elucidativos sobre o enredo. Os locutores da Globo ganhariam com a leitura do artigo de Ana Lugão Rios, que foi professora de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e, posteriormente da Pós-Graduação em História Social da UFRJ. São vinte e três páginas esclarecedoras com o título “Não se esquece um elefante: notas sobre os últimos africanos e a memória d’África no Vale do Paraíba”.
A historiadora Ana Lugão trabalhou documentação sobre os registros de africanos nas fazendas do antigo vale do café e recolheu narrativas de seus descendentes em diálogo com o Laboratório de História Oral da UFF. Seu Cornélio, de 82 anos, dona Benedita e vários outros mostraram que seus avós escravizados foram capazes de imprimir na memória dos netos as lembranças da mãe África. No caso de dona Benedita, os avós tiveram a aldeia incendiada, foram presos, amarrados e trazidos de Moçambique para o Rio, onde desembarcaram no cais do Valongo e foram leiloados, como gado.
O cais do Valongo fica ali ao lado do Cemitério dos Pretos Novos, descoberto em janeiro de 1996, quando os pedreiros que reformavam a casa da família Guimarães, ao quebrarem o piso, encontraram ossos humanos junto à terra revolvida. Arqueólogos e historiadores identificaram ali o cemitérios de cativos recém chegados ao porto do Rio de Janeiro, ainda não “amansados”, denominados de pretos novos. Sepultada por camadas de cimento, a memória subterrânea aflorou.
Foi ai que o casal Guimarães musealizou o local criando o Instituto dos Pretos Novos, agora ameaçado de fechar suas portas porque a pequena verba de manutenção foi cortada pelo prefeito Marcelo Crivella. Sua localização bem próxima ao sambódromo, na Gamboa, debaixo dos narizes do estúdio da Globo na Sapucaí, permite que de lá seja ouvido o som das baterias das escolas que desfilam.
Dona Benedita contava para os netos que lá na África tinha um bicho chamado elefante que era do tamanho da casa em que branco mora, conforme depoimento à Ana Lugão, cujo artigo conclui:
“Dizem que um elefante nunca esquece. Também é difícil esquecer um elefante”.
O desfile do Paraíso de Tuiuti retransmitido para o mundo inteiro reacendeu a lembrança do elefante da escravidão.
P.S. Agradeço a interlocução da historiadora Ana Paula da Silva que me fez lembrar que ninguém que conviveu com Ana Lugão a esquece.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO SAMBA-ENREDO DA GRES PARAÍSO DE TUIUTI
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http://www.elorejiverde.com/el-don-de-la-palabra/3909-el-desfile-ejemplar-de-paraiso-de-tuiuti
EL PRETO VELHO, LOS PRETOS NOVOS Y EL VUELO DE TUIUTI: NUNCA SE OLVIDA UN ELEFANTE
José R. Bessa Freire - Diário do Amazonas
Dios mío, Dios mío se extinguió la esclavitud?
(Tema de la Escuela de Samba “Paraíso de Tuiuti” 2018)
- El pájaro del conocimiento solamente levanta vuelo cuando agita las dos alas de forma sincronizada: la de la universidad y la del sambódromo. Con una sola, no puede volar.
Quien defendió ese diálogo del saber académico con la sabiduría popular fue Darcy Ribeiro, constructor de universidades e idealizador del sambódromo. Fue una mañana del 17 de febrero de 1997 en el hospital Sarah Kubitschek, en Brasilia, horas antes de morir. Él no podía imaginar que exactamente veintiún años después, un ave – Tuiuti, de la familia de los periquitos - iría sobrevolar la avenida Marquês de Sapucaí (en el sambódromo), con un vuelo ondulado, ritmado, soberbio, para narrar de forma dramática la historia de la esclavitud. Una escuela, de samba, con un aula magistral, viene a llenar una laguna, ya que la otra, la del sistema escolar, es casi siempre omisa. Et pour cause.
Ahora, en el desfile de las escuelas campeonas, Preto Velho, el sabio guía, indica de nuevo los caminos recorridos por la humanidad. Manifiesta una visión crítica de esa historia de masacre, dolor y sufrimiento. Recuerda que “donde hay libertad no hay fierro ni capataz”. Enseña con alas y carros alegóricos que detrás de todo monumento de cultura existe siempre barbarie, como dice Walter Benjamín. ¿Quién construyó las pirámides de Egipto y las llamadas “civilizaciones” de la Antigüedad: Babilonia, Grecia, Roma? Aristóteles y los filósofos griegos, si tuvieran que plantar lo que comían, ¿tendrían tiempo para filosofar?
Doña Rufina
En el carro principal - abre-alas - Quilombo Tuiuti, inspirado en las fortificaciones de las aldeas africanas, desfilan rinocerontes. Otro carro cuenta como fue el tráfico de esclavos. La comisión de frente, con su grito de libertad, lleva negros encadenados, azotados por un capataz, invocando sus entidades:
- Ê Calunga, ê!
Ante nuestros ojos desfilan el régimen de trabajo, la minería, los ingenios azucareros, gentes de las naciones mandiga, cabinda, haussá y hasta un rey Egbá preso a unas cadenas: “Sufrí en las manos de un capataz. Morí en los cañaverales donde se plantaba gente”. En el ala de la Velha Guarda, doña Rufina, 92 años, resplandeciente y luminosa, baila samba con gracia en una silla de ruedas, deslizando por el asfalto la historia de la resistencia.
La pregunta del tema que resuena por todo el sambódromo, 130 años después de firmada la llamada Lei Áurea que proclama la abolición de la esclavitud:
- Dios mío, Dios mío ¿se extinguió la esclavitud?
La respuesta está en el último carro, el “Neo Tumbeiro”. Un navío negrero actual transporta en la parte inferior trabajadores – los guerreros de la CLT (*) - que yerguen, en protesto, sus cédulas de identidad laboral. En el piso intermediario, manos gigantes manipulan títeres – los “manifestoches” - que con narices de payaso y sus camisas amarillas golpean cacerolas, sin sospechar, pobres!, que aquel cacerolazo beneficiaba a sus adversarios. En la parte alta del carro, la élite política y económica, con sacos llenos de dinero, sustenta el “Vampiro Neoliberal” con una banda presidencial. Los patos de la FIESP (**) bailan. Y algo inédito: aparece un tucano (***) preso, antes de obtener un habeas-corpus concedido Uds. saben por quién.
Esta lectura del país fue posible porque las dos alas del pájaro, en la metáfora de Darcy Ribeiro, funcionaron sincronizadas. El carnavalesco Jack Vasconcelos y su asistente Léo Morais, profesor de historia, partieron del principio de que “la historia es la ciencia de los hombres en el tiempo”, como propone la Escuela de los Anales, reelaborando las relaciones pasado, presente, futuro. Consultaron investigaciones sobre la esclavitud realizadas por la universidad, cruzaron con la tradición oral y presentaron el resultado en el lenguaje carnavalesco del sambódromo.
Periodismo esclavizado
Por primera vez el conocimiento académico, fertilizado y transfigurado por la cultura popular, desfila en carnaval en todo su esplendor, al alcance de los no iniciados. Por primera vez, como en una tesis de doctorado, una Escuela de samba, sin cualquier pedantismo, divulga en las redes las fuentes bibliográficas de su tema de samba. El proto-campesinado negro en las Américas del recordado Ciro Flamarion comparece en la pasarela del samba al lado del tráfico de esclavos de Pierre Verger, del diccionario de la esclavitud negra en Brasil de Clóvis Moura, de la esclavitud en Brasil de Jaime Pinsky, de la esclavitud en África de Paul Lovejoy y de tantos otros (Ver referencias abajo)
Sin embargo, quien siguió el desfile por la televisión veía una cosa y oía otra, porque “nadie en el estudio de la red Globo se atrevió a narrar lo que veía. Una escena patética y embarazosa. Durante largos minutos, las imágenes mostraban una platea vibrando con el carro alegórico que traía en destaque un presidente Temer “Vampirizado” como observó el periodista Florestan Fernandes Jr., para quien “solo faltó el desfile de la Tuiuti mostrar a los propios reporteros como esclavos de sus señores, sin libertad para decir lo que todos vieron a colores y en vivo”, una referencia al “periodismo esclavizado”.
Pero no solamente fue eso. Los comentaristas sin preparo desconocían lo que existe escrito sobre el tema, tanto en el campo da literatura como en los ensayos de historia. Cuando ante las cámaras desfilaba el carro con tráfico de esclavos, no se hizo ninguna alusión al poema épico “O Navio Negreiro” de Castro Alves, sobrentendido a lo largo de todo el tema del samba:
- “Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura, se é verdade, tanto horror perante os céus”.
Los espectadores reconocerían un gesto de reverencia al poeta de los esclavos, que no quiere que la bandera de Brasil sirva de mortaja a un pueblo e implora a José Bonifácio, el patriarca de la Independencia, para que arranque el pendón brasileño de los aires y a Colón para que cierre el acceso a los mares.
Memoria de elefante
El periodismo también podría levantar vuelo si buscase volar con las antenas ligadas a la academia. Los organizadores del libro “Nas rotas do Império” - João Fragoso, Manolo Florentino, Antônio C. Jucá y Adriana Campos – podrian haber sido convidados para hacer comentarios ilustrativos sobre el tema. Los locutores de la red Globo ganarían con la lectura del artículo de Ana Lugão Rios, que fue profesora de Historia de la Universidade Federal do Amazonas (UFAM) y, posteriormente del Post-Grado en Historia Social de la UFRJ. Son veintitrés páginas esclarecedoras con el título “Não se esquece um elefante: notas sobre os últimos africanos e a memória d’África no Vale do Paraíba”.
La historiadora Ana Lugão trabajó documentación sobre los registros de africanos en las haciendas del antiguo valle del café y recogió narrativas de sus descendientes en diálogo con el Laboratorio de Historia Oral de la UFF – Universidade Nacional Fluminense. Seu Cornelio, de 82 años, doña Benedita y otros mostraron que sus abuelos esclavizados fueron capaces de imprimir en la memoria de los nietos los recuerdos de mamá África. En el caso de doña Benedita, a los abuelos les incendiaron la aldea, fueron presos, amarrados y llevados de Mozambique a Rio de Janeiro, desembarcando en el cais do Valongo donde fueron a subasta pública, como ganado.
El muelle de Valongo queda al lado del Cementerio de los Pretos Novos, descubierto en enero de 1996, cuando los albañiles que reformaban la casa de la familia Guimarães, al quebrar el piso, encontraron huesos humanos. Arqueólogos e historiadores identificaron allí cementerios de cautivos recién llegados al puerto de Rio de Janeiro, que todavía no habían sido “amansados”, denominados pretos novos. Sepultada por camadas de cemento, la memoria subterránea afloró.
Fue ahí que el matrimonio Guimarães musealizó el local creando el Instituto dos Pretos Novos, ahora amenazado de cerrar sus puertas porque el prefecto de Rio, Marcelo Crivella, cortó la pequeña verba de manutención. Su localización muy próxima al sambódromo, en Gamboa, debajo de las narices del estudio de la red Globo en la avenida Sapucaí, permite que de allí se oiga el retumbe de las baterías de las escuelas que desfilan.
Doña Benedita les contaba a sus nietos que allá en África había un animal llamado elefante que era del tamaño de la casa en que viven los blancos, conforme declaración a Ana Lugão, cuyo artículo concluye:
“Dicen que un elefante nunca olvida. También es difícil olvidar un elefante”.
El desfile de Paraíso de Tuiuti retransmitido en todo el mundo reavivó el recuerdo del elefante de la esclavitud.
(*) CLT – Legislación brasileña sobre el régimen de trabajo.
(**) FIESP – Federación Patronal de la Industria de São Paulo.
(***) Tucano – pájaro que simboliza el Partido PSDB, por lo cual el senador Aécio Neves se presentó como candidato a presidente de la república, antes de ser denunciado su participación activa en la corrupción.