"A literatura é uma das formas de felicidade; talvez nenhum outro escritor tenha
me proporcionado tantas horas felizes como Chesterton”. (Jorge Luis Borges)
Quando o procurador-geral da República (PGR), Rodrigo Janot, disparou nesta quinta-feira (14) suas flechas de bambu, acertou com pontaria certeira o chefe do Poder Executivo Michel Miguel Elias Temer Lulia, acusando-o de chefiar uma organização criminosa que embolsou mais de meio bilhão de reais em propinas. A notícia me evocou dois personagens: o padre Brown, sacerdote-detetive e o homem que era quinta-feira, criados pelo escritor inglês G.K. Chesterton, autor de contos e romances policiais.
Padre Brown, o personagem mais conhecido, aparece em livros como: “A Inocência do padre Brown” (1911) e outros com palavras no título como sabedoria, incredulidade, segredo, seguidas sempre de seu nome, sendo o último deles “O escândalo do Padre Brown (1935). Ele só consegue desvendar os crimes porque, como hoje um procurador, está habituado a ouvir confissões, o que lhe permite conhecer a natureza humana e penetrar na mente e no coração do delinquente. Um dos criminosos, numa espécie de delação premiada, se torna até seu amigo e o ajuda a desvendar outros crimes.
O ladrão do conto “A Cruz Azul”, centralizado no roubo de uma cruz de safira, é “fichinha” diante dos integrantes do quadrilhão do PMDB (vixe vixe) acusados pela Polícia Federal e pela PGR de assaltar os cofres públicos e de abocanhar propinas. Loures foi filmado – o Brasil inteiro viu – correndo com uma mala cheia de dinheiro. Geddel com malas contendo mais de 51 milhões de reais. Temer foi gravado de noite no porão do Palácio Jaburu. Está tudo documentado: depoimentos de delatores, áudios, gravações de telefones grampeados, mensagens de texto, planilhas secretas do Drousys.
Realismo fantástico
Rodrigo Janot nos brindou um documento suculento de 245 páginas com uma versão dos acontecimentos que nada fica a dever ao padre Brown. O sacerdote-detetive, a partir de pistas fragmentadas deixadas pelos delinquentes, consegue elaborar sentidos e dar inteligibilidade para desvendar os crimes. Janot faz uma costura convincente e coerente, a partir de provas robustas e de indícios claros que identificam os membros da quadrilha chefiada por Temer e seus cúmplices Eliseu Padilha, Moreira Franco, Henrique Alves, Rocha Loures, Eduardo Cunha e Geddel Vieira.
A resposta do acusado de ser o chefe veio na nota oficial distribuída pela Secretaria de Comunicação da Presidência. Na impossibilidade de contestar as provas, ataca a pessoa do procurador, afirmando que ele “quer encobrir suas próprias falhas”, lança “graves suspeitas sobre os depoimentos” e denuncia a “falta de credibilidade” de seus acusadores. Utiliza qualificativos genéricos para as graves acusações como “embustes, ardis e falcatruas”, sem responder específica e pontualmente a nenhuma das acusações concretas.
A nota acusa o procurador de fazer o que ele, o inquilino do Jaburu, fez e faz: “encobrir a necessidade urgente de investigação sobre pessoas que integraram sua equipe”. Janot, pelo menos, pediu a prisão de Marcelo Miller, seu ex-auxiliar, enquanto Temer, que prometeu em fevereiro afastar qualquer ministro denunciado, agora recuou, mantendo Padilha e Moreira Franco que, dessa forma, mantém o foro privilegiado.
A única sacação da nota, ainda no campo literário, é quando classifica a peça de acusação como “realismo fantástico”. É que a versão costurada por Janot realmente acaba sendo mais verdadeira que a realidade, elucida melhor o que de tão aberrante parece não ter explicação. Realismo fantástico é Loures correndo, em pulinhos saltitantes com mala cheia de dinheiro como as malas escondidas por Geddel num apartamento, é Temer no porão do Jaburu dando aval a JBS para comprar o silêncio de Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro, ambos presos. Aqui concordamos com Temer: os fatos são mesmo “absurdos”.
Ataques à razão
Da mesma forma que o padre Brown, Janot sabia, e com ele toda a torcida do Flamengo e do Corinthians, que estava tratando na delação premiada dos irmãos Batista com criminosos, portanto com riscos possíveis de ‘honestidade discursiva’. Já o habitante do Jaburu tratava com o mesmo ‘empresário, maior produtor de proteína do mundo’, recebido no porão da residência oficial, incógnito, em uma situação nada republicana, não esclarecida nem respondida até agora.
O inquilino provisório do Jaburu jura que quem o acusa, “numa manobra irresponsável”, quer parar o país. Com as mãozinhas dançarinas, considera as críticas e denúncias como um ataque ao “Brasil que está dando certo”, confundindo os interesses do país com os do quadrilhão do PMDB que ele comanda. Quanta vergonha para todos nós! Quanta impotência!
Tivesse um pingo de vergonha, ele renunciaria. O padre Brown consegue regenerar um criminoso, pedindo que abandone sua vida de bandido, invocando três qualidades dele que Temer não tem:
- Ainda há juventude, honra e humor em você, não ache que isso vai durar muito tempo. Homens podem manter um nível de bondade, mas nenhum jamais conseguiu manter um nível de maldade. Essa estrada vai sempre cada vez mais ladeira abaixo”.
No romance “O homem que foi quinta-feira” Chesterton descreve o Concelho Central de Anarquistas, formado por sete homens, membros infiltrados da polícia no movimento libertário, cada um deles com o nome de um dia da semana. Domingo, o chefe, reclama, da mesma forma que Temer, que tem sido caçado como um lobo, e anuncia desafiador:
- “Nunca me apanharam. Os céus hão de cair sem que eu seja encurralado”.
O habitante provisório do Jaburu tem um discurso similar, confiante que os deputados que estão no seu bolso não deixarão que seja investigado. Suas palavras soam como a de Geddel, seu ex-ministro, agora preso, que rechaçou “categoricamente a denúncia”, alegando – vejam só! - a “inegável fragilidade narrativa e probatória” da acusação de Janot. O homem das malas com milhões grunhiu cinicamente isso para o país e até agora não deu nenhuma explicação, sequer mentirosa, sobre a origem dos 51 milhões que embolsou.
Sabe como o padre detetive descobre que um de seus personagens era ladrão? Porque ele atacou a razão. “Você agrediu a inteligência” – diz o padre Brown. Se as provas de Janot não são suficientes, a agressão do quadrilhão à nossa inteligência é prova irrefutável do crime.