CRÔNICAS

O RÁDIO DA LUZIA

Em: 29 de Março de 1994 Visualizações: 3306
O RÁDIO DA LUZIA

Nem mesmo o Geraldão, que se gaba de conhecer a idade de todos os moradores do bairro de Aparecida, sabe quantos anos a Luzia tem. Ninguém sequer suspeita a idade dela. O tempo que passa e vai semeando rugas e cabelos brancos em todo mundo, não tocou na Luzia. A Luzia é intangível.

As águas do rio Negro subiram e desceram dezenas de vezes. As folhas dos benjaminzeiros e dos oitis-cagões da rua Xavier de Mendonça secaram e caíram anos após ano. Seus troncos apodreceram ou foram decepados. As próprias árvores deixaram de existir e, com elas, muita gente boa. A Camélia, por exemplo, foi uma que não resistiu: caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu. Sua irmã Rosa ficou despetalada na briga com o Cravo.

A nega Luzia, no entanto, permanece imutável através de tantos carnavais. Mantém a mesma cara e o mesmo corpo franzino que tinha há meio século quando o bonde descia até o Plano Inclinado fazendo “dlém-dlém”. Os trilhos do bonde, que eram de ferro, se foram, mas a Luzia ficou. A Luzia, que gosta de ser chamada de neguinha, é eterna.

Junto com a Leonor, que fez um curso de cabeleireira lá na Paraíba, Luzia é uma das pessoas mais importantes da rua Carolina Neves. Se o Carlos Zamith abrir o seu imperdível “baú velho, vai encontrar lá dentro, novinha em folhas, a Luzia, miudinha, sempre prestativa e solidária, torcendo pelo time do bairro, o Independência.

Parece que a Luzia chegou a brincar na sua infância de manjalé-toma-xícara-de-café com o Dodô, filho do seu Nicolau e da dona Domiciana. Parece. O Dodô, de nome Heliodoro Balbi, morreu em 1918 lá no Acre, foi enterrado no Cemitério São João Batista, em Manaus, e virou nome de praça. A Luzia continua aí, firme e forte, repartindo vida. A Luzia é imortal? Tomara.

Diariamente, às 6h00 da manhã, você vai encontrar a Luzia sentadinha no batente da sua porta, com um rádio marca Tecsun de manivela de emergência no colo. É um rádio de cor cinza de vinho de patauá comprado no Sukatão do Jumbinho.

O rádio da Luzia tem uma propriedade singular: ele funciona com uma bateria que não gasta nunca, eterna como a sua dona, e que além de alimentar o próprio som, ainda serve para dar luz a uma lanterna colocada em uma de suas extremidades. É um aparelho multifacético, que produz som e luz ao mesmo tempo.

O leitor já ouviu falar de “manica”? Esse era o nome dado pelos mecânicos de Manaus à manícula, uma manivela que fazia o papel do motor de arranque dos carros das décadas de 1940. Depois da guerra, se deixou de fabricar essas “fubicas”, cujo motor de partida era virado manualmente.

Pois bem, o rádio da Luzia tem uma “manica”. Você liga o bicho e enquanto a música está tocando, você vai virando manualmente a manivela para carregar a bateria. Trata-se, segundo os entendidos, de um mecanismo banal. Talvez devido à ignorância nesses assuntos, confesso meu fascínio diante de qualquer engenhoca dessas. Por isso, acabo sendo presa fácil de qualquer camelô bem falante. Há dois meses, quando passei por Manaus, ao ver o rádio-lanterna com manivela, não me contive:

- Luzinha, maninha, me empresta teu rádio? Só para dar uma voltinha...

Ela me emprestou diante de duas testemunhas: o Joreca, filho da Leonor, e o Gustavo-Centavo, filho do seus Isperes. Dei uma voltinha. Foi uma sensação indescritível. A rádio estava sintonizada no programa do radialista Marcos Santos. Enquanto eu rodava a manivela, o Marcos ia dando o serviço, provocando a ilusão de que ele só conseguia falar porque eu estava girando a “manica” e que eu tinha o controle de sua fala, porque se parasse de carregar a bateria, ele se calava.  

E daí? O que é que a rádio da Luzia tem a ver com os vereadores ressarcidos? – pergunta o leitor sedento de justiça.

Respondo, olhando os teus olhos injetados de sangue:

- Tudo! Ou melhor, qualquer coisa tem a ver com os ressarcimentos médicos imorais, tema obsessivo das nossas conversas mais recentes. Podemos “filosofar” um pouco, usando a metáfora da rádio com seus ouvintes para discutir a relação do eleitor com seu representante municipal. Uma quadrilha tal como é tipificada pelo Código Penal se formou na Câmara Municipal para assaltar os cofres públicos, forjando consultas médicas e hospitalares caríssimas para se apropriar dos recursos através dos ressarcimentos.

Temos que girar a manivela para que um pequeno número de vereadores honestos falem por nós e resolvam a questão. Queremos que o Jefferson Peres, o Aloisio Nogueira, a Vanessa Grazziotin, o Serafim Correa e o Francisco Praciano lutem e decidam em nosso nome, punindo os responsáveis e obrigando-os a devolver a grana roubada do erário.

Todos esses nomes já deram provas de que são confiáveis. Mas isso não basta. Eles são maioria na sociedade, mas minoria na Câmara Municipal. Estão lutando contra uma máfia, uma quadrilha poderosa. A bateria deles vai descarregando e sofrendo o desgaste natural do uso e da luta. A gente não pode se limitar apenar a ler uma notícia no jornal e, passivamente, concordar ou discordar. É necessário lutar junto, correr riscos, usar a manivela e recarregar as baterias deles, como a Luzia faz com sua rádio.

Esses vereadores comprometidos com a causa pública precisam sabe que nós, leitores, estamos com eles, independente mesmo da questão partidária. Que nós achamos que eles estão agindo corretamente, quando exigem punição aos seus colegas que delinquiram. Que eles constituem a parte sadia da sociedade que a gente quer construir para os nossos filhos. Podemos comunicar isso por telefone, telegrama, carta e até pessoalmente, quando os encontrarmos e, depois, com o próprio voto).

Não podemos permitir que a quadrilha dos ressarcidos esmague e pulverize aqueles que estão lutando pelos interesses da coletividade. Esse é o segredo da eternidade da Luzia: ela participa ativamente, criando as condições para que seu rádio funcione sempre que ela precisa. Por isso, ela e seu rádio não envelhecem nunca.

- Luzia, maninha, empresta teu rádio. Deixa a gente dar uma voltinha na “manica” para reabastecer a bateria daqueles que lutam contra a quadrilha dos ressarcidos.

P.S. – Em discurso memorável quando perdeu a diplomação de deputado federal, Heliodoro Balbi declarou, segundo seu biógrafo Anísio Jobim: “Os ladrões da minha terra são tão audaciosos que escalariam o céu se lhes dissessem que as estrelas eram libras esterlina”. Convertendo a libra para o dólar, a situação permanece como a Luzia: não mudou nada. Correspondência para José R. Bessa. Caixa Postal 105.094. CEP 23231-97-. Niterói-RJ).

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