Não vou comentar as notícias dessa semana sobre o Supremo Tribunal Federal, que consumiu dias e dias mobilizando magistrados, mídia e advogados, e gastou rios de dinheiro e muito latim só para decidir – vejam só – se deve ou não abrir processo para apurar as responsabilidades de ministros, deputados, banqueiros e empresários - alguns deles réus confessos - nos crimes de peculato, formação de quadrilha e corrupção ativa.
Prefiro relembrar aqui outro fato de enorme atualidade, embora tenha ocorrido há 80 anos. Na madrugada de 23 de agosto de 1927, os operários Sacco e Vanzetti, que migraram da Itália para os Estados Unidos, foram executados na cadeira elétrica, acusados de um crime que não cometeram. Vale a pena mostrar como se comportaram as instituições norte-americanas: Judiciário, polícia, mídia, advogados, opinião pública, porque isso talvez nos proporcione algumas lições.
Anarquistas graças a Deus
Nicola Sacco (1891-1927), nascido na Itália, era um mecânico desempregado que aos 17 anos foi morar nos Estados Unidos, onde conseguiu trabalho numa fábrica de sapatos. Casou com Rosina, com quem teve vários filhos. Organizou sindicatos, participou ativamente de greves e se filiou à Federação Socialista Italiana. Quando pipocou a Primeira Guerra Mundial, ele lutou pela paz em manifestações de ruas, comícios e palestras, tornando-se um militante anarquista anti-belicista.
Bartolomeo Vanzetti (1888-1927) começou a trabalhar aos treze anos como padeiro, em jornadas de 15 horas diárias, sem descanso semanal. Deixou a terra natal na mesma época que Sacco, em 1908. Foi pedreiro, foguista, varredor de neve e lixeiro, trabalhando diariamente 14 horas em troca da metade do salário de um norte-americano, por ser estrangeiro. Participou de greves, foi demitido e incluído numa lista negra pelas empresas. Passou a vender peixe na rua.
Os dois – Sacco e Vanzetti – se conheceram nas lutas do movimento operário e nas reuniões sindicais, onde se lia e se discutia os teóricos do socialismo. Ambos foram presos, em maio de 1920, em Massachusetts, durante uma passeata de protesto contra o assassinato de um líder operário, Andréa Salsedo. A polícia estadounidense, querendo mantê-los na prisão para que não voltassem a organizar greves nas fábricas ou protestos nas ruas, acusou-os de um assalto aos cofres de uma fábrica de sapatos, no qual foram mortos dois seguranças.
Começou para eles um longo calvário de cárcere, que durou sete anos. O primeiro interrogatório se centrou na questão política e ideológica. As perguntas não eram sobre o assalto, mas sobre as atividades políticas dos dois militantes, mostrando que a polícia não estava interessada em descobrir os assaltantes e homicidas, mas em identificar e fichar anarquistas e colocá-los fora de circulação. Por isso, acabou montando um processo cheio de falhas técnicas. Não havia qualquer prova que incriminasse os dois. Elas foram inventadas.
As 55 testemunhas de acusação eram todas – TODAS - fajutas. Uma delas, que viu os assaltantes de longe por três segundos, descreveu-os fisicamente de forma minuciosa e detalhada, jurando que eram Sacco e Vanzetti. A defesa provou, nos autos, que essa testemunha era quase cega, não conseguia distinguir um homem de uma mulher a dois metros de distância. Outra testemunha, Lewis Peter, operário na fábrica de sapatos, havia visto os assaltantes, mas confessou que não podia identificá-los. Foi demitido. Depois que mudou o depoimento, foi readmitido.
Sozinhos na morte
A defesa de Sacco e Vanzetti apresentou 99 testemunhas, que foram pressionadas, ridicularizadas e até subornadas. No entanto, vinte delas juraram até o fim que na hora do assalto, estavam ao lado dos dois, trabalhando com eles em outro lugar, distante do crime. De nada adiantou. Os dois foram declarados culpados pelos jurados, que era presidido pelo dono da empresa na qual Vanzetti havia organizado uma greve. Então, dez testemunhas, indignadas, já que não lhes deram crédito, pediram ao juiz para serem presas e processadas por falso testemunho, o que não aconteceu, porque o processo mostraria que falaram a verdade.
Os jornais estadounidenses colocaram lenha na fogueira. De um lado publicavam matérias tendenciosas, com fotos dos dois anarquistas, tomadas depois de longos interrogatórios, onde eles apareciam sempre despenteados e suados, com barba crescida, roupas amassadas, cansados, enfim, com `cara de assassino`. De outro, silenciavam sobre o caráter político do julgamento e sobre a reação da opinião pública internacional. No mundo inteiro, se organizaram comitês de defesa de Saco e Vanzetti, com paralisações, greves, passeatas, comícios e até bombas nos consulados dos Estados Unidos.
No Brasil, os sindicatos desenvolveram uma campanha comovente em defesa de dois operários italianos. Os trabalhadores brasileiros, inclusive amazonenses, se cotizaram para pagar os advogados americanos. Consultei jornais operários da década de 1920 e lembro que eles registram periodicamente a contribuição, muitas vezes de um tostão, de milhares de trabalhadores, numa lista interminável de solidariedade internacional.
Depois do escandaloso processo, na madrugada de 23 de agosto de 1927, o Poder Judiciário dos Estados Unidos da América do Norte assassinou, na cadeira elétrica, o sapateiro e o vendedor de peixes, cujo crime, na realidade, tinha sido aderir ao anarquismo e participar de greves e sindicatos na luta por melhor condição de vida. Uma onda de dor, de protesto e de indignação se espalhou pelo mundo inteiro. Os trabalhadores, de luto, saíram às ruas nas principais cidades da Europa, da América e até da África.
Quando completou meio século de suas mortes, em 1977, o então governador de Massachusetts, Michael Dukakis, depois de uma cuidadosa revisão do processo, assinou declaração, afirmando oficialmente a inocência de Sacco e Vanzetti, pedindo desculpas aos seus descendentes e denominando de `grave erro judicial` a safadeza que havia sido cometida contra os dois. Na verdade, não foi um erro. Foi um crime do Poder Judiciário.
O principal advogado de defesa, no final do júri, declarou olhando nos olhos do juiz Thayer, aquilo que muitos brasileiros sentem hoje diante do que acontece, geralmente, com as decisões do Poder Judiciário:
- “Perdi as últimas ilusões que ainda tinha na Justiça e na Magistratura dos Estados Unidos. Nunca mais colocarei meus pés num tribunal. Nunca mais exercerei uma profissão que me obriga a ter contatos com pessoas como o senhor, pelas quais tenho o mais profundo desprezo”.
Hoje, ninguém sabe quem foi esse juiz de bosta, mas uma parte sadia do mundo cultiva a memória de Sacco e Vanzetti, homenageados pela cantora pacifista Joan Baez, com uma balada cantada para 400 mil pessoas no Festival de Woodstock, em agosto de 1969, e pelo filme com Gian Maria Volonté. A letra proclama: “Agora Nicola e Bart, vocês dormem para sempre no fundo de nossos corações, vocês morreram sozinhos, mas nós nunca os esqueceremos”.
Se apenas um leitor dessa coluna procurar numa locadora de vídeo o filme citado e se emocionar ouvindo Joan Baez, essa crônica terá cumprido seu objetivo de lembrar, num jornal amazonense, oitenta anos depois, os dois lutadores sociais que morreram em defesa da liberdade. Quem sabe algum pesquisador do Laboratório de Imprensa no Amazonas, coordenado por Luiz Balkar e Maria Luiza Ugarte, não procura os ecos dos dois anarquistas nos jornais locais daquela época?
P.S. - Musica cantada por Joan Baez:
https://www.youtube.com/watch?v=b9DsWSgkLT c também por Moustaki e Mireille Mathieu: https://www.youtube.com/watch?v=s-1Gi8ocgmc