As avós tem cheiro, mas só os netos podem farejar. A vovó Marelisa trazia impregnado na pele o inebriante aroma de tabaco e café que persiste na memória olfativa, ainda hoje, 60 anos depois. Ela e seu cachimbo, ela e o pilão onde moía café, ela no sobrado da rua Monsenhor Coutinho naquela Manaus de outrora. Já a vovó Filó tinha um inexplicável cheiro de terra molhada, misturado com priprioca - um perfumado capim amazônico, cuja raiz usava em infusões para curar sua eterna enxaqueca. Como era bom mergulhar a cabeça no regaço delas. Era muito bom. Era sim.
Mãe, há uma só. Avó, duas. A cota pessoal de cada um é essa. No entanto, enquanto pessoa jurídica, é possível aumentá-la. O povo argentino, por exemplo, tem muitas, são as combativas avós da Praça de Maio que desarmam as armadilhas da memória na busca dos netos desaparecidos da nação, carentes do cheiro da vovó do qual foram cruelmente privados.
O planeta também tem agora treze avós indígenas de cinco continentes, as avós do mundo, preocupadas com o destino incerto de filhos e netos da Mãe Terra, como informa Regiones Indias, boletim da Agencia Internacional de Prensa Indígena (AIPIN), editado no México pelo jornalista mixteco Genaro Bautista. Duas delas vivem na Amazônia e de lá espalham seus aromas pelo mundo.
Avós do mundo
São treze mulheres de diferentes credos e línguas que sobreviveram a doenças, guerras, perseguição, prisão e perda de entes queridos. Vindas da floresta amazônica, das montanhas do Tibet e do Nepal, da selva tropical africana, dos bosques e savanas americanos e até do Círculo Polar Ártico, elas se reuniram num bosque na periferia de Nova York, em 2004, quando criaram o Conselho Internacional das Treze Avós Indígenas, denominado pela ONU de Conselho da Paz, destinado a promover a paz no mundo e diagnosticar e curar as enfermidades do planeta:
- Estamos profundamente horrorizadas com a destruição sem precedentes da Mãe Terra, a contaminação do ar, da água e do solo, a atrocidade das guerras, a ameaça das armas e dos resíduos nucleares, o flagelo global da pobreza, o desperdício gerado pela cultura materialista, as epidemias que ameaçam a saúde dos seres da Terra, a exploração indevida das medicinas indígenas e a destruição dos nossos modos de vida tradicionais" - diz o Manifesto das Treze Avós, propondo uma nova aliança de reza, educação e cura da Mãe Terra para preservá-la em prol das gerações futuras.
Elas são "avós indígenas" não pela origem, mas pelos saberes étnicos que projetam. Todas são xamãs, enxergam no escuro e fazem pajelança, usando ervas, raízes e plantas para curar. Reverenciadas como mulheres-medicina, tratam pessoas, mas querem curar a Terra que está prostrada e exaurida. No manifesto de fundação, demonstram sua disposição em "salvaguardar a herança coletiva das medicinas tradicionais, defender a prática de nossas cerimônias e afirmar publicamente nosso direito a usar nossas plantas medicinais livres de qualquer restrição legal".
Os saberes orais herdados pelas treze avós fizeram delas verdadeiros acervos ambulantes, cujo conteúdo contraria o lobo mau que só se atém ao que está escrito nas bulas e, com os comilhos afiados, abre as mandíbulas para exigir "comprovação científica" (seja lá o que isso signifique) das práticas indígenas de cura. As avós moram longe, o caminho é deserto, mas quando andam pela estrada afora já não vão tão sozinhas, essas vovozinhas que usam com êxito medicamentos naturais e fitoterápicos, com segurança equivalente à das receitas alopáticas industrializadas, eliminadas apenas a arrogância e a prepotência.
A voz das avós
O encontro das avós está amparado em antiga profecia: "Quando as avós dos quatro pontos cardeais começarem a falar, estaremos inaugurando uma nova era". Esse momento chegou. Elas falam a linguagem da água, do fogo, do vento e das plantas. Uma delas, citada pelo boletim da Agência AIPIN, é Julieta Casimiro Pineda, xamã mazateca de Oaxaca, México, que para sustentar seus dez filhos serviu como doméstica, lavando e passando roupa, enquanto exercia furtivamente seu "trabalho sagrado" de curandeira. Ela e suas colegas foram recebidas pelo Dalai Lama na Índia:
- Cada um de nós pode mudar o mundo e as coisas, com pequenos gestos cotidianos, desde que nos levantamos ao raiar do dia. Depende do modo com que usas a água, a forma como respiras o ar, o jeito com que agradeces este novo dia, a luz do sol, o fogo, o modo com que tocas a terra e tratas as pessoas - disse naquela ocasião Mona Polacca, a avó hopi.
Nos últimos dez anos, as treze avós realizaram encontros periódicos em diferentes países que exigiram delas esforços físicos e logísticos, quando discutiram, com ajuda de tradutores, os projetos solidários que desenvolvem, trocaram saberes e se manifestaram contra a guerra e a pobreza. Em 2016, serão recebidas por uma comunidade da África. Nesses encontros, que duram três dias, elas celebram também seus rituais:
- Choramos muito, rimos muito, rezamos muito, cantamos e também dançamos - relata uma das avós, a terapeuta floral Maria Alice Campos Freire da ONG Centro Medicina da Floresta. Ela vive na vila Céu do Mapiá, comunidade do Santo Daime, no Rio Purus, quase fronteira do Amazonas com o Acre, mas nasceu no Rio de Janeiro, onde militou contra a ditadura militar. Foi presa, torturada, exilada no Chile e anistiada.
- Eu não sou uma pessoa de uma raiz só. Não sou uma índia, não sou uma negra, não sou uma branca. Sou uma brasileira, uma sul americana e dentro do grupo das treze avós represento o diálogo entre culturas" - declarou Maria Alice, que compartilha a representação no Conselho com outra brasileira, Clara Shinobu Iura, uma paulista filha de imigrantes japoneses que decidiu se aproximar dos saberes indígenas e dos povos da floresta e mudou também de mala e cuia para Céu do Mapiá.
Não sabemos se as treze avós receberam resposta à carta que entregaram pessoalmente no Vaticano, em 22 de outubro de 2005, endereçada ao Papa Bento XVI, pedindo a revogação da bula papal de 1493 e dos éditos posteriores que fundamentaram a "doutrina da conquista" e o extermínio, violentaram os direitos indígenas e puniram como "bruxos e feiticeiros" os que empregavam a medicina tradicional.
Hoje existem no mundo todo muitas mulheres trabalhando em rede com elas. É claro que o Conselho pode abrigar outras mais, indígenas e não indígenas, como as "jaryi" guarani de todas as aldeias ou a pajé do Marajó, Zeneida Lima de Araújo, 82 anos, que aprendeu os segredos da natureza com Mestre Mundico e é bisneta de Coemitanga, um xamã Sacaca.
O Conselho das treze avós remete a uma cartografia afetiva onde estão o carinho e o cheiro, mas também a sabedoria e a experiência de nossas avós. Até hoje guardo cicatriz no pé direito, quando numa pelada de rua enfiei o pé numa calha enferrujada, abrindo ferida profunda. A velha Marelisa lavou com chá de crajiru - um cipó antiinflamatório e cicatrizante, socou mastruz, misturou com óleo de copaíba, fez uma pasta, esquentou na panela, com aplicação diária sobre a ferida aberta durante três semanas.
Se estivesse viva, minha velha Marelisa podia integrar o Conselho da Paz, como todas as avós do mundo. Ainda ouço sua voz carinhosa com aquele sotaque arretado de Pau dos Ferros (RN):
- Ora tibis! Vem fazer teu curativo, seu merdinha!
Na boca de avó, até merdinha fica cheirosa. Essas histórias de avós me deram vontade de incorporar esse gênero tão especial que é ser avó. Talvez por não ter conhecido nenhum avô, confesso: eu queria ser avó.
P.S. As Treze Avós Indígenas:
1. Aama Bombo (Tamang) - Nepal: Ásia
2. Agnes Baker Pilgrim (Takelma) - Oregon: EEUU
3. Beatrice Long (Oglala Lakota) - Dakota: EEUU
4. Bernadette Rebienot (Omyene) - Gabón: África
5. Clara Shinobu Iura (Brasileira) - Amazônia: América do Sul
6. Flordemayo (Maya) - Guatemala: América Central
7. Julieta Casimiro (Mazateca) - México:América Central
8. Margaret Behan (Cheyenne) - Montana: EEUU, América do Norte
9. Maria Alice Campos Freire (Brasileira) - Amazônia: América do Sul
10. Mona Polacca (Hopi) - Arizona: EEUU, América do Norte
11. Rita Long (Oglala Lakota) - Black Hills, Dakota do Sul: EEUU
12. Rita Pitka Blumenstein (Yup'ik) - Círculo Polar Ártico
13. Tsering Dolma (Gyaltong) - Tibet: Asia.
LAS TRECE ABUELAS INDÍGENAS
Texto:José R. Bessa Freire. Tradução: Consuelo Alfaro Lagorio
Todas las abuelas tienen un perfume que solo los nietos pueden sentir. Mi abuela Marelisa tenía impregnado en la piel el aroma embriagador de tabaco y café que persiste en la memoria olfativa hasta hoy, 60 años después. Ella y su pipa, ella y el mortero donde molía café, ella en la terraza de la calle Monsenhor Coutinho de aquella Manaos de otrora. Ya la abuela Filó tenía una inexplicable fragancia de tierra mojada, mezclada con priprioca – una hierba perfumada amazónica, cuya raíz la usaba en infusiones para curar su eterna jaqueca. Como era placentero descansar la cabeza en el regazo de las dos. Era delicioso.
Madre solo hay una. Abuela, dos. La cuota personal de cada uno es esa. Sin embargo, como persona jurídica, hay la posibilidad de aumentarla. El pueblo argentino, por ejemplo, tiene muchas, son las combativas abuelas de la Plaza de Mayo que desarman las armadillas de la memoria en busca de los nietos desaparecidos de la nación, carentes del aroma de la abuela de la que fueron cruelmente privados.
El planeta también tiene ahora trece abuelas indígenas de cinco continentes, las abuelas del mundo, preocupadas con el destino incierto de hijos y nietos de la Madre Tierra, como informa Regiones Indias, boletín de la Agencia Internacional de Prensa Indígena (AIPIN), editado en México por el periodista mixteco Genaro Bautista. Dos de ellas viven en la Amazonía y de allí propagan sus aromas por el mundo.
Abuelas del mundo
Son trece mujeres de diferentes credos y lenguas que sobrevivieron a enfermedades, guerras, persecución, prisión, pérdida de entes queridos. Procedentes de la floresta amazónica, de las montañas del Tíbet y de Nepal, de la selva tropical africana, de los bosques y sabanas americanas, así como del Círculo Polar Ártico, las abuelas se reunieron en un bosque en los alrededores de Nueva York, en 2004, para entonces crear el Consejo Internacional de las Trece Abuelas Indígenas, denominado por la ONU Consejo de Paz, destinado a promover la paz en el mundo, diagnosticar y curar las enfermedades del planeta:
- Estamos profundamente horrorizadas con la destrucción sin precedentes de la Madre Tierra, la contaminación del aire, del agua y del suelo, la atrocidad de las guerras, la amenaza de las armas y de los residuos nucleares, el flagelo global de la pobreza, el desperdicio producido por la cultura materialista, las epidemias que amenazan la salud de los seres de la Tierra, la exploración indebida de las medicinas indígenas y la destrucción de nuestros modos de vida tradicionales" - dice el Manifiesto de las Trece Abuelas, proponiendo una nueva alianza de oración, educación y cura de la Madre Tierra para preservarla en pro de las generaciones futuras.
Son "abuelas indígenas" no por el origen, sino por los saberes étnicos que proyectan. Todas son mujeres chamán, consiguen ver en la oscuridad y realizan curas, usando hierbas, raíces y plantas. Reverenciadas como mujeres-medicina, tratan personas, pero quieren curar la Tierra que está postrada y exhausta. En el manifiesto de fundación, demuestran su disposición para "salvaguardar la herencia colectiva de las medicinas tradicionales, defender la práctica de nuestras ceremonias y afirmar públicamente nuestro derecho a usar nuestras plantas medicinales libres de cualquier restricción legal".
Los saberes orales heredados por las trece abuelas las transformaron en verdaderos acervos ambulantes, cuyo contenido contraría al lobo feroz que solo se atiene a lo que está escrito en las bulas y con los colmillos afilados, abre las mandíbulas para exigir "comprobación científica" (sabe Dios lo que eso significa) de las prácticas indígenas de cura. Las abuelas viven lejos, el camino es desierto, pero cuando anden a lo largo del sendero ya no estarán tan solas esas abuelitas que usan con éxito remedios naturales y fitoterápicos, con seguridad equivalente a las recetas alopáticas industrializadas, solo que sin arrogancia ni prepotencia.
La voz de las abuelas
El encuentro de las abuelas está amparado en una antigua profecía: "Cuando las abuelas de los cuatro puntos cardinales comiencen a hablar, estaremos inaugurando una nueva era". Ese momento llegó. Hablan el lenguaje del agua, del fuego, del viento y de las plantas. Una de ellas, citada por el boletín de la Agencia AIPIN, es Julieta Casimiro Pineda, chamán mazateca de Oaxaca, México, que para mantener sus diez hijos trabajó como doméstica, lavando y planchando ropa, en cuanto ejercía furtivamente su "trabajo sagrado" de sabia curandera. Ella y sus colegas fueron recibidas por el Dalai Lama en la India:
- Cada uno de nosotros puede mudar el mundo y las cosas, con pequeños gestos cotidianos, desde que nos levantamos al rayar el día. Depende del modo que usas el agua, la forma como respiras el aire, el modo con que agradeces este nuevo día, la luz del sol, el fuego, la forma con que tocas la tierra y tratas las personas - dijo en esa ocasión Mona Polacca, la abuela hopi.
En los últimos diez años, las trece abuelas realizaron encuentros periódicos en diferentes países que les exigieron esfuerzos físicos y logísticos, en los que discutieron, con ayuda de traductores, los proyectos solidarios que desenvuelven, intercambiaron saberes y se manifestaron contra la guerra y la pobreza. En 2016, serán recibidas por una comunidad de África. En esos encuentros que duran tres días, celebran también sus rituales:
- Lloramos mucho, reímos mucho, rezamos mucho, cantamos y también danzamos - relata una de las abuelas, la terapeuta floral María Alice Campos Freire de la ONG Centro Medicina da Floresta. Ella vive en la villa Céu do Mapiá, comunidad del Santo Daime, en el Rio Purus, templo sagrado del ayahuasca, cerca de la frontera de Amazonas con Acre, pero nació en Rio de Janeiro, donde militó contra la dictadura militar. Fue presa, torturada, exilada en Chile y amnistiada.
- Yo no soy una persona de una sola raíz. No soy una india, no soy una negra, no soy una blanca. Soy una brasileña, una sudamericana y dentro del grupo de las trece abuelas represento el diálogo entre culturas" - declaró Maria Alice, que comparte la representación en el Consejo con otra brasileña, Clara Shinobu Iura, una paulista hija de inmigrantes japoneses que decidió aproximarse a los saberes indígenas y de los pueblos de la floresta y acabó mudándose también definitivamente a Céu do Mapiá.
No sabemos si las trece abuelas recibieron respuesta a la carta que le entregaron personalmente en el Vaticano, el 22 de octubre de 2005, al Papa Benedicto XVI, pidiendo que revocara la bula papal de 1493 y de los edictos posteriores que fundamentaron la "doctrina de la conquista" y el exterminio, violando los derechos indígenas al castigar como "brujos y hechiceros" a los que empleaban la medicina tradicional.
Hoy existen en el mundo todo muchas mujeres trabajando en red con ellas. Claro que el Consejo puede abrigar otras más, indígenas y no indígenas, como las "jaryi" guaraní de todas las aldeas o la chamán de Marajó, Zeneida Lima de Araújo, 82 años, que aprendió los secretos de la naturaleza con Mestre Mundico y es bisnieta de Coemitanga, un curandero Sacaca.
El Consejo de las trece abuelas remite a una cartografía afectiva donde están el cariño y el perfume, pero también la sabiduría y la experiencia de nuestras abuelas. Hasta hoy conservo una cicatriz en el pie derecho, cuando en una partida de fútbol callejero metí el pie en una lata oxidada, abriendo una herida profunda. La matriarca Marelisa lavó con infusión de crajiru – una hierba antiinflamatoria y cicatrizante; molió mastruz, mezcló con aceite de copaíba, hizo una pasta, la calentó en una olla, aplicándola diariamente sobre la herida abierta durante tres semanas.
Si estuviese viva, mi vieja Marelisa podría integrar el Consejo de Paz, como todas las abuelas del mundo. Todavía oigo su voz cariñosa con aquél acento característico de Pau dos Ferros, su pueblito de Rio Grande do Norte:
- Ora tibis! Ven para curarte, carajito!
En boca de abuela, hasta carajito suena bien. Esas historias me dan ganas de incorporar este género tan especial que es ser abuela. A lo mejor, por no haber conocido ningún abuelo, confieso: me gustaría ser abuela.
P.S. Las Trece Abuelas Indígenas:
1. Aama Bombo (Tamang) - Nepal: Ásia
2. Agnes Baker Pilgrim (Takelma) - Oregon: EEUU
3. Beatrice Long (Oglala Lakota) - Dakota: EEUU
4. Bernadette Rebienot (Omyene) - Gabón: África
5. Clara Shinobu Iura (Brasileira) - Amazônia: América do Sul
6. Flordemayo (Maya) - Guatemala: América Central
7. Julieta Casimiro (Mazateca) - México:América Central
8. Margaret Behan (Cheyenne) - Montana: EEUU, América do Norte
9. Maria Alice Campos Freire (Brasileira) - Amazônia: América do Sul
10. Mona Polacca (Hopi) - Arizona: EEUU, América do Norte
11. Rita Long (Oglala Lakota) - Black Hills, Dakota do Sul: EEUU
12. Rita Pitka Blumenstein (Yup'ik) - Círculo Polar Ártico
13. Tsering Dolma (Gyaltong) - Tibet: Asia.