CRÔNICAS

Como matar índios com giz e apagador

Em: 02 de Agosto de 2015 Visualizações: 20882
Como matar índios com giz e apagador
Dadme,  por favor, un pedazo de pan... / pero dadme / en español.
César Vallejo (1892-1938) - La Rueda del Hambriento
 
Por que hoje é tão alto o índice de suicídio entre os índios que originalmente desconheciam tal prática? Segundo o estudioso da língua Tukano, padre Casimiro Béksta, aqui citado na semana passada, não existe sequer tradução para tal palavra na maioria das línguas indígenas. Os pesquisadores que estudaram o suicídio de índios citam diversas causas relacionadas à terra, religião, economia, políticas de saúde e de educação, entre outras. Destacamos aqui uma delas vinculada às línguas e a seu uso na escola.
São faladas 23 línguas em São Gabriel da Cachoeira, no Rio Negro (AM), que, entre os mais de cinco mil municípios brasileiros, lidera o ranking de suicídios de índios no Brasil (Mapa da Violência - Diário do Amazonas, 9/10/2014). A taxa de suicídios lá é dez vezes maior do que a média nacional. Entre 2008 e 2012, foram 50 casos por 100 mil habitantes, enquanto a média brasileira é de 5,3 suicídios. Entre os suicidas de São Gabriel, 93% são índios que se enforcaram ou se envenenaram com timbó.
- O que está acontecendo é um extermínio - afirmou o médico Carlos Felipe D´Oliveira, da Rede Brasileira de Prevenção ao Suicídio. Em janeiro deste ano, essas mortes, assim como as ocorridas em municípios de Mato Grosso do Sul, foram discutidas em Brasília no Fórum Brasileiro sobre Suicídio, que encaminhou minuta ao Congresso Nacional pedindo ações de prevenção e criação de políticas públicas para reduzir a incidência de suicídios. A proposta certamente ficará engavetada pelo deputado Eduardo Cunha (vixe, vixe), se ninguém ficar mordendo seu calcanhar ou se ele não cair antes derrubado pelas acusações de corrupção.
A "souffrance"
Entre as políticas públicas, estão as políticas de línguas. O tratamento que a sociedade dispensa às línguas interfere no índice de suicídio, se for correta a hipótese do linguista e antropólogo belga André-Marcel d´Ans (1938-2008). Ex-professor da Universidade de Paris VII,  ele estudou os mitos dos índios Kaxinawá da Amazônia peruana, onde viveu por mais de seis anos. No seu artigo "Linguagem e Patologia Social", usa a categoria "souffrance" para explicar o sofrimento e o desespero provocados pelas tensões e conflitos linguísticos, que podem provocar o suicídio.
A "souffrance" - diz ele - é um tipo de sofrimento patológico, que não é resultado de nenhuma anomalia individual, mas provém de uma alteração funcional da situação linguística. Ela se dá quando se obriga alguém a usar uma língua que não é sua língua materna, num contexto de discriminação e preconceito. Cita o caso de um Yaminawa que havia sido alfabetizado, na marra, por missionários católicos, e contraiu a "souffrance".
Segundo D´Ans, essas anomalias atingem tanto o corpo como o psiquismo, originadas pelas tensões e conflitos que provocam os impasses linguísticos, “gerando um desespero que pode chegar, nos casos mais graves, a condutas violentas e/ou suicidárias”. Ele estabelece assim uma relação entre o uso da língua materna e o psiquismo dos indivíduos. Para não morrer de fome, não basta um pedaço de pão, é preciso assegurar o direito de cada um ter o pão em sua língua materna, como no poema de Vallejo escrito quando vivia na França.
Uma visão histórica sobre as políticas de línguas na região e seu uso na escola nos dão uma dimensão do estrago, conforme revelam os relatórios do poeta Gonçalves Dias que foi nomeado pelo presidente da Província do Amazonas, em 1861, para o cargo de visitador das escolas públicas de primeiras letras. Ele viajou pelos rios Solimões e Negro, visitou escolas e fez uma etnografia da sala de aula. Conversou com professores, folheou cadernos de alunos, assistiu aulas, elaborou um censo escolar, observou o calendário, currículo, livros didáticos, tudo.
O Apagamento
Uma conclusão de Gonçalves Dias é que a escola não funcionava no Amazonas, porque as aulas eram dada em português, mas a maioria da população desconhecia esta língua e falava, além de um idioma indígena, a Língua Geral ou Nheengatu. Mesmo assim, o poeta recomenda ao Presidente da Província que mantenha o português, pois “a vantagem da frequência das escolas estaria principalmente em se desabituarem da Língua Geral, que falam sempre em casa e nas ruas, e em toda parte”. Quer dizer, uma das funções da escola era mesmo apagar essas línguas consideradas "bárbaras, pobres e sujas".
Desta forma, os alunos continuariam excluídos do conhecimento escolar,  mas para o poeta avaliador das escolas. mais importante do que o conteúdo das disciplinas era impedir o uso das línguas indígenas e impor o português:
"No falar a língua portuguesa já vai uma grande vantagem, e tal que, quando mesmo os meninos não fossem à escola para outra coisa, ainda assim conviria na atualidade e ficaria ainda sendo conveniente por bastante tempo, que o governo com esse fim criasse e sustentasse as escolas primárias do Solimões”.
Não dispomos de dados precisos sobre os suicídios de indígenas no Amazonas no séc. XIX. No entanto, depois de 1950, tanto no Solimões quanto no Negro, existem registros nos jornais e nos boletins policiais, evidenciando como se pode matar índio com giz e apagador. Tais dados podem ser correlacionados com as avaliações dos internatos criados pelos salesianos na região, cujo objetivo era, como o proposto por Gonçalves Dias, apagar as línguas indígenas em nome de uma "unidade nacional".
No entanto, não são apenas as escolas onde estudam os índios as criadoras de "souffrance". Houve um avanço e hoje já existem escolas bilingues que procuram valorizar as línguas indígenas como línguas de instrução nas primeiras séries. Mas isto de nada serve se esses índios, quando entram em contato com a sociedade nacional, sofrem discriminação de brasileiros preconceituosos, que frequentaram escolas onde não aprenderam a respeitar as línguas e culturas indígenas.  
Por isso, o XXVIII Simpósio Nacional de História realizado nesta semana em Florianópolis aprovou em sessão plenária a moção encaminhada ao Conselho Nacional de Educação, solicitando regulamentação da Lei 11.645/2008, que determinou a inclusão do Ensino de História e Cultura Indígena na Educação Básica. Os profissionais da área estão exigindo a formulação de orientações e diretrizes pedagógicas, bem como a criação de disciplinas nos cursos universitários de História e Pedagogia que formem e atualizem os professores para implementar a lei.
Enquanto isso não for feito, o problema tende a se agravar. A imagem mais acabada da "souffrance" é a notícia "Dois ticunas se suicidam" publicada no Jornal do Brasil (19/08/1991). Um deles, Artur Gabriel, 32 anos, tio do vice-capitão da Comunidade de Umariaçu, Waldir Mendes, se enforcou cantando. Em língua ticuna, segundo seu sobrinho:
"Na manhã do dia 6 de agosto, depois de passar a noite inteira entoando canções indígenas, com uma garrafa de cachaça ao lado, Gabriel apareceu enforcado no fundo do quintal, pendurado a uma árvore".
P.S. - Alguns leitores pediram disponibilizar o artigo original com esse título publicado em dezembro de 1979, o que farei nos próximos dias, depois de digitá-lo.

 

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14 Comentário(s)

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Ana comentou:
09/08/2015
Muito interessante, para mim, saber que desconheciam essa péssima prática. Lembrei-me do poema do Neruda, La Sirena y los Borrachos, diz tudo. A sereia e os bêbados.
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Lilian Costa Nabuco dos Santos comentou:
06/08/2015
Sabemos que não existe de fato Democracia no Brasil. Uma das consequências é o fato de ainda se estar tentando regulamentar a lei de 2008 que determina a inclusão do Ensino de História e Cultura Indígena na Educação Básica. Ao sistema interessa o domínio sobre a cultura e consequentemente sobre direitos, territórios e riquezas dos índios. Os suicídios entre eles são reflexos das várias questões sócio-culturais geradas por este sistema criado para manter privilégios. É interessante atestar com frequência a dificuldade das sociedades aceitarem as diferenças e a tendência compulsiva em tentar diminuir o diferente - ou seja, aquilo que se desconhece ou que se tem dificuldade em compreender - como forma de afirmar a sua suposta superioridade sobre as outras culturas, sobretudo quando há disputa de direitos e interesses em jogo. O consolo é que o sistema alienante tem que se deparar com batalhadores como você, em permanente estado de alerta. Um abração, com a admiração de sempre - Lilian
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Cacilda Santana (via FB) comentou:
03/08/2015
Muito triste ! Um povo que durante anos sofreu perdas... no passado de maneiras naturais,e a quinhentos anos pelas mãos dos pseudos descobridores(Ladrões de terra e assassinos de Índios )e de seus descendentes ! Dá para imaginar que o Continente Americano durante seu descobrimento tinha 30.000.000,00 de Índios de diversas etnias !
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Anne-Marie comentou:
02/08/2015
Como dizia Émile Cioran: "On n'habite pas un pays, on habite une langue. Une patrie, c'est cela et rien d'autre" - "Não se mora em um país, mora-se numa língua. Uma pátria é isto e nada mais". Fonte: Aveux et Anathèmes), éd. Gallimard, 1987, p. 21). Não concordaria de forma intransigente com ele. Moramos, sim, em paisagens, nos gostos de uma culinária, nos cheiros de uma terra. Moramos também na música, nas artes. Mas a língua em que moramos, e só ela, é quem pode dizer tudo isso, ainda que com limites. É numa língua peculiar que tudo isso pode ser comunicado. E por praticar a tradução, sei que, apesar de todos nossos esforços, um “tradutore” será sempre, como dizem os italianos, um “traditore” (todo tradutor é um traidor). A realidade vivida só encontra sua verdadeira expressão na língua onde mora. Foi um crime o que se cometeu com nossos índios, como é um crime o que está se cometendo no Brasil e no mundo com a supremacia cada vez mais avassaladora de uma língua (e de sua cultura) sobre as outras. Um exemplo: sou assinante da Net. A cada dia, contabilizo em torno de 30 a 40 filmes ou programas (musicais etc.) americanos ou americanizados, inclusive para crianças. O Brasil e suas línguas – suas incalculáveis variantes do português (aquele Brasil que o Brasil não conhece) não aparecem, a não ser “revisados” no pífio sotaque nordestino das novelas da Globo que, por sinal, não existe em nenhum lugar do Nordeste.
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02/08/2015
Caro Bessa. Como sempre, um texto preciso e profundo. Um tema que merece ser tratado em sua especificidade. O suicídio em geral, entretanto, é um problema cada vez mais grave entre os índios. A dificuldade linguística só existe porque o índio precisa entrar no mundo dos brancos, por vontade própria ou compulsoriamente. O desajuste é então completo. A cultura que o repele onde é dominante também o atinge ao se expandir para o mundo dito primitivo. Lembro do caso do suicídio, por paixão, do índio suruí Oreia, em Rondônia. Eis aí uma questão a desafiar a compreensão e uma solução. Os linguistas têm um papel importante quando conseguem trazer a língua do índio à compreensão do branco, como fez Derbshire com as lendas dos Hyxkariana. Seu trabalho merece ser reeditado. Um abraço do admirador de sempre. Contato de Lúcio Flávio Pinto
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moema comentou:
02/08/2015
Muito bom o artigo Bessa, mais uma vez parabéns!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
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Romulo Pintoandrade (via FB) comentou:
02/08/2015
Ai, como dói... mas como é importante encarar e se pensar a respeito. Mais um bom diagnóstico da tragédia social brasileira. Essa é pra professores e "educadores" em geral. Como reverteremos essa realidade ? Nosso povo nativo que é negado em sua identidade. Muitos descendentes de famílias indígenas que encontrei sequer admitem sua evidente ancestralidade. Mesmo os que não chegam a um ato extremo vivem esse drama psicológico. Como reverteremos essa realidade ? Uma professora vinda de Formosa, Goiás quase se ofendeu quando perguntei de sua ascendência indígena
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Joaquim Kaxinawá (via FB) comentou:
01/08/2015
Não só o giz, são os programas pensados de fora para dentro aos povos originarios que receberam o nome artístico de "indígenas"!!!
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Ana Stanislaw comentou:
01/08/2015
Bessa, muito obrigada por teu texto lúcido e por chamar a atenção de temas esquecidos, marginais na mídia e nos lares desse Brasil. Como sempre, tua pena sensível e certeira nos direciona para os dilemas vivenciados por diversos povos indígenas aqui e no mundo todo. Obrigada, você sempre, sempre a favor e lutando com os indígenas.
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Fred Spinoza comentou:
01/08/2015
Como se mata indios, con solamente tiza y mota!
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Renato Athias comentou:
01/08/2015
Babá... Muito legal. Gostei de ler. Tenho alguns fatos sobre suicídios que ocorreram em entre os Hupdah, que para mim são extremamente graves e venho acompanhando desde 2007. Porém, eu queria apenas acrescentar um elemento, que para mim vai além do Giz e do apagador, e que acho pertinente em toda análise sobre essa situacão. A situação atual em São Gabriel (liderando os casos na sua tabela) não é a mesma que em 1979. Os Processos de transformações sociais são profundos nessa região (em do Rio Negro), alguns já detectados em 1958 por Eduardo Galvão. Em 1979, nessa região praticamente não havia missões evangélicas. Estas se concentravam basicamente no Rio Içana. Porém hoje estão em todos os lugares, e em S. Gabriel é o lugar onde se concentram, o maior número de casos (me parece, não tenho certeza), foi o municio que teve um crescimento muito alto de Igrejas/Salas de cultos de inúmeras denominações religiosas em terra indígena. Quem sabe um estudo fazendo correlação a esse fato poderia dar pistas para entender melhor essa situação de crescimento de números de suicídios?
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João Silverio Dias comentou:
03/08/2015
No período de 1981 a 1984 eu chefiei o PIN Belém do Solimões a maior aldeia da etnia Ticuna. Não foi registrado neste período nenhum suicídio. Também posso acrescentar Vendaval de Feijoal. Nesta ´época os Ticunas seguiam o movimento Da Cruz,onde o consumo de bebida alcoólica era totalmente proibido de maneira irrestrita. Com o tempo este movimento enfraqueceu e a droga e a cachaça passou a ser consumo comum entre eles . Deixo bem explicito que sou ateu convicto.....totalmente contrário a religião em comunidades indígenas. Entretanto seria de bom tom observar esta dobradinha consumo de drogas que não são conhecidas pela cultura e o suicídio
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Danielle Bastos comentou:
01/08/2015
Excelente texto professor Bessa ! Para além das tensões entre currículo vivido, escrito ,formal oculto, intercultural ,multicultural e seus tantos etcs .. espero o currículo que sublinhe as diferenças. Penso que somos ensinados, principalmente nós pedagogos e "SECADIs" a aprender com escrita, traço, plano, regras, leis, metas, objetivos, quando a interculturalidade, de fato, seria aprendermos também alguma língua indígena, não apenas ensinar a metonomíca "nossa". Aprender línguas , artesania, cosmologia que se queiram apresentar e ensinar, porque podem não querer por seus motivos também. Mas otimistamente, acho que chegaremos lá . Trocando a souffrance pela differance (me lembrou Derrida, talvez) , em um chegar lá que é sem fim , mas melhor porque sempre vão ter coisas a se ensinar e aprender ..
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JJ Ramos comentou:
03/08/2015
Ou seja, deve fazer como os missionários protestantes.
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