“Nasci pra ser bailarina / É só por a sapatilha / Já sinto bater o meu coração”
(Balé – Palavra Cantada)
Mais de 100 bailarinos do Nordeste participaram da abertura, em praça pública, do 3° Mossoró Mostra Dança, ocorrido na última semana de abril de 2013. É provável que nessa ocasião, o menino Alex, de 8 anos, que morava em Mossoró (RN) com a mãe, Digna Medeiros, tenha se encantado com a dança oriental apresentada pela bailarina Nuriel. O certo é que quando ele desembarcou, dias depois, no Rio, para onde se mudou, já estava completamente enfeitiçado pela dança do ventre, o que iria originar uma tragédia familiar.
No casebre suburbano da Vila Kennedy, onde foi morar com o pai, a madrasta e outras cinco crianças, Alex costumava ensaiar passos da dança, se contorcendo em movimentos corporais com sinuosidades de serpente. O pai, Alex André, desempregado, ex-presidiário condenado por tráfico de drogas, virava uma fera. Ele não admitia que o filho, herdeiro de seu nome, se comportasse "como uma mulherzinha". Quando descobriu que, além disso, o menino gostava de lavar louça e andava com o cabelo comprido, passou a surrá-lo quase diariamente para ele "aprender a andar como homem".
O menino, bailarino nato, tinha o physique du rôle. Era franzino, esguio e descarnado. Apesar da repressão paterna, continuou a "pisar no chão com a ponta do pé" e a "tocar o céu com a palma da mão", como a bailarina da dupla musical Palavra Cantada. Os coleguinhas da Escola Municipal Coronel José Gomes Moreira, em Bangu, dizem que aquele magricelinha, com o corpo de mola e amor pela dança, era calmo, não brigava com ninguém. A professora atesta que era afetuoso, dócil e muito inteligente, como demonstram suas notas nos três bimestres: 88, 100 e 90.
Surras homéricas
No meio do caminho, no entanto, havia uma pedra. O pai Alex André, em janeiro, não conseguindo dobrar o filho, foi à Escola Municipal e pediu que lhe fosse entregue a documentação escolar para uma transferência, alegando um retorno a Mossoró. Era mentira. A escola foi trocada pelo cárcere privado, como suspeita um dos conselheiros tutelares de Bangu. O bailarinozinho ficou preso em casa, onde continuou submetido a frequentes sessões de espancamento, surrado pelo próprio pai que devia protegê-lo. Os "corretivos", insiste o pai, pretendiam ensinar o filho a "ser homem".
No 17 de fevereiro, ocorreu a última sessão de espancamento. Obcecado, o pai queria obrigar o bailarinozinho a cortar o cabelo. Diante da resistência, começou a porrada, tão forte desta vez, que dilacerou o fígado da criança. Ele teve uma hemorragia interna. A madrasta, que o socorreu, levou-o para o posto de saúde da Vila Kennedy. "Estava com os olhos grandes, de cílios longos, entreabertos. Mas não havia mais o que fazer. Estava morto" - conta a repórter Maria Elisa Alves, do Globo, num relato publicado nesta quarta-feira de cinzas, quando só então o fato foi divulgado:
- O corpo de Alex, coberto de hematomas, era um mapa dos horrores que ele vinha passando. O laudo do Instituto Médico Legal descreve em muitas linhas todo o sofrimento: a criança tinha escoriações nos joelhos, cotovelos, perto do ouvido esquerdo, no tórax, na região cervical; apresentava também equimoses na face, no tórax, no supercílio direito, no deltoide, punho esquerdo, braço e antebraços direitos, além de edemas no punho direito e na coxa direita. A legista Áurea Torres também atestou que o corpo magricelo apresentava sinais de desnutrição.
A cena do menino no caixão branco, de blusinha listrada, foi tão forte - conta Elisa - que levou pessoas de quatro velórios que eram realizados ao lado a sair de suas capelas para abraçar a mãe.
Fipilhopó daputapa
Preso, o pai confessou à polícia que ficava enfurecido porque o bailarinozinho apanhava sem chorar, evidenciando que a lição "não estava sendo suficiente e que, por isso, batia mais e mais”. Uma sobrinha do assassino, ouvida por Elisa, confirma que ele era homofóbico, "cismado com essa coisa de homossexual" e rejeitava também outro filho, mais velho, por achar que não era suficientemente macho.
Muitos pais ficariam exultantes e orgulhosos se tivessem um filho com a doçura, a sensibilidade e o dom do bailarinozinho, capaz de participar das tarefas domésticas, de dançar e cantar. Um preconceito infame, porém, levou um energúmeno a se sentir infeliz e a acabar com a vida de uma criança indefesa, causando mais infelicidade para ele próprio e para os que o cercam. Nem o presidente da Uganda foi tão longe, quando barbarizou, sancionando lei que pune os gays com prisão perpétua. Alex André puniu com a pena de morte quem sequer, com oito aninhos, ainda não havia afirmado o direito à sua sexualidade.
Se Alex André não nasceu com a cabeça cheia de preconceito, a pergunta que se impõe é: quem foi que colocou tanta merda lá dentro?
Em entrevista há pouco mais de três anos, o deputado Jair Bolsonaro aconselhou, neste caso, os pais a surrarem seus filhos: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho leva um couro, ele muda o comportamento dele. Tem muita gente que diz: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem”. Para ele, homossexualismo é uma doença que só se cura com porrada. Ninguém sabe se Bolsonaro apanhou muito, se fala por experiência própria, se espancou algum de seus quatro filhos homens. Mas ele conseguiu vender seu peixe para muitos incautos.
O resultado está aí: uma vida brutalmente ceifada e outras vidas destruídas. Quem vai agora ensinar o fipilhopó daputapa do ex-presidiario, ele sim, a "andar como homem", a resgatar sua humanidade?
P.S. - Charge do companheiro de tantas viagens, Fernando Assaz Atroz, publicado no assazatroz.blogspot.com.br