Tia Ernestina, irmã da dona Elisa, em sua adolescência era apaixonada pelo seu vizinho do bairro de São Raimundo, que viria a ser mais tarde o consagrado escritor Áureo Nonato. Namoraram firme. Namoro respeitoso, na sala de visitas, até as 21h00, sem agarração, sem amasso, como exigia a época. O que não impediu que ambos compartilhassem biribás e pitombas, quando vovó Marelisa, sentada na cadeira ao lado, cochilava.
Foi uma paixão fulminante e desregrada. Tia Ernestina já tinha até sonhado e planejado o nome do fruto daquele amor, o filho que ambos teriam, evidentemente depois de casados. Chamar-se-ia Auristino. Titia não falava duas palavras sem pronunciar três vezes o nome de Áureo. Era Áureo-pra-lá, Nonato-pra-cá.
Acabou dando Áureo-prá-lá. Ele viajou para o Rio de Janeiro, foi servir o Exército lá no Quartel de São Cristóvão. Minha tia ficou inconsolável como a Sigfrida na novela “Fera Ferida”, quando Rubra Rosa, a mãe do outro Áureo, que não é Nonato, expulsa a moça de sua casa. De desgosto, nunca mais quis ter filhos.
Chiquinha ou Francis?
Mas por que razão estou eu aqui contando tudo isso, tomando teu precioso tempo, leitor (a)? Não, não é nem para comentar o novo livro do Áureo - Porto das Catraias - o que já foi feito magistralmente aqui em A Crítica por José Lívio Dantas. É apenas para fazer a ponte com outra história e legitimá-la.
Hoje eu poderia ter um primo chamado Auristino, que não nasceu e, portanto, é non-nato. O Áureo podia ser meu tio. Este fato, por si só, lhe permitiria apresentar meu nome à Academia Amazonense de Letras, onde poderia eu conviver com figuras de escol como Robério Braga, o Berinho. Infelizmente não deu. De qualquer forma, a convivência com Ernestina lhe confere autoridade absolutas para pontificar sobre minha família.
No seu livro encantador – Os Bucheiros – Áureo dedica um capítulo a uma prima de minha mãe, a Chiquinha Bessa. Ela morria de vergonha de ser amazonense do bairro de São Raimundo, conhecido como “bairro do bucho”, e ainda por cima de ser Chica, aquela que admirou-se-se do berro, do berro que o gato deu. Por isso, ela se mudou de mala, cuia e rede para o Rio. Cuia e rede não, que são coisas de amazonense. Só mala. Mudou também de nome. Já casou com o nome de Francis, adotando o sobrenome do marido. Deixou de ser Chiquinha, não é mais Bessa, nunca foi bucheira.
Da mesma forma que algumas pessoas, existem também certas cidades que morrem de vergonha de serem o que são. Tentam mudar de identidade. Buscam ser o outro.
Olha só! Na terça feira passada, esta coluna não foi publicada em razão de outros compromissos por mim assumidos. O seu espaço foi ocupado por artigo de Roberval Vieira com título quilométrico – “Itacoatiara acredita no potencial da região”.
- E Barcelos também! – esbravejou ironicamente uma leitora, numa carta enviada na semana passada. Como prova, a leitora anexou vários calendários-de-bolso de 1993, impressos pela Prefeitura Municipal de Barcelos, na administração do prefeito Elias Ribeiro Teixeira.
No almanaque de Barcelos aparece – à semelhança de qualquer calendário, ora pinóia! – os dias, semanas e meses do ano, com uma simpática mensagem eleitoreira do prefeito Elias: “No final do meu mandato, agradeço a solidariedade recebida. Desejo ao Povo de minha terra um Feliz Natal e um próspero Ano Novo”.
Neve em Barcelos
Até aí tudo bem. Uma das funções de um bom prefeito, não cumpridas, por exemplo, pelo Amazonino em Manaus, é zelar para que seus munícipes tenham um promissor ano novo. No entanto, a situação se complica, porque do outro lado do calendário aparecem fotos deslumbrantes de paisagens e monumentos que indignaram a referida leitora.
Por que alguém fica furioso com fotos lindas? Por acaso são fotos de mulher nua, como naqueles calendários grandes de oficina de mecânico, que alegram a uns, mas para outros constituem um atentado ao pudor, à moral, aos bons costumes, à estabilidade da família? Não! Nada disso!
As fotos reproduzem monumentos e paisagens da Europa e dos Estados Unidos.
Neve, por exemplo? Existe por acaso neve em Barcelos? Não. Então para compensar tal ausência, em seu calendário, nosso bom Elias não economizou recursos da Prefeitura. Reproduziu uma vista geral de uma cidadezinha da Áustria, encravada nos Alpes, branquinha-branquinha de neve.
Catedral? Existe uma basílica em Barcelos? O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, que viajou pelo rio Negro na segunda metade do séc. XVIII, conta o que aconteceu com a igreja matriz de Barcelos na noite de 24 de março de 1785. Neve não, mas um raio caiu sobre sua torre, tirou uma lasca da cruz de madeira erguida no frontispício, quebrou os marcos das janelas da frente e fundiu toda a sua ferragem, além de outros estragos.
Somente um século e meio depois é que os salesianos construíram uma nova igreja, com uma torre razoavelmente respeitável, mas que não chega nem aos pés das catedrais europeias. Então, o nosso bom Elias, na outra série de calendários, exibe a Catedral de Colônia, na Alemanha, e a de Notre Dame, em Paris, ambas em estilo gótico, seja lá o que isso signifique.
Barcelos tem, quiçá, alguma ponte monumental? O major de artilharia e bacharel em matemática Hilário Maximiniano Antunes Gurjão viajou pela calha do rio Negro até Cucuí, em 1854, durante o governo de Ferreira Pena, e nos deixou um relatório minucioso. Quando passou por Barcelos registrou que a única ponte de madeira sobre o igarapé, que cortava a cidade estava destruída pelo cupim e ameaçava desabar. Aí, a Câmara Municipal mandou demolir.
A bridge do Rio Negro
Portanto, na ausência de uma ponte monumental, o nosso bom Elias sapecou em um de seus calendários uma foto esplendorosa da Brooklyn Bridge de Nova York, construída em 1869, com estrutura de aço e concreto.
Luísa, a leitora que me enviou os calendários, está uma fera com o prefeito: - Por que ele não valoriza o potencial da nossa região? Por que em vez de fotos do Sena, lá na França, ele não usou fotos dos rios que banham o município como o Cabori, o Baruri, o Cuiuni, o Uanã e tantos outros?
- Eu sei lá, leitora. Vai perguntar ao Elias. Talvez ele ache que os nomes Sena, Volga, Oder, Danúbio, Vístula soam melhor que Urubaxi, Padauari, Demeni, Jaçari, Curicuriati.
Em defesa do prefeito, só tenho a dizer uma coisa. Os calendários não foram feitos para turistas, mas para serem distribuídos entre os moradores de Barcelos, que estão carecas de ver igarapés e igapós. Então o bom Elias decidiu, sabiamente, mostrar as belas paisagens da Europa que seus munícipes desconhecem para proporcionar-lhe um momento de interculturalidade. Suspeito que pode ter sido isso.
Ou então é uma fuga descarada da realidade. De qualquer forma, amiga Luísa, seja mais tolerante com o nosso bom Elias. Às vezes a realidade é tão dura, suja e insuportável que é preferível ignorá-la ou modifica-la usando a fantasia e a imaginação. Eu, por exemplo, depois da eleição do Amazonino, segui o exemplo da Chiquinha e dos calendários de Barcelos. Sou agora Joseph Oversea Very Much ou José Sur-la-Mer D’Avantage, A outra alternativa, mais corajosa, é se inscrever na Sociedade Amigos de Manaus e participar dos eventos que ela organiza para impedir a destruição de Manaus.
A verdade é que a alienação, quando ultrapassa certos limites, atinge o nível do sublime. A neve, a catedral e a ponte dos calendários de Barcelos parecem se enquadrar neste caso. Ou não?